O possível significado de "fiz a cama na varanda" em "Nasci há 10 mil anos" de Raul Seixas
Por Gustavo Maiato
Postado em 07 de maio de 2025
O cantor e compositor Raul Seixas não era conhecido apenas pelas roupas excêntricas ou pelo estilo de vida libertário. Parte essencial de sua obra está na complexidade simbólica das letras — muitas vezes enigmáticas, repletas de referências místicas, históricas e folclóricas.
Um exemplo disso aparece em um trecho da música "Eu Nasci há 10 mil anos atrás", de 1976, no qual o artista escreve:
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"Eu li os símbolos sagrados de Umbanda
Eu fui criança pra poder dançar ciranda
E, quando todos praguejavam contra o frio
Eu fiz a cama na varanda"
A estrofe, aparentemente simples, tem sido objeto de interpretações diversas por estudiosos, fãs e entusiastas da obra do "Maluco Beleza". O verso "fiz a cama na varanda", em especial, suscita leituras que vão desde a resistência material até a citação direta a uma canção popular do folclore brasileiro.
Uma leitura a partir da Umbanda
O site Universo de Raul Seixas, dedicado à obra do artista, propõe uma chave de leitura ligada à espiritualidade afro-brasileira. Raul, como se sabe, era profundamente fascinado por temas esotéricos e pelo sincretismo religioso. O trecho "li os símbolos sagrados da Umbanda" reforça esse vínculo. Segundo a análise, os símbolos referem-se aos "pontos riscados" (desenhos traçados em rituais com uso de pemba), às guias (colares ritualísticos) e aos cânticos da religião.

A escolha de citar a ciranda e a varanda, nesse contexto, seria uma forma de exaltar não apenas a cultura popular, mas também a simplicidade de espírito. "Dormir na varanda em noite fria é coisa de maluco", aponta o Universo de Raul, "e o Raul era maluco o suficiente pra encarar um desafio desses." A varanda seria, então, um símbolo de desprendimento — e, ao mesmo tempo, de ousadia.
O desapego como sabedoria
Outro olhar aparece na interpretação do escritor e pesquisador Ednei Procópio, em análise publicada em seu site. Para ele, o trecho carrega significados que se entrelaçam: Umbanda, infância e o ato de dormir ao relento formam um painel de sabedoria e entrega.

"A passagem ‘quando todos praguejavam contra o frio / eu fiz a cama na varanda’ pode ser vista como uma imagem poética de resistência ou desprendimento material", escreve Procópio. Em sua leitura, o verso funciona como uma metáfora para o saber: enquanto os outros reclamam das condições, o narrador — que assume o papel simbólico do livro, da história viva — simplesmente se adapta. A atitude revela não apenas coragem, mas sabedoria acumulada por milênios.
Uma citação camuflada?
Há, no entanto, uma terceira via interpretativa. O youtuber Julio Ettore, estudioso da cultura brasileira, propõe que o verso possa conter uma referência direta à canção "Fiz a cama na varanda", de Inezita Barroso, lançada em 1959. A música, que leva o mesmo nome da frase usada por Raul, faz parte do repertório clássico da música caipira e é marcada por temáticas de saudade, simplicidade e vida rural.

Inezita Barroso, nome artístico de Ignez Magdalena Aranha de Lima, foi uma das maiores defensoras da cultura tradicional brasileira. Bibliotecária de formação, cantora, apresentadora e folclorista, Inezita teve carreira sólida nas rádios, palcos e programas de TV dedicados à música sertaneja. Foi uma das primeiras mulheres a ocupar espaço de protagonismo em um meio predominantemente masculino.
Segundo Ettore, não seria surpreendente que Raul, grande admirador do cancioneiro popular, tenha se inspirado — mesmo de forma sutil — na obra de Inezita. A expressão "fiz a cama na varanda", bastante rara no uso cotidiano, teria assim uma raiz concreta no cancioneiro popular, ganhando novo significado dentro do contexto roqueiro e místico do compositor baiano.

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