On The Road: Alguns atalhos para muitas viagens
Por Cláudio Vigo
Postado em 10 de maio de 2002
Recebi por estes dias uma interessante mensagem de um leitor, que levando o título da coluna ao pé da letra (com muita propriedade), me pedia uma série de sugestões para zanzar por aí, por aqueles nunca dantes, ou por tantos outros caminhos repisados e trilhados. Cada estrada é única e cada vez que se passa por ela, outra comparece dentro de nós, portanto este tipo de guia é um tanto falho de certezas. Mas vão aí alguns "Michelin da alma' e suas respectivas trilhas sonoras, os melhores atalhos para se chegar em algum lugar.
Toda viagem é imaginária. O que fica em nossa memória é uma seleção dos melhores e piores instantes, normalmente utilizados como um analgésico do presente. Muitas poucas vezes temos dentro do percurso a consciência exata que estamos fazendo uma marca em nossas vidas naquele momento. Um pôr de sol em Madri meio chapado, um banho de sol num telhado em Siena, o sorriso beato do guardião dos túmulos da Igreja de São Francisco em Ouro Preto, um detalhe de uma ponte etrusca na Toscana, uma menina índia tomando banho de rio nua no Maranhão ao amanhecer - são uma miscelânea de imagens, sensações e conceitos pendurados, que aparecem em flashbacks, centelhas no meio do buraco que existe nesta estranha sensação de viver o dia a dia. Se vivi estes momentos um dia e ficaram foi porque esqueci uma enorme sucessão de tantos outros. Hoje a sugestão vai ser de alguns livros que se não são especificamente guias de viagem tradicionais (hotéis, bares, trens, historias, causos etc...) são trilhas interessantes de maneiras bem diferentes de se encarar o caminho. Um é um relato sobre o perambular de idéias e conceitos, uma viagem filosófica. Outros dois são viagens totalmente internas que se utilizam da distância como pretexto para desmontar as couraças da alma e o último um belo relato detalhado de tudo aquilo que uma paisagem de fora pode enriquecer uma paisagem de dentro.
ZEN e a Arte da Manutenção das Motocicletas
Robert M. Pirsig (Ed. Paz e Terra, 1984).
Eis um guia intrigante. O autor passou uma boa época de sua vida perambulando por estradas semidesertas americanas com seu filho na garupa, tendo na manutenção de sua moto requintes espirituais comparáveis às práticas Zen do Ikebana, da cerimônia do chá e outras artes cavalheirescas onde a maestria de uma técnica serve para desligar as caraminholas incessantes do ego. O que importa aqui não é pra onde se vai, mas sim como se vai e quais são as condições de percurso. Tudo isto entremeado por reflexões sobre a abrangência e os limites do raciocínio lógico, da tecnologia e do pensamento clássico e romântico. Em reflexões, a moda dos velhos koans Zen, que chama de Chautauaquas, abre caminho para varias viagens de avaliação de conceitos e valores. Pra levar pra estrada e ler devagar.
Trilha Sonora: The Byrds, Grateful Dead, Incredible String Band, Pink Floyd.
Memórias de un Peregrino Ruso
(Ediciones Del Peregrino, 1983)
Este livro é anônimo, escrito possivelmente por um monge peregrino em 1855 e é um relato muito interessante das lutas e paisagens interiores, quando o autor participa da experiência mística da "oração de Jesus", onde através da repetição incessante (sem parar, o tempo todo) de uma oração mentalmente, vai alcançando estados alterados da consciência através da pratica ascética. Ou seja, é "viagem" pura sem drogas, só com o autocontrole dos estados de vigília e sonho através da repetição. Como se fora um mantra, o monge vai enfrentando "portais de privação", ao mesmo tempo em que vislumbra as delícias do nirvana budista. Deus e o diabo na terra do sol. JD Salinger (Apanhador no campo de Centeio), o estranho e genial escritor americano, adora este livro e o cita em boa parte dele no seu Franny e Zooey. Um guia e tanto pra observação nem sempre agradável do que vai dentro da gente. Ideal pra quem vai viajar a pé.
Trilha Sonora: Philip Glass, Ravel, Sakamoto e cantos Gregorianos.
Caminhando no Gelo
Werner Herzog (Ed.Paz e Terra, 1982)
Aqui o grande cineasta alemão (Aguirre, Fitzscarraldo, o Enigma de Kaspar Hauser, Strozsek) relata uma viagem de expiação quando caminhou de Munique a Paris (1.000km) no auge do inverno (inferno) como promessa, sem sentido religioso, num ato de sacrifício para encontrar sua amiga, critica de cinema e maior historiadora do expressionismo alemão, chamada Lotte Eisner que morria de câncer.
O livro é um relato de desespero, abismo e exaustão, muito parecido com alguns de seus melhores filmes. Paranóia sem mistificação.
Não é um percurso comum, mas há sempre um tanto de beleza na beira dos abismos não é?
Trilha Sonora: King Crimson, Soft Machine, Van der Graaf, Tom Waits.
Os Autonautas da Cosmopista
Julio Cortazar e Carol Dunlop (Ed.Brasiliense, 1991)
Carol Dunlop e Julio Cortazar passaram um mês na auto estrada que une Paris a Marselha - uma viagem de férias pelo avesso da realidade. A estrada deixa de ser um percurso para transformar-se o destino da viagem; seu propósito de velocidade transforma-se em lentidão deliberada, pois é possível fazer em poucas horas o trajeto que os autores deste livro fizeram em um mês. Visitando dois parkings por dia, os viajantes, instalados num carro-casa, registram detalhadamente tudo o que vêem: plantas, bichos, erotismo, horizontes bucólicos, gastronomia.
Este livro é um grande barato e Cortazar (um de meus escritores preferidos) e sua mulher realizaram um grande sonho meu. Saíram, sem pressa alguma, por uma auto estrada (tipo a Dutra Rio- SP) e levaram um mês pra chegar. O que era pra ser lugar de passagem e flash instantâneo passa a ser minuciosamente observado. Adoro zanzar pela cidade imaginando a vida das pessoas que moram em cada janelinha daquelas. Os caras fizeram isto e pararam em cada posto, ouviram um som, beberam um vinho e pensaram nas grandes diferenças entre cada ponto tão igual de uma estrada onde se passa correndo.
Superbem escrito e ilustrado, este livro é uma delícia.
Trilha Sonora: Clifford Brown, T. Monk, Mingus, Miles Davis, Dave Brubeck e Ronnie Earl.
Pois é, estas dicas que mandei pro Henrique (o tal leitor) talvez não batam tão exatamente e espero com sinceridade que isto aconteça, pois não só cada viagem é única assim como todo viajante também o é. Espero receber algumas dicas também. De estrada estou um pouco aposentado, mas posso assegurar que procuro andar com os olhos bem abertos. Tanto faz estar no Nepal ou na Avenida Rio Branco se você não está ali de verdade não é?
Pra terminar conto que assisti uma sonzeira fenomenal em um concerto que os Master of Groove andaram fazendo aqui pelo Rio de Janeiro. Os caras eram Bernard Purdie (baterista de James Brown, Aretha, Lou Donaldson, Steely dan e toda a nata do Soul Jazz), Reuben Wilson (outro ícone do Hammond sessentista) e Grant Green Jr. (gtr) filho do homem. Funk Soul Jazz de raiz pau puro, mais um Leo Gandelman pra atrapalhar um pouco, mas tudo bem.
Meu amigo Fernandinho Andrade abriu a boca e entrou em êxtase nirvânico estático com tanto suíngue. Ta vendo? Foi do lado de casa, mas valeu uma ida a Katmandu.
On The Road
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