On The Road: The 80's - e um pouco sobre Ian Curtis
Por Cláudio Vigo
Postado em 28 de dezembro de 2000
Depois desse papo todo saudosista dos anos 70, vou pedir licença a meu amigo e vizinho de coluna Rubens L.Costa e vou cair de boca em alguns "recuerdos" tipicamente oitentistas. Um tempo de muito blazer com camiseta preta, barba por fazer e um olhar de tédio que servia de passaporte para adentrar qualquer ambiente mais descolado.
No inicio dos 80 andei um pouco afastado do rock. Entupia-me dia e noite do mais puro jazz, do Be Bop ao Cool, ouvia de tudo um pouco: muito Charlie Parker, Miles Davis, Lester Young, Dave Brubeck, Mingus e por aí ia, misturando com muito cinema, literatura e uma pose existencialista que faria inveja a Sartre e Camus, meus companheiros constantes por aqueles dias. Um climazinho deprê combinava divinamente com um solo de Chet Baker ao cair da tarde e fazia sucesso nos bares perto da Faculdade de Arquitetura que estava no início, junto com um papo interminável sobre o sentido da vida e uma meia dúzia de soluções pro problema, que havia descoberto naquela tarde mesmo.
Trabalhavam comigo no escritório do meu pai (também arquiteto) vários colegas de faculdade. Tínhamos uma sala só para nós, com vista pro mar e onde rolava direto todo aquele jazz e mais horas e horas da então iniciante Fluminense FM (A Maldita). Foi um tempo legal. Ouvíamos as fitas demos mandadas para a rádio de bandas que nunca ninguém havia ouvido falar e achávamos os nomes engraçadíssimos, coisas como: Pára-lamas do Sucesso, Kid Abelha e os Abóboras selvagens, Titãs do Iê Iê Iê e outros mais.
Quando tocava "A Rainha do Egito" com Jorge Mautner, o escritório todo parava e cantava junto. Uma coisa que surpreendia as secretárias e indignava meu pai, mas que sempre se repetia.
Dentre estes colegas de trabalho estava um calculista lusitano imediatamente apelidado de Zé Who (devido ao seu amor a Townshend & Cia) que curtia horrores coisas como U2, Simple Minds e Aztec Câmera. Tinha um visual que mesclava roupas militares e soturnas com um bigode insolente de ponta virada a lá Salvador Dali e uma amiga (Ana Paula) que andava fascinada com o estilo Madonna, que estava surgindo por aqueles tempos também. Na noite tipicamente oitentista que eu lembro por aqui, tive estes dois personagens como acompanhantes.
Numa destas sexta-feiras sem nada para fazer (elas haviam aos montes) já me preparava pro meu livrinho ouvindo um Coltrane qualquer quando tive a idéia de conhecer um clube noturno recém aberto, que diziam ter o mega ladrão Ronald Biggs como sócio e a fama de recusar a entrada de pessoas comuns (principalmente globais e colunáveis) e só deixar entrar quem tivesse visual e atitude compatíveis com o local. Dei uma olhada no espelho e não achei compatível com nada que pudesse impressionar um porteiro dark. Tentei uma calça velha, um paletó (estava calor, mas sem paletó não dava) e a indefectível camiseta preta e umas botas que usava pra ir nas obras. Junto com a barba de três dias, até que ficou climático. Telefonei pros dois e antes que pudesse perguntar o vamos nessa, já estavam me esperando na esquina combinada.
Temi pela nossa sorte. Éramos um exército Branca Leone composto de uma Madonna fake, um Salvador Dali de coturnos e um sujeito barbado quase desmaiando naquele paletó (eu). Talvez pelo inusitado do conjunto ou pena do meu aspecto doentio, fomos escolhidos imediatamente para entrar em meio a uma multidão de preto que ululava loucamente, e assim estávamos no famoso Crepúsculo de Cubatão, que fez história nos seus primórdios entre os descolados do Rio de Janeiro dos 80.
O lugar era de uma escuridão quase total e as garçonetes tinham uma saúde maravilhosa que escondiam de toda maneira, numa maquiagem carregada e num jeitão do tipo: "vou me matar ali no canto e já volto". O ambiente era altamente pesado e depressivo, tinha um monte de TVs penduradas onde rolavam uns clipes e uns trechos de filme (isto era moderníssimo na época).
Já estava no segundo uísque, o paletó um pouco mais leve, quando resolvi descer para a pista de dança, que era literalmente underground, cheia de canos aparentes e umas grades com as quais um povo enfermiço dançava solitariamente dando umas cabeçadas de vez em quando. Tentei imitar e me senti o próprio Ian Curtis. Até que lá pela terceira música, me deu uma vontade incontrolável de rir (inconcebível no local) e desviando de um tubo de águas pluviais, no qual um rapaz se esfregava freneticamente, subi e fui procurar meus amigos. Zé Who exibia seu bigode ereto no bar pras garçonetes depressivas e Paulinha fazia sucesso com um sujeito pálido, a cara do Mickey Rourke. Cheguei pros dois, nem sugeri, intimei: "Vamos sair daqui!"
Sempre amei música Latina (salsa, mambo e ritmos caribenhos em geral). Fui um fã entusiasmado de Santana durante muito tempo e fico muito feliz com esse enorme sucesso que ele voltou a fazer. Adoraria participar da orquestra do Tito Puente, de terno branco e bigodinho, ser o cara que faz uuuurghh!! na parada. A noite era uma criança (2 horas) e eu inventei de curtir uma gafieira latina com a Big Band do Clube Elite na praça da República. A idéia foi aceita imediatamente e dançamos loucamente muitos boleros e mambos, mas infelizmente não ganhamos no sorteio do frango assado (acreditem, eles sorteavam frango assado entre os presentes). Quando a coisa tava ficando meio caída, saltamos fora deixando a crooner mandando uns climas que eram a própria Célia Cruz.
Para terminar nos dirigimos até o Largo do Boticário, pulamos a ponte e fomos molhar os pés no Rio Carioca. Estava quase amanhecendo e uma lua amarela insistia em refletir o rio. Olhamos uns pros outros e tínhamos a certeza que mesmo que tentássemos, não deveríamos repetir aquela noite nunca mais. Como num pacto, entramos no carro em silêncio. Zé Who puxou um cassete do Talking Heads da porta luvas e quando a voz do David Byrne começou a ecoar no carro o sol já ia alto. Paulinha dormia no banco de trás, Zé Who cofiava o bigode e elogiava a guitarra do Belew e eu olhava pro sol e dizia para mim mesmo: "Bom dia anos 80!!"
Ian Curtis, que andei citando aí por cima, estava se preparando para ser o Jim Morrison dos anos 80. Membro fundador do grupo deprê-seminal Joy Division é cultuado até hoje por suas maravilhosas letras (com forte influência Beat e de W. Burroughs). Sofria de epilepsia e depressão e numa noite (29/7/80), depois de assistir Stroszeck de Herzog ouvindo Iggy Pop (dose pra elefante) se enforcou, tornando-se mais um dos mártires do rock. Vai aí um poema do bardo pra manter o clima:
IN A LONELY PLACE
Caressing the marble and stone
Love that was special for one
The waste in the fever I heat
How I wish you were here with me now
Body that curls in and hides
Arches that often delight
Warm like a dog round your feet
How I wish you with me now
Hangman looks round as he waits
Cord stretches tight then it breaks
Someday we will die in your dreams
How I wish were here with you now
NUM LUGAR DESERTO
(Tradução: Pedro S.Costa e Paulo da Costa Domingos)
Acariciando o mármore da laje
Amor de alguém tão querido
Gasto na febre que me acende
Como eu te queria aqui comigo
Corpo que dobra e se esconde
Ogiva, quanto fascinas
Enrolado a teus pés qual cão manso
Como eu te queria aqui comigo
Atento o verdugo em sua espera
De tanto aperto a corda quebra
Morremos um dia pelos teus sonhos
Como eu nos queria aí contigo
Daqui a pouco, muito pouco, mesmo lembrando e cultuando tanta memória de coisas antigas, outras nem tanto, gente que ficou pelo caminho ou que nunca mais se viu ou ouviu falar, só nos resta observar o sol nascendo mais uma vez pelo vidro do carro na estrada e dizer: "Bom dia século 21!!"
Até o ano que vem. Feliz Ano Novo pra todos vocês.
On The Road
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