On The Road: Confissões Paulistas
Por Cláudio Vigo
Postado em 23 de abril de 2003
Nascer e morar em Niterói são uma forma estranha de ser carioca. Uma baía bela e hoje desdentada como queria Levi Strauss nos separa e aproxima num culto de amor e ódio digno de irmãos siameses. Posso dizer que conheço cada pedaço do antigo umbigo nacional, desde os subúrbios mais ermos até os points mais descolados. Daria um razoável motorista de táxi, se me aventurasse. Conheço a cidade pelo cheiro, de olhos fechados, do Leme ao Pontal, de Santa Cruz à Benfica. Apesar de ter pisado em São Paulo algumas dezenas de vezes, sempre por curtos períodos, a esfinge permanece indecifrável e se consigo me locomover é com muito esforço sem guardar que bairro fica perto de qual, um desespero. Caiu na minha mão esta semana o mítico disco do produtor iugoslavo paulista Suba, "São Paulo Confessions", que detonou todo um incômodo de perceber o porquê de estar tão longe do que está tão perto.
Até que eu não sou muito enrolado não. Estou acostumado a andar em lugares que não conheço e por deformação profissional me entendo bem com mapas etc. Consegui algumas façanhas como entrar em Roma dirigindo junto com aqueles corredores de bigas que são os motoristas italianos. Tá certo que me perdi completamente no início, indo parar num lugar totalmente inacreditável (quase rural) e com meu italiano que não passa de "vino pasta", "raviole" e "fettuccine" foi meio complicado me orientar, mas fui em frente. Mas me lembrando do desespero de dirigir em São Paulo, nada se compara.
Este estranhamento desde a infância gerou muita curiosidade e muitas pequenas estadas de dois a três dias onde rolava uma Bienal, um filme, teatro e alguns shows de Rock ou Jazz que porventura não haviam se aventurado a ir perto de casa. Não esqueço de um papo uma vez com uma namorada que me intimou numa véspera de semana santa: "Gostaria de ir para um lugar diferente, onde não encontrasse ninguém conhecido". Resolvi radicalizar: "Que tal São Paulo?" Entre o espanto e gargalhadas acabei hospedado bem no centro velho, onde fizemos tours muito interessantes por uma cidade subterrânea que seus filhos mal conhecem. Ou prestam atenção. Algo como se hospedar na Senador Dantas no Rio e passear Sábado à noite pela Cinelândia.
No primeiro hotel que entrei me deparei com Araci de Almeida no Bar tomando um Campari Rubi às 10 da manhã. Nem pestanejei e diante de tal recepção me abanquei com entusiasmo. Um clima meio hardcore (Blade Runner tropical) habitava as cercanias e uma fauna andrógina ululava pelas ruas em volta do hotel. No meio disso alguma aristocracia bem gasta que migrou a muito para outras paragens. Nos passeios identificava: "Aqui morou o Flavio de Carvalho, ali Oswald de Andrade tinha sua famosa Garçoniere":
"Arranha-Céus.
Fordes
Viadutos
Um cheiro de café
No silêncio emoldurado".
Vou por ano umas duas vezes a São Paulo, quase sempre volto no mesmo dia, portanto conheço muito bem uma cidade imaginaria e particular feita de pedaços desconexos e algumas lembranças. Nunca tive rotina em São Paulo por isso talvez nunca tenha me orientado com precisão ou dominado a paisagem. Mas em inúmeras outras cidades estive apenas uma vez e consigo lembrar com detalhes muito mais ricos. Talvez por isso tenha me motivado a escrever sobre este disco do Suba, um estrangeiro, que decifrou São Paulo em confissões eletrônicas. Outra cidade imaginária, outra visão da Torre de Babel.
Mitar Subotic (Suba) chegou ao Brasil através de uma bolsa da Unesco para estudar música brasileira às vésperas do cataclismo colorido (1990) com vinte nove anos e morreu dez anos depois num incêndio em seu apartamento. Enquanto isso se tornou um dos maiores produtores de musica moderna brasileira trabalhando com gente como Arnaldo Antunes, Edgar Scandurra, Mestre Ambrósio, Marina Lima e Bebel Gilberto.
"São Paulo Confessions" foi lançado em 1999 e trás um Trip Hop com um molho bem brasileiro, seja na percussão sempre presente e providencial de João Parahyba e vocais de Cibelle num clima algumas vezes próximo de uma bossa cool, um tanto carioca na placidez, e nas participações especiais de Mestre Ambrosio, Roberto Frejat, Arnaldo Antunes e Edgar Scandurra. Em alguns momentos chega perto de uma Ambient Music de trópicos nervosos, como se Brian Eno tivesse se intoxicado de Bossa Nova e Maracatu. Camadas e mais camadas de intenções, com belos achados entre a hipnose de algum ritmo e a textura eletrônica. Uma forma bastante original de sentir uma das megalópoles dos Trópicos. Se fosse pelo caminho que Philip Glass trilhou em seu libelo antidestruição, "koyaanisqatsi" seria mais óbvio em seu nervosismo explícito, mas preferiu diminuir os elementos e abrir caminho para uma certa melancolia entrecortada (tristeza não tem fim...) com alguns clichês da Dance Music.
Uma bela experiência. Nunca havia imaginado este tipo de trilha para a cidade, mas ao se ouvir repetidamente começam a aparecer as referências, as praças, o metrô repleto, as cantinas, as arestas reduzidas da poesia concreta (via Arnaldo Antunes) em alta precisão e muitas das coisas típicas da minha São Paulo imaginária. Soube que foi lançado também um disco tributo a Suba com sobras de estúdio e participação de vários amigos, assim como existe um instituto de amparo ao ensino com inspiração em seu trabalho (www.suba.com.br). Já estou a procura do disco e procurei saber alguma coisa sobre o instituto. Realmente este cara foi embora cedo demais.
Cheguei a pensar qual seria a trilha sonora ideal para um passeio noturno pelas avenidas desertas de São Paulo se não fosse este disco e me vieram à cabeça os discos do Tortoise, que com suas interferências barulhentas faz uma Ambient Music infernal com chumbo derretido e ranger de dentes. Para quem não conhece recomendo a audição urgente desta banda que faz uma enciclopédia de sonoridades que vão desde o Kraut Rock setentista (Can, Neu, Faust) até o minimalismo, Jazz Avant-Garde etc.
Capitaneada pelo produtor baterista John Mc Entire, a banda na verdade é um núcleo experimental onde toca gente de todo lado. Seus discos saíram no Brasil via Trama e os dois que tenho: "Milions now living will never die" e "TNT" são simplesmente imperdíveis. Para quem não se acostuma com o óbvio e não foge de sonoridades ásperas é altamente indicado.
Não tem "tardinha", não tem "barquinho" e o Pôr do Sol sempre parece que vai ser o último. Não tem jeito, apesar de viver falando mal, ironizando, sempre acabo voltando, para ficar nunca, mas por que não para imaginar mais uns pedaços.
"Você viaja para reviver o seu passado? - Era, a esta altura, a pergunta do Kahn, que também podia ser formulada da seguinte maneira: Você viaja para reencontrar seu futuro?
Os outros lugares são espelho em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá".
Ítalo Calvino
On The Road
Receba novidades do Whiplash.NetWhatsAppTelegramFacebookInstagramTwitterYouTubeGoogle NewsE-MailApps