Porque "O Trem das Sete" de Raul Seixas é "o último do sertão"
Por Bruce William
Postado em 06 de maio de 2025
Quem ouve "O Trem das Sete" pela primeira vez pode se deparar com uma narrativa simples, quase nostálgica: o trem surgindo de trás das montanhas, levando gente que chora, gente que sorri, alguns que ficam, outros que partem. Mas a canção composta por Raul Seixas e lançada em 1974, no disco "Gita", carrega muito mais do que memórias da infância — ela é uma síntese poética de espiritualidade, crítica social, ocultismo e uma visão radical de transformação.
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A imagem do trem é recorrente na obra de Raul. Em entrevista à Rádio Cultura AM, em 1976, o próprio cantor explicou que cresceu viajando de trem pelo interior da Bahia, e que aquilo o marcou profundamente. "Essa cultura do Brasil é fantástica. Eu falo muito do trem como uma imagem de um novo momento que está surgindo", disse ele. Era o símbolo da mudança, da passagem, de um ciclo que se encerra e outro que começa, "um processo civilizatório que bateu no teto".
O número sete, por sua vez, intensifica essa simbologia. Sete dias da semana, sete notas musicais, sete cores no arco-íris. Na Bíblia, sete trombetas, sete selos, sete igrejas. O horário marcado, "sete horas", carrega uma carga mística. Segundo o site Literatura e Poesia, há uma associação com "O Auto da Barca do Inferno", de Gil Vicente, onde o destino final depende das escolhas feitas em vida. O trem, então, se torna mais que meio de transporte: é o condutor entre esta existência e outra.

Mas por que ele seria o último trem do sertão? A resposta está na sobreposição de referências. Para Raul, esse sertão não era apenas geográfico, mas também simbólico. É o Brasil profundo, o território da fé simples, das ausências e das resistências. E o último trem representa a última chance de mudança — espiritual, política, humana. Não é à toa que "as montanhas azuis" remetem ao céu, enquanto o "trem fumegando" pode ser interpretado como a chegada do divino, numa conexão com Apocalipse 1:7: "Eis que vem com as nuvens...".
Há também um elemento ocultista na música, com influência direta de Aleister Crowley. Raul já demonstrava interesse pelas idéias de Crowley antes mesmo de cantar sobre a Sociedade Alternativa. A letra diz: "Olhe o mal / Vem de braços e abraços / Com o bem / Num romance astral". O jornalista Júlio Ettore explica que essa visão de unidade entre bem e mal está alinhada à proposta de abolir essa dualidade, algo presente tanto no ocultismo quanto nas religiões orientais. "No final da música, temos essa belíssima imagem da Unidade da Divindade", escreve Sylvio Passos no livro "Raul Seixas: Uma Antologia".

A ausência de bagagem e passagem, destacada nos versos, também tem papel crucial. Não é preciso pagar nada para embarcar, mas é necessário crer. A análise publicada pelo site As Crônicas Cristãs reforça: o trem não leva bens materiais, só quem compreendeu a mensagem. Não basta existir, é preciso ter consciência da travessia.
O caráter premonitório da canção ainda assombra. Raul morreu no dia 21 de agosto de 1989. Foi encontrado sem vida no quarto de seu flat em São Paulo, pouco depois das sete da manhã — exatamente o horário do "trem das sete". A parada cardíaca aconteceu duas horas antes, às cinco. Dois detalhes, dois horários, duas horas de silêncio que antecederam uma coincidência difícil de ignorar.

No fim das contas, "O Trem das Sete" é sobre partir — e aceitar que todos, mais cedo ou mais tarde, irão embarcar. É o último trem porque simboliza a passagem final, aquela que ninguém pode evitar. Um trem que parte do sertão simbólico, carregando fé, silêncio e mistério. Só embarca quem entendeu que essa vida é apenas uma das estações — e que, para ir adiante, não é preciso bagagem, só coragem de seguir.

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