On The Road: Mais gigantes do Soul Jazz
Por Cláudio Vigo
Postado em 22 de dezembro de 2001
Não é por nada não, mas este ano foi uma canseira. Muito trabalho, muito vai pra lá vem pra cá e agora começa este Senegal portátil de todos os anos aqui no Rio de Janeiro. A meteorologia já vaticinou: "Se segura malandro, que o bafo será total". Por estes dias estava me abanando enquanto mandava um coco pra dentro. No carro rolava uma seleção do melhor jazz latino na figura de Machito e sua orquestra. Enquanto os timbales e as maracas ajudavam o coco a descer fui lembrando de várias coisas que me fizeram sentir em Havana.
Meu primeiro disco, ganho quando tinha uns treze anos, foi o "Santana 3" que até hoje ouço com entusiasmo. Aquela mistura de salsa caribenha e psicodelismo hippie é simplesmente insuperável, está na medida certa do desregramento do corpo e da mente. Lembra sexo, dias ensolarados e muito entusiasmo. Talvez Santana seja o guitarrista que ouvi com mais freqüência em todos estes anos. Não é necessariamente o meu preferido, mas com certeza foi dos que acompanhei com mais atenção. Desde a fase mais percursiva e latina inicial, passando pela viagem mística de "Borboletta" e "Welcome" quando virou Devadip, o disco com John Mclaughlin, o retorno aos bongôs em "Amigos" e por aí afora, sempre com uma técnica pra lá de impecável e uma sonoridade muito característica.
Três amores básicos me mantém ligado em Cuba (umbigo caribenho): Sua música sensacional, sua literatura e os charutos. Para um país relativamente pequeno e politicamente isolado, a quantidade de escritores geniais per capita é infinitamente superior a nossa, por exemplo. Lezama Lima, Severo Sardui e principalmente Cabrera Infante, pra não citar tantos outros sempre foram companhias de leitura constantes junto com o inseparável Partagas N.1 quando o caixa permitia. Perdi algumas oportunidades de conhecer em loco tudo isto, mas um dia ainda vou fazê-lo.
Não me esqueço quando há algum tempo houve um festival Cubano em Niterói, onde pertinho de casa se podia sentir um Hemingway com a remontagem do Floridita, com a vantagem da vista para o Corcovado. Quando soube do fato me mandei pra lá com um amigo comuna cheio de más intenções. Pra combinar, fazia um calor caribenho e imediatamente comecei a tomar mojitos (uma caipirinha de rum pretensamente fraquinha e refrescante) em quantidades industriais como se fosse limonada suíça. Depois do terceiro descobri que tinha uma mulata a esta altura sensacional que enrolava charutos na hora. Levantei cheio de desembaraço e encomendei um robusto torpedo que fez encher de pavor meu amigo comuna que não suportava o aroma dos puros. Tratei logo de acalmá-lo: "que nada! Ela vai apertar, mas não vou acender agora" disse logo e voltei com o trabuco apagado pra mesa pra companhia dos mojitos e de um chatíssimo papo apologético castrista cheio de gráficos e estatísticas antiembargo. Resolvi pedir algo pra comer e descobri que a empregada lá de casa deve ter ascendência cubana, pois a comida era o mesmo horror. O prato com o caliente nome de "mouros y cristianos" era um arroz com feijão ressecado com um boi ralado brabo por cima. Meu amigo se atracou com o rancho elogiando a simplicidade da proposta. Deixei a brabeza de lado e fui ao que interessa pedindo mais um mojito e acendendo finalmente o maravilhoso charutão. Quando levantei pra ir ao banheiro senti o estrago que o refresquinho tinha feito, parecia que estava subindo a Sierra Maestra com Fidel Castro e Guevara. Uma coisa impressionante. O que me salvou é que começou a tocar umas coisas bacanas que dividiram minha atenção com o charuto e me afastaram dos perigos da limonada cubana.
Eram uns cds do Arturo Sandoval que junto com Paquito de Rivera são duas estrelas absolutas no mundo do Jazz que se encontram no exílio. Acabei chegando muito mais tarde do que devia, e a dor de cabeça no dia seguinte foi digna de uma invasão na Baía dos Porcos, mas nunca mais me esqueci e me deu uma vontade danada de dar um pulinho por lá.
Continuando o papo da coluna passada das origens do Acid Jazz, podemos sem forçar barra nenhuma afirmar que o Jazz latino dos anos 50 e 60 foram junto com o Soul Jazz a outra vertente de influência de toda esta rapaziada que adora samplear e botar um molho em cima. Desde que Dizzy Gillespie resolveu dar uma conferida na coisa, que o Jazz latino literalmente estourou no norte, muitas vezes com alguns pontos de contato com o nosso Samba via Bossa Nova. Santana também bebeu muito nestas fontes e se entupiu não só de Tito Puente como ouvia sem parar muito Cal Tjader e Willie Bobo. Abaixo uma palinha do que eu mais ando ouvindo nesta praia ensolarada:
CAL TJADER (1925/1982) - Supremo papa do Jazz latino, o vibrafonista Cal Tjader tocou com George Shearing e Dave Brubeck até inventar o "modern mambo", por sua banda passaram todos os percursionistas importantes do gênero. Teve uma influência enorme no San Francisco sound do verão do amor em 67. Santana ouvia sem parar seus discos em casa (sua mãe adorava) e isto foi decisivo em toda sua formação e no desenho do que viria a se tornar seu som. Pra quem não conhece podemos descrever como um Jazz suave altamente suingado, cheio de balanço, maravilhosamente bem tocado. Lembra a "Marca da Maldade" de Orson Welles e seu maravilhoso plano seqüência, festas beatniks, carros conversíveis e muita estrada pra andar. Você começa ouvindo e não dá muita coisa, mas quando presta atenção nos detalhes começa a grande viagem. Seu disco com o pianista Eddie Palmieri é imperdível.
WILLIE BOBO - Nascido William Correa em 1934, ganhou o apelido de Bobo da pianista Mary Lou Williams. Trabalhou com todas as feras latinas (Tjader, Tito Puente, Machito Perez Prado). Misturou como ninguém Jazz, R&B e música latina. Fera absoluta de todos os batuques, fazia o gênero rei da marra e tanto Santana quanto Mandrill e Earth Wind & Fire devem muito a ele. Formou bandas fantásticas em que o jovem Chick Corea costumava tocar.
Adorava música brasileira, principalmente Bossa Nova e Jorge Ben. Ouvir Willie Bobo e ficar parado é simplesmente impossível, o senso de ritmo e balanço que o cara tinha era algo contagiante. Reconheci linhas inteiras de batuque que pensava serem originais nos primeiros discos do Santana. Coke Escovedo e Armando Peraza estavam muito próximos dele. Ouvir seus discos na praia é a coisa mais próxima de um Prozac que pode existir, não há depressão que resista.
TITO PUENTE - Se B.B.King é o rei do blues, Puente era "El Rey" da salsa até o ano passado, quando foi tocar suas maracás no além. Tocava piano, congas, bongos sax e vibrafone sempre de maneira espetacular, ou seja, um tremendo showman. Autor dos sucessos do mais uma vez citado Santana: "Oye Como Va" e "Para Los Rumberos". Puente era uma instituição latina, talvez seu artista mais emblemático. Sempre acompanhado de uma tremenda orquestra, às vezes descambava pra farofa - mas nada que o bom humor não consertasse.
Outros músicos marcantes no clima: Mongo Santamaria, que também teve um sucesso espetacular na época, Ray Barreto e uma boa fase de Dizzy Gillespie que esteve envolvido um bom tempo com estes molhos latinos.
Uma coisa que sempre muito me intrigou foi a pouca importância que o Rock Brasileiro sempre deu a nossa imensa riqueza musical. Com a honrosa exceção dos Novos Baianos e suas conseqüências (A Cor Do Som, Pepeu, Moraes etc...) que se utilizavam de toda esta linguagem, muito pouco se aproveitou de todo este manancial pra botar suingue na mistura. Não ficamos nada a dever a toda esta galera hispânica e o estrondoso sucesso que o nosso Samba jazz dos anos 60 têm feito ao ser reeditado na Europa mostra que há muito espaço e talento para serem garimpados.
Mas isto é outro papo pra ser levado uma outra hora. Parece que vou conseguir finalmente uns dias de férias bestando no sol da Bahia. A mala já está cheia de cds de Jazz latino, um livro do Cabrera Infante e muita disposição pra observar onde o vento faz a curva e o intervalo exato quando a banda para e eu grito "urgh!!!!"
Um bom Natal pra todo mundo!
On The Road
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