Iron Maiden: Aposta em fórmula consagrada no AMOLAD
Resenha - A Matter of Life and Death - Iron Maiden
Por Rodrigo Contrera
Postado em 27 de dezembro de 2016
Quem acompanha estas minhas resenhas, pode perceber que meu intuito com elas não é criar polêmica, jogar uns contra os outros, levantar a bola de algo que não merece tanta atenção ou desancar algo que, por motivos muito pessoais, não me agrada. Aqui tentarei explicar por que faço o que faço, e gasto tanto tempo e esforço nisso. Tentarei ser breve, para me concentrar no CD sobre o qual pretendo falar. Quem não quiser ler meus motivos, pode ir ao próximo subtítulo.
A questão é que tenho quase 50 anos de idade. Que me aproximei do Iron quando eu era moleque, e pude conferir em primeira mão o valor das primeiras obras da banda. Fui a um show deles, no antigo Palmeiras (hoje Arena), e curti muito. Ainda rememoro os momentos da banda que parecem identificados com a cena punk (o próprio Steve desconsidera as possíveis semelhanças de estilo), e os primeiros lançamentos, com uma pegada bastante diferenciada do que veio depois e do que ainda existe.
Ocorre que, quando comecei a colaborar com o Whiplash.net, eu queria me aproximar (ou reaproximar) de paixões. E meus posts iniciais foram extremamente pessoais (causaram na época bastantes acessos, e criei algumas amizades com isso). Claro que não foram apenas sobre o Iron. Foram sobre o Motörhead e algumas outras bandas e guitarristas (em especial) que abriam (e ainda abrem) os meus olhos e ouvidos. Ocorre que eu achava que a paixão havia esmorecido, que havia ficado lá atrás, ressurgindo apenas, aqui e acolá, em uma ou outra canção de CDs posteriores.
Mas verifiquei que não teve nada disso. Pois, ao ouvir Book of Souls, reparei como meu gosto pela banda permanece - e como ele de certa forma conduz meus ouvidos ainda hoje (aproximando-me de um jeito de ouvir suas músicas que, creio eu, consegue decifrar por que tem tanta gente que ainda gosta da banda, apesar de ela ter mudado e até certo ponto se acomodado tanto). Claro, a banda mudou. Tornou-se, segundo alguns (como já disse), mais progressiva, mais lenta, menos aguerrida - para quem gosta mais da fase áurea, do começo. Mas, mesmo concordando em parte, eu tendo a achar que algo permanece. E que minha atual paixão merecia ser jogada para fora, com os rebentos mais recentes - alguns que eu inclusive recentemente quase desanquei, mas cujo valor vi nas entrelinhas e que agora adoro.
Então, resolvi ir atrás dos materiais mais recentes. Tanto materiais que eu já havia ouvido - ao menos em parte -, quanto materiais que eram realmente novos, e que (eu achava) tinham apenas apelo com a garotada dos dias de hoje (reparo que não). Mas eu não iria mais apenas escrever o que sentia com as faixas. Eu iria me meter a pesquisar sobre as faixas, a criar conexões com outros materiais (seja livros ou filmes), em suma, a fazer o trabalho árduo que qualquer jornalista faz. Claro, eu iria também dizer o que sinto com os CDs, com as faixas, e com as fases da banda. Mas tentaria interpretar os CDs de acordo com sua época e com sua relevância no universo apaixonante de todos os apaixonados pelo Iron. Daí resolvi ir atrás daquilo que eu já tinha e daquilo que ainda quero adquirir. Tanto que logo irei também comentar DVDs, vídeos e outros materiais lançados pelo Iron. Pelo puro gosto de tentar entender.
AMOLAD
Não sei de onde vem essa mania ironiana de chamar os CDs do Iron pelo seu acrônimo, mas eu mesmo soube bastante atrasado que A Matter era chamado de AMOLAD. Mesmo hoje tenho bastante dificuldade para distinguir alguns dos CDs pelos acrônimos, e nem gosto muito desse hábito que muitos possuem. Mas, por economia e porque já se tornou comum, chamarei o CD de A Matter por AMOLAD. Quem souber como surgiu essa mania, me diga, e tentaremos incluir a informação aqui.
A quem reclamava da capa de Dance of Death (de agora em diante, DOD), esta satisfez bastante. A repetição do termo morte (death) não pareceu incomodar ninguém (até porque aqui a morte estava expressa de outra forma, e não se referia ao universo de Dance of Death, a faixa no CD). Aqui ficava claro que o diálogo da banda iria ser com a questão da guerra (expressa principalmente em The Longest Day), e que os soldados mortos andando na capa iriam dar o tom do visual do grupo no tour. Era um visual interessante, que me atraiu já de cara. Um aspecto, porém, que me incomoda hoje é que o tanque da capa não parece ter origem (sou um aficionado em armas de guerra e tanques em particular). A torre parece de um tanque russo (antes do Armata, até o T-80, porque o T-90 é diferenciado em sua torre), mas a frente (na qual está o logo do CD) não parece puxar para nenhum lado. Não dá para ver as esteiras, nem seu estilo, então não sabemos bem a que época tudo parece se referir (não entendo de uniformes). O Iron já havia, em Afraid to Shoot Strangers, se referido, inclusive em vídeo, à Guerra do Golfo, então não deveria ser. E o ambiente desolado, triste, escuro, não remetia a deserto nem nada daquelas paragens. Tudo estava meio deslocado. Era um esforço em se tratar de guerra, apenas. (Por outro lado, noto agora, não é um tanque da Primeira Guerra, como é óbvio, apesar de diversas faixas, ou uma em particular parecer se referir a esse conflito. Era um tanque para depois do imaginário da Segunda Grande Guerra)
Claro, vemos o tanque sendo conduzido sob uma bandeira pirata do Eddie, e isso também nos esclarece bastante sobre as referências. Neste caso, é como se o tanque fizesse parte de um batalhão pirata do Eddie, sendo que ele conduz uma trupe de homens mortos, em estado de caveira. Lembro-me da boa impressão que tudo me causou, muito embora não fosse mais o Derek Riggs a cuidar do visual. Em especial, causou-me ótima impressão o logo das metralhadoras cruzadas com o rosto do Eddie, tanto na cara do tanque quanto na contracapa do CD e nele próprio. Parecia que vinha algo bom. Hoje temos bastante material iconográfico disponível na internet que puxa para a guerra com aquele CD. Inclusive materiais se inspirando na capa para utilizar outras referências (como jogos de armar), e até mesmo outro tipo de imagem que na época eu não conhecia (e que deriva do CD mas que não se refere explicitamente a alguma faixa dele. Em suma, percebemos que a produção ao menos iconográfica do CD foi bastante mais caprichada, e que o fã tinha com que se deliciar.
Um aspecto que ressalta no CD como um todo, no que diz respeito ao seu tema, é que existe a teoria de que o CD todo trata, de forma direta ou enviesada, da experiência de um soldado na guerra, ou de como sua vida foi transformada por ela (essa teoria existe em fóruns de fãs do Maiden, dos quais participo). Esse comentário, note-se, faz algum sentido (embora, como a maior parte das teorias que passam nesses fóruns, não se sustente, de forma geral). De minha parte, não havia me tocado nesse possível detalhe, e ao vermos as faixas, uma por uma, podemos talvez chegar a alguma conclusão. Seja como for, a primeira faixa parece destoar da teoria, assim como o vídeo a partir dela.
Vídeos do Iron
Já me peguei MUITAS vezes andando por aí com trechos do refrão desta música na cabeça (Different World). Também recordando trechos do vídeo, e imagens que ficam dele na retina, que posto logo aqui abaixo. Um vídeo que tem uma pegada jovem que teoricamente não deveria me atrair muito, mas com o qual acontece bem ao contrário - ele me fascina, apesar de tecnicamente (nos desenhos) ser bastante irregular (alguns diriam, até mal feito).
Na verdade, creio que esta faixa foi a que, com o tempo, me convenceu de que o Iron não era uma banda que necessariamente fazia músicas do meu agrado, como o Iron das antigas, com pegada de cavalgada, relembrando os antigos sucessos, mas que também era (e é) uma banda de sucessos para cantar. Uma banda como sucessos que quando surgiram me faziam torcer o nariz (como Bring your Daughter, ou Wasting Love), e que me fizeram ficar muito tempo sem ouvi-la. Pois esta faixa é isso: uma faixa relativamente comum, que fica na cabeça, pegajosamente, como se fosse um chiclete. E que tem uma mensagem positiva, bem para jovem mesmo (na letra e no vídeo).
Antes de entrar nela, gostaria de falar brevemente sobre os vídeos do Iron. Antes, um excurso pessoal (pequeno). Uma vez, fiquei amigo de um sujeito que fazia Filosofia (como eu) na USP. O sujeito era filho de um empreendedor imobiliário, e tinha melhores condições de vida do que eu (como é óbvio). Uma vez ele comentou que, para empreendimentos em bairros darem certo, o pai dele fazia o seguinte: construía imóveis levemente inferiores aos da média do local. Era a sua forma de lotar seus empreendimentos, sempre apostando abaixo da média. Segundo meu amigo, essa estratégia sempre deu certo.
Pois, no que diz respeito aos VÍDEOS do Iron, eu acho que a lógica é mais ou menos a mesma. Não me refiro aqui necessariamente aos vídeos da época áurea, do começo mesmo, em que o Iron era captado em pequenos pubs, gravado sob medida, ou mesmo em shows de pequeno ou médio porte (em geral, com o Paul Di'Anno) (gravações que iriam fazer parte de coletâneas, como a Wasted Years). Não, me refiro aos vídeos que passaram a se tornar conhecidos por divulgar as músicas (em geral, lançamentos) da banda. Não irei aqui entrar no mérito da crítica dos vídeos (que irei deixar para outra ocasião). Mas digo desde já que os vídeos do Iron sempre me parecem um pouco MENOS do que o esperado (não são feitos também para ganhar prêmio). Pois, embora sejam feitos com produtoras maiores a partir de certo momento, são vídeos feitos mantendo as características de seus integrantes, a história da banda, e tudo mais. Eles nunca possuem mensagens avançadas (seja para quem for). São vídeos medianos, que agradam a média do público e dos fãs, que não têm nada DEMAIS a dizer, e que portanto talvez fiquem na memória em grande parte por causa disso.
Different World
Pois é o que acontece com o vídeo deste Different World. Claro, nele vemos efeitos especiais, tendo todo (ou quase todo) ele sido feito com imagens de computador. Mas vemos como as figuras no começo dele são mal feitas, como elas até nos desagradam, como elas poderiam ter sido melhores, mas não o foram (refiro-me aos escravos que passam o tempo batendo com uma ferramenta no chão do local). Repare-se também no jeito com que o personagem principal (imitando o Bruce) fala, com uma boca que parece mais fazer careta do que cantar ou falar para os espectadores. Note-se os seus trejeitos, que parecem retirados de história em quadrinhos. O vídeo com certeza teria sido feito para agradar os fãs mais jovens, não a mim, que já era um quarentão quando ele surgiu. Até pela mensagem, não deveria me agradar.
A trama da música convida a uma mensagem de juventude. E a música, misturada com o vídeo, passa uma impressão de ter sido feita para ouvintes/espectadores que poderiam ir desde os 15 até no máximo os 35 anos de idade. Ocorre que, apesar dos pesares, o vídeo é bem feito, agitado, e os movimentos na tela convidam a entrar na faixa. Passando por um mundo diferenciado (diferente), por figuras que parecem remeter à mitologia (ou a mitologias, ou a viagens internas na mente de quem o desenhou), pelo próprio fato de o personagem principal (o Bruce, que não para de cantar) correr sem parar com uma maleta (que teria umas provetas com substância enigmática), descer por tubos, cair de grande altura, ser capturado por figuras animalescas, etc.
Não irei entrar aqui, agora, por enquanto, naquilo que vemos no vídeo. Restrinjo-me, ao contrário, a dizer que a faixa, em comentário feito pelo próprio Steve Harris, seria sobre a constatação de que todos nós temos uma forma diferente de ver as coisas, de ver o mundo (o Steve comenta isso numa entrevista à Metal Hammer espanhola). Por outro lado, o narrador da letra parece bastante hesitante em seus sentimentos, e isso é abordado por fãs em grupos de que faço parte. Essa hesitação atrai a atenção, mas parece algo deslocada do vídeo, em que o personagem principal assume comportamento bastante definidor. Seja como for, o tema da música, pelo próprio Steve, a hesitação expressa na letra, e a atitude do personagem deixam uma impressão bastante engraçada. Basta reparar.
As imagens que povoam o vídeo de Different World causam-me bastante efeito. Eu fico com elas na mente, e elas se traduzem, mesmo quando não muito bem feitas, numa impressão indelével que acompanha a música, enquanto ela transcorre. Lembro-me de quando vi o vídeo pela primeira vez, e em que talvez pela diferença de gerações eu não apreciei por demais o resultado. Mas hoje me agrada, e há também quem opine que foi a melhor faixa de abertura de CD jamais feita pelo Iron (isso um gringo postou numa comunidade de fãs, mas tendo a discordar (quem pode superar Aces High?)). Não sei. Agradar, agrada, principalmente quando ouvimos a faixa com fones de ouvido, e reparamos no cuidado da gravação. Nota-se claramente o trabalho de ourivesaria nos arranjos, e nos solos, que permanecem em nossa mente. Não exagero, isso é mais do que óbvio.
Mas, entrando agora no mérito do vídeo, podemos notar que o enredo não tem aparentemente a ver com guerra (como salientado no começo deste texto). O sujeito que canta é um funcionário de uma empresa que engarrafa uma espécie de líquido mágico, que ele rouba e com o qual sai correndo. É interessante notar como nosso olhar não parece ligar muito para as figuras mal desenhadas, nem para os problemas de continuidade (que existem, por exemplo, quando o Bruce pega um túnel em fuga - de onde esse túnel apareceu, se ele estava correndo por uma plataforma sem ligação com paredes dos edifícios?). Ao contrário, deixamos nos levar pelas figuras, pelos desenhos, e pelo clima de perseguição reinante - até o fim. Ocorre que o fim não ocorre, porque, quando entram os solos, Bruce entra num ambiente fechado e se defronta com uma mulher com uma bola de cristal (onde aparece uma outra possibilidade, no caso, espécies de helicópteros que povoam posteriormente com sementes um novo mundo). Nesse novo mundo, aparece um garoto, por sua vez (Bruce enquanto jovem), que pega a proveta do líquido mágico e a joga à câmera. O resto é o Eddie, como um monstro, que domina tudo. Por sua vez, tudo volta, em seguida, à primeira imagem, em que Eddie controla o mundo em suas mãos (note-se que a fábrica que engarrafava as provetas fica nos Estados Unidos, no mapa), e que como gesto final o joga em direção à câmera. Sempre essa relação dura com o espectador (os vídeos do Iron sempre têm provocações desse tipo). Nada aqui parece corroborar a teoria de um único enredo para todo o CD, ligado a memórias de guerra. Nada.
Não sei (não tenho dados) se esse vídeo fez sucesso. Mas, entre os fãs de fóruns, a música é bastante bem cotada. A música parece assim escolhida para abrir o CD como que para atrair audiência e simpatia pelos lançamentos. E realmente ela é uma boa música de abertura. O significado fica a cargo de cada um, mas nesse vídeo, por outro lado, e nessa música como que o Iron parecia entrar em outro clima, bastante futurista, que em nada remetia ao título do CD (que iria ser preponderante). Mas era algo que já atraía.
These Colours Don't Run
Antes de falar da próxima faixa em si, comentarei algo sobre essa mania em que muitos fãs (recentes, também, mas em geral mais antigos) da banda entram de criticar os últimos CDs da banda dizendo que eles são enganadores, que não têm a pegada de outrora. Mas não entrarei numas de comparar o antes com o depois. Comentarei o próprio jeito desta faixa, que para os mais atentos parece sem graça e não mereceria sequer ser comentada.
Tenho o CD do AMOLAD e é fácil notar como a faixa destoa da anterior, e aposta numa pegada tranquila e algo dramática para falar de guerra, de uma determinada forma. Era uma faixa que não me agradava, sempre que a ouvia, e que parecia um prato requentado já servido anteriormente em outros CDs. Ocorre que, em si, a faixa se sustenta. Basta notarmos o tema, basta sentirmos o drama, basta abrirmos um pouco o olhar. Claro, as guitarras não estão com aquele brilhantismo que sempre agrada os maideníacos. A faixa também parece demorar para engrenar, o que faz em seguida, em diversos movimentos cavalgados, como sempre, no estilo ironiano. Mas é aí que temos que aguçar os ouvidos. Ela é adequada, ela passa o recado, ela está na medida certa para ele (o recado). É a primeira do CD que vai nessa vibração, mais lenta, mas passando o recado.
Mas por que consegue passar o recado? Porque a música é um lamento para aqueles soldados (no caso, da Inglaterra, mas podemos supor de todas as grandes potências) que são enviados a lugares longínquos, distantes de seus entes queridos, mas - o que importa - em conflitos em que as cores (verde e vermelho) "não mais funcionam desde a guerra fria", ou seja, em que o verde dos uniformes e o vermelho (creio que do sangue) não mais fazem qualquer efeito. Mas aí temos que pensar justamente nos conflitos. E é exatamente o que vemos. Conflitos no Oriente Médio em que a saída parece não mais existir, ou estar à vista.
Nesse sentido, os momentos de cavalgada, que parecem remeter a tropas indo para os locais, passam exatamente a ideia de algo que não tem fim e que não tem solução. Ou seja, conflitos (em que os países se envolvem) que não têm perspectivas. Até o ohhh ohhh ohhh no meio da música faz sentido, sendo assim. Pois não há nada o que exaltar, ao contrário. Peguem as letras e ouçam com atenção, fãs mais classicamente atento ao Iron de outrora, e dêem uma palhinha à banda. É uma boa música. Inclusive seu jeito entra em minha memória com bastante facilidade, assim como a imagem da guerra.
Antes que eu me esqueça, sobre a arte da capa: reparem que tanto os soldados deitados, mortos, como esses que Eddie, do alto do tanque, comanda estão mortos, com caveira e tudo, mas mantêm corpos intactos, embora com balas tendo-os atravessado. Não sei, não, mas esta faixa é aquela que melhor passa a impressão dessa imagem, a meu ver. Uma guerra em que mandam (eles) gente morta para morrer. Interessante.
Brighter Than a Thousand Suns
Continuando a leva de faixas relativas à guerra, de forma geral, nos deparamos então com esta "Brighter", que é explicitamente dedicada a comentar, de forma explicitamente poética (mais do que na maioria das faixas do grupo), a construção da bomba atômica, que de certa forma acabou com a Segunda Guerra Mundial (embora vídeos que conseguimos por aí não mencionem explicitamente o assunto).
Para termos uma dimensão do subject, é preciso fazer uma breve ideia dos esforços que os Estados Unidos dispensaram para realizar a bomba atômica que foi jogada, em duas levas, no Japão. Teriam sido necessários 45 kg de urânio enriquecido para ambas as bombas. Para isso, foram construídas cidades, e instalações imensas (como o maior prédio do mundo à época) cumpriram o papel. Era a tecnologia da época, a forma pela qual as potências tinham de conseguir o material. Precisamos entender também que a história dos anos seguintes girou em torno à bomba, com a corrida armamentista e nuclear e com a chamada Guerra Fria. O mundo nunca mais foi o mesmo, com a bomba atômica.
Mas isso não esgota o assunto. A própria bomba é uma revelação humana inestimável. Uma forma pela qual o ser humano controlou o átomo. A forma pela qual ele superou os limites da física para utilizá-la em função de seus próprios fins. Não eram mais pequenas bombas, ou bombas de destruição em massa. Agora estava em questão o futuro da humanidade (o homem podia destruir a Terra). O ser humano defrontava-se diante de si mesmo, e as próprias declarações dos envolvidos na bomba faziam crer que a coisa agora era, no limite, muito mais séria.
Mas, e a faixa em si? Bom, ela é ótima, nos meus critérios. Com aspectos apocalípticos (apocalipse é a palavra grega para revelação), com momentos em que a voz transcorre suave, meio que apenas sugerindo a dramaticidade do fato. Pois é assim que ela começa, e é também assim que ela se impõe pouco antes do refrão. Mas, para podermos aquilatar o sujeito, o assunto, é preciso analisar a letra, tudo aquilo que ela perpassa, seu potencial poético, e por que esta faixa está acima das demais (até agora, em minha opinião).
O homem, o ser humano, deveria ser a fonte de vida. Mas aqui escolhemos uma nova via. Escolhemos a via da morte. A letra começa assim, dizendo que nós não somos mais o povo escolhido. Não o somos porque agora decidimos trilhar um novo caminho. Não somos mais os filhos de Deus: resolvemos competir com ele. Questionar a física para fazermos o que não poderíamos. Resolvemos trilhar o Seu caminho, e experimentar a dor de destruir. Porque agora, com a bomba, temos tudo. A gravidade da faixa acompanha a dramaticidade do assunto, com uma pegada pesada, calma, mas muito forte. Não há dúvida quanto à gravidade do que comentamos.
Lemos (vemos/ouvimos) a remissão a dedos. Talvez o dedo necessário para resolvermos jogar a bomba. Talvez o dedo que os mísseis parecem assumir quando sobem em direção ao seu alvo em terra. Sim, faz sentido. Pois agora o ser humano assume um lugar altaneiro diante da realidade: pode fazê-la desaparecer a um gesto de vontade. A remissão à torre, da qual ele (o homem) cairá, pode dizer respeito a isso. Sentimos que, com a bomba, estamos em outro lugar. Mais arrogante, mais poderoso. E talvez mais ignorante do que acontece. O passo foi dado.
Sob o ponto de vista de quem torce, tudo é consequência. As mãos travadas (de nervosismo), as cidades arrasadas (Hiroshima e Nagasaki), o inferno em que viraram essas cidades (e que deixaram uma herança indelével na arte, sob a forma do butô, por exemplo, para narrar a dor), a convicção de que o passo dado conduz ao suicídio (de quem nele se envolve, como na Guerra Fria), e o sino, que marca as horas e o fim da história. Tudo remete a outras referências, de ordem artística, que não cabe muito comentar aqui. Incrível como o letrista soube condensar tudo em poucos versos. É lindo.
É quando chegam os refrões (que são dois). Um deles, quase repetido, e o outro, repetido à exaustão, um pouco depois. O primeiro, que começa com um "fora do universo", que parece estranho, pois é com a força do átomo que os norte-americanos (e depois os outros) conseguiram. Talvez seja fora de nosso universo, do que conhecemos. E o que acontece fora do universo? Nasce um estranho amor. Note-se que o funcionamento da bomba consistia na junção, por explosão, de dois átomos (ela funcionava, internamente, assim). Como se fosse uma união, não sagrada, mas uma união. Uma espécie de amor, cujo resultado é a explosão, a liberação de energia. Minha única dúvida descansa no verso que diz "trindade reformada" (trinity reformed), que não me esclarece muita coisa. É como se fosse a união da trindade, no sentido católico. Mas não me esclarece.
A questão (entrando em conjecturas, porque ninguém que tenha comentado me esclareceu realmente) é que a trindade diz respeito ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo (no sentido cristão ou católico), e ela diz respeito a uma coletividade (três) que se referem a uma só "coisa" (Deus), abordada de três formas. No caso, o Pai é o Deus criador, o Filho é Jesus, filho dele, que teria vindo para nos salvar, e o Espírito Santo (a pomba), a forma pela qual Deus contata ambos (a Jesus e ao mundo) por meio de Sua vontade. Nesse caso específico (da citação na música), é como se estivessemos falando de uma trindade que volta a ser unidade, que volta a ser Deus único, o Deus da criação, antes do qual nada existia. Considero, se querem saber, bastante plausível que a coisa seja essa mesma. Por isso a espalho entre vocês.
A comparação da explosão atômica com o Sol apenas prenuncia a estranheza de tudo se originar de um artefato jogado por asas que aparecem escuras. Pois há aqui sempre um jogo entre o pequeno e o grande, a explosão e a pequenez do ser humano - e de sua alma, que passa a se sentir dividida em meio à poeira nuclear, que também passa a ser dispersada em todos. É quando surge, após o primeiro refrão, novamente cantado, o refrão principal, apenas entrevisto numa voz suave, piano, muito calma, talvez o registro mais calmo da voz do Bruce em toda a carreira (pode concorrer com Hallowed be thy name ou em outras canções). Um registro que opõe tanto a força da voz como a escuridão (out of the darkness) com o brilho da explosão. Aqui, um fã do Iron coloca num grupo de internet a referência a algo que Oppenheimer (o cérebro por detrás da bomba) teria dito com o seu surgimento (da bomba, ou tendo ela sido jogada nas cidades japonesas), citando o Bhagavad-Gita: "Agora eu me torno morte, o destruidor dos mundos".
É quando entra a meu ver o momento mais lírico e sofrido da música, após os solos e com um ritmo de cavalgada característico. O momento em que "temos" de enterrar nossa moral, nossos mortos e nossa cabeça na areia. São apenas três pequenas frases, similares entre si, que pelo visto ajudam a fazer com que esta faixa esteja entre as preferidas dos maideníacos (ela tem nota 10 em grupos de fãs, com bastante distância de outros placares). Frases que delimitam o lugar da bomba em nós, pois estamos envolvidos no assunto, até o talo. Pois hoje vemos uma guerra civil sendo travada até as últimas consequências (na Síria), mulheres se matando para não serem estupradas, pais matando as filhas, e vemos todos assistindo a tudo de suas casas, sem nada para fazer, é claro, mas também sentindo que ultrapassamos os limites da moralidade. A gente nem se comove mais. Pois a bomba fez com que não nos comovêssemos, também. Pois vimos uma cidade inteira (duas) indo pelos ares, e consideramos hoje que faz parte.
Hiroshima
Oppenheimer (Robert) é também citado nesse trecho da música, e há referências a Satã. Neste caso, um aparte. Oppenheimer teria sido o pai da bomba, e teria afirmado algumas frases que ficaram para a história e que são repetidas ad nauseam. Aqui, o letrista fala "o que quer que Robert tenha dito ao seu deus", ou seja, fica em cima do muro, mas ao mesmo tempo afirma "sobre ele fazer guerra com o Sol", e nisso percebemos o quanto há de arrogância nisso tudo. E mesmo na criação da bomba. Seja como for, após a fórmula E=mc2, vem a óbvia "como fizemos Deus com nossas mãos". O resto é a corrida armamentista, solenemente citada na música, num clima de destino clivado de amor e ódio, com a incerteza do que fazer (mas com um resultado, "fusão fria e fúria"). É o momento de uns solos que deixam marca, pelo desespero. Um clássico. Agora entendemos por que tantos votam em 10 para esta faixa.
Há também diversas outras menções na música que vale a pena destrinchar. Como o próprio título dela, que pode ter sido retirado do mais conhecido (e premiado) livro do autor Robert Jungk, que se especializou no assunto armas nucleares e que no livro homônimo trata da disputa entre EUA e Alemanha pela primeira bomba. Ou (ainda) a própria ideia da trindade, que pode ter sido devida ao fato de a bomba em Nagasaki ter sido a única que passou por um teste (daí ser uma trindade de bombas). São muitas as referências. Uma letra repleta delas, até porque realmente merecia. E há também espaço para um lamento final, sob um sussurro do Bruce. A faixa, cumpre citar, é uma parceria entre Adrian, Steve e Bruce, e o papel aparentemente preponderante do primeiro faz acreditar que este álbum tenha muito mais de Adrian do que muitos podem imaginar.
The Pilgrim
Mas, após esse colosso, somos defrontados com uma faixa mais agitada, e cantada por vários dos membros da banda, e não apenas o Bruce. Uma faixa que, para o bom entendido, é claramente sobre as Cruzadas, mas que os norte-americanos ou anglo-saxões fazem crer que tenha a ver com o Mayflower, o barco que levou os primeiros peregrinos à América do Norte. O Bruce comenta, aqui e acolá, em entrevistas, que a faixa é claramente sobre as cruzadas. Já o Steve meio que desconversa, e fala que pode se referir a qualquer outro tipo de situação em que a peregrinação seja fundamental. Seja como for, a faixa tem um quê de corrida, e mesmo aparenta algo religioso, em determinadas partes, o que também convence os mais informados sobre sua origem.
Seja como for, é uma faixa que, quando eu a ouvi pela primeira vez, não me agradava muito, em especial no refrão, e que eu deixava passar. Mas, como tudo no que diz respeito ao Iron, é preciso ouvir novamente, ler, degustar e deixar curtir em nosso interior. Porque creio que uma mensagem eu já tenha deixado passar: o verdadeiro fã do Iron não espera que ele cumpra suas expectativas, como se voltasse às origens ou se remetesse às décadas de 70 e 80. O verdadeiro fã curte o Iron aos poucos, e consegue curtir quase qualquer música da banda. Foi isso que eu descobri ouvindo The Book of Souls. Que eu gostava de tudo ou quase tudo. Que era a banda que me satisfazia, e não simplesmente uma faixa ou outra. E que o motivo disso talvez radicasse nas origens e nas influências para os compositores/letristas. Pois é algo que vai lá longe, às influências para o Steve, o Dave, o Bruce, o Adrian, o Nicko e o Janick. E que eu considero que vai até o momento em que eu nem sabia da existência do Iron. A algo MUSICAL.
Cruzadas
Por outro lado, o verdadeiro fã do Iron é um pesquisador. Um sujeito que aprecia as escolhas temáticas da banda. Um sujeito que pesquisa nas referências, que encontra diamantes em meio às letras, que decora as letras, que vai atrás de livros, e que portanto devora a banda de muitos jeitos que o amante do rock simplesmente não curte, necessariamente. Disso eu fui também me apercebendo aos poucos. Pois, assim como a Sheherazade, eu aprendi história com o Iron, que me motivou a tal. Foi com a banda que eu descobri Alexandre, o Grande, que eu me aproximei da poesia inglesa, que me reaproximei do Poe, que descobri mais e mais, porque a banda, em algum momento da vida, virou para mim quase um pretexto para estudar, para me enfronhar na história, e para curtir a vida. Pois o verdadeiro fã do Iron é quase um nerd de história, é um cara que pesquisa, que cavouca, e que não se contenta até descobrir a fonte que motivou o seu gosto pela banda. Neste caso, do Peregrino, fui atrás do Mayflower, por exemplo, assim como de uma história das Cruzadas, e percebi o potencial poético da letra, chegando quase a me emocionar com ela (e olha que a faixa é um rock, bastante pesado, e cavalgante). Cheguei a me imaginar nas próprias cruzadas. Mas isso deve acontecer com quase qualquer um.
MayFlower
Termino comentando algo que me ocorreu só agora, que estou revisando o texto. Sou um imigrante. Não me sinto inteiramente como tal, mas é o que sou. Sou um peregrino. E é interessante perceber o quanto na faixa tem a ver com o que nós, família chilena, passamos nessa nossa jornada. É realmente diferente ver o mundo enquanto peregrino. Não enquanto peregrino religioso, claro, mas enquanto seres que não são do lugar em que se encontram. Pois foi o que aconteceu: fincamos raízes em outro país, e nossas convicções são, em grande parte, formadas por nossa peregrinação, e por não termos voltado mais (nem desejarmos voltar).
The Longest Day
Começa o texto sobre a faixa que estava dentre as minhas preferidas (hoje, com a audição de todo o CD, o panorama mudou). E começo aqui com um outro pequeno excurso pessoal.
Eu nasci em 1967, e no Chile, onde eu passei meus primeiros nove anos de vida (depois viemos ao Brasil), eu assistia bastante a tv. Nessa época, passavam faroestes, animações (das quais eu pouco me lembro) e filmes de guerra. Lembro-me claramente de um deles, Combate, com o legendário Vic Morrow, ator muito carismático que iria falecer num acidente de filmagem muitos anos depois. Lembro-me que eu assistia àqueles filmes e seriados com muita atenção, e que a cultura norte-americana conseguia me convencer do seu valor (as principais referências cinematográficas ainda eu as devo aos EUA). Pois foi desde essa época que eu passei a nutrir um fascínio imorredouro pela Segunda Guerra Mundial, algo que permaneceu até a época da faculdade, e bastante tempo depois, tendo feito cursos de estratégia, mas me atraindo muito especialmente por estratégia militar. Cheguei a visitar a Escola Superior de Guerra, o Sindacta, e conversado com generais e comandantes enquanto fazia meu curso. A guerra sempre me atraiu.
Mas os episódios da Segunda Guerra passaram a me atrair bem tardiamente. Li livros sobre estratégia, em especial sobre a Europa e a África, assim como a Ásia, mas meu conhecimento real de como tudo ocorreu aconteceu bastante tempo depois. Nesse sentido, fiquei sabendo a importância do front oriental bem depois, com livros sobre o assunto, e o próprio Dia D veio me atrair após visitar os Estados Unidos, e ao verificar como eles davam importância à própria mitologia militar envolvendo o assunto. Lembro-me de ter comprado um livro sobre o dia D e a guerra sob o ponto de vista deles, quando estava na Flórida, mas não o li, e a fixação permaneceu escondida, portanto. Mas a ideia da guerra, e do sofrimento envolvido nela continuou me atraindo fortemente. Pois foi esta faixa a que mais me chamou a atenção quando comprei o CD, logo após ele sair. Pois ela é didática, em música e letra, e nos leva ao coração do conflito dentro do ser humano. Algo que eu mesmo pude de alguma forma vivenciar, aos 6 anos, tendo assistido de camarote o golpe do Chile. Pois o medo é algo que nos acompanha a vida toda.
Normandia
Sobre a faixa, ela "quase" fala exclusivamente por si. Quase, porque suas soluções atraem imediatamente, e nos fazem adentrar no clima daquela batalha. Que, se formos pensar de forma fria, poderia ter sido considerada ganha de antemão - dado o curso da guerra; mas que, mesmo assim, precisava ser travada, por homens, muitos dos quais morreram, e outros que sobreviveram para contar a história. É aqui que a dramaticidade das soluções escolhidas pela banda fazem toda a diferença - e me fizeram chorar amargamente quando a ouvi pela primeira vez (de outras tantas). Vemos a faixa aqui, embalada com as imagens de um conhecido filme norte-americano, repetido ad nauseam em vídeos no Youtube. Aqui escolhi uma versão com legendas em espanhol para demonstrar como as sacadas da letra contribuem para causar o efeito final (isso, para quem não domina tão bem o inglês).
Note-se que a faixa começa com um ritmo de cavalgada típico do Steve para dar o clima de algo que estaria para acontecer. Uma espécie de dinâmica da espera, que depois iria necessariamente ocorrer. As guitarras assumem papel secundário, mas oferecendo a melodia que já entra em nossas mentes, enquanto ouvimos a voz do Bruce elencando itens que se avolumam e que nos mostram a cena. Nada mais cinematográfico, nada mais dramático. Antes de mais nada, é curioso como a letra da música se adapta perfeitamente às imagens. Pois, não sei se alguém tem esse dado em mente, mas parece que a letra foi feita a partir das imagens, e não as imagens colocadas após a música e a letra. É o que parece. Não irei aqui me ater tanto às imagens dispostas à nossa mercê. Prefiro ater-me a algum sentido que parece escapar, e para o qual eu possa afinal acrescentar.
A cena é clara. Os dados são palpáveis. Estamos dentro da cena. Os objetivos estão dados. E o contexto é óbvio para todos: alguns enviam muitos para fazer o que é necessário: derrubar as portas, passar essa muralha. O esforço é coletivo, claro, e levou muito tempo. Por muitos que não estão aqui. Mas NÓS ESTAMOS. Nós, que nos sentimos na cena, esperando para sermos submetidos à provação. Aqui, uma pausa. Quem foi submetido a uma cena pavorosa, de guerra, sabe como é essa sensação de estar no lugar errado. Mas não adianta depois reclamar: ALGUÉM tinha que estar lá. Tanto faz se num contexto de guerra civil (como o meu), ou numa guerra como esta que vemos se desenrolar à nossa frente, ou num contexto de violência doméstica. ESTAMOS ali, e não podemos escapar. Nosso destino é AQUELE.
Essa sensação de inevitabilidade é fantástica e pode enlouquecer. Pois é quando percebemos a ideia de destino, de termos sido destinados àquilo, e de não termos como fugir (essa expressão está na letra). Pois da vida não se foge. Tanto faz o que fez com que esses homens estivessem lá: eles não podiam escapar de si mesmos. É nesse momento que percebemos que estamos, afinal de contas, sozinhos, somente com o medo ao nosso lado. Porque é o medo que nos domina e que nos faz acreditar estarmos com alguém. Só o medo mesmo.
É justamente nesse momento que queremos sair dali, que rezamos por sobreviver, e que esperamos que tudo aquilo acabe o quanto antes. Sei como é essa sensação. Não me lembro como era, claramente, quando os aviões jogavam bombas, no Chile de 1973, mas sei que eu queria que acabasse. Mas acabava quando era para acabar. Não quando eu queria. Essa sensação de não termos controle da situação é chocante. Ainda mais, depois, quando me envolvi em outras situações também incontroláveis (que não cabe expressar aqui). É nesse momento que percebemos como o tempo demora para passar, como as situações de violência parecem se estender por décadas, como não temos controle do tempo nem muitas vezes de nós mesmos.
Mas a música continua, e os sinais de guerra se espalham em meio às palavras e à melodia que me captura como poucas vezes antes (excetuando os CDs clássicos dos anos 80). Percebemos que não estamos isolados em nossa força de vontade, e que nessa guerra queremos prevalecer. É nesse momento que entendemos que não somos joguetes do destino, mas que temos vontade, e que essa vontade é a daqueles que nos enviaram lá. Diferente, claro, seria para quem fosse obrigado a estar onde não queria. Mas estes são soldados, na frente de batalha, e pelo bem ou mal são jogados ali porque optaram ou foram obrigados. E não devem retornar sem conseguir o que querem ou para o que foram enviados.
A música passa por diversos momentos ali, alguns deles extremamente gratificantes, que passam uma impressão lírica bastante forte. Sentimos que estamos olhando tudo meio que de longe, agora, como se fosse um episódio histórico, e não nos envolvesse necessariamente. E é curioso: a música avança rápido, mal a sentimos passar, e logo chegamos ao fim. Com uma impressão clara: ninguém passa batido. Termina tal qual começou.
Out of the Shadows
Mas existem faixas aqui neste CD que passavam batidas, e de cuja existência só me faço fiel agora. Esta é uma delas. Não sei se pelo jeito como começa, nem se por ser uma balada (e eu não gostava de baladas do Iron, com raras exceções), nem se porque escapa do perfil do CD, com seus temas aparentemente chapados (veremos que de outra forma ela os aborda), sua forma crua de abordar os assuntos, ou se estou entrando em um clima mais esotérico só agora. Não sei. Sei apenas que até este texto eu não havia ouvido Out of the Shadows, ao menos na íntegra. Uma pena, porque acabei me afeiçoando bastante a esta pequena peça de 5 minutos e pouco.
Um pequeno excurso pessoal é que eu havia me afastado do Iron, na década de 90, em grande parte por causa de Wasting Love, balada que faz grande sucesso mas cujo clima e cujo vídeo me causavam náuseas (ao menos na época, porque a vi recentemente e gostei). Pois esta Out of the Shadows lembra essa música, e não pouco. Lembra a não mais poder. Por outro lado, a letra tem um quê de fatalista (no bom sentido) e de trama de destino, embalada por um clima esotérico, que hoje me chama bastante a atenção. Pois, tirando alguns aspectos mais cruéis, sou poeta, gosto de literatura, tenho me reaproximado cada vez mais do meio, e noto que este jeito (da música) vai numa aproximação do coração que, embora até combine com o resto do CD (em especial Lord of Light), me anima a cantar. Note-se, en passant, que o próprio Bruce tem comentado o quanto o AMOLAD é um dos CDs de sua preferência. Note-se também que aqui a voz dele não havia mudado muito, ao menos ainda, e que podemos sentir uma certa suavidade em seu toque, algo que ele foi perdendo com o tempo.
Mas vamos à música. Ela começa forte, numa pegada determinada, mas que depois se transforma nessa balada da qual falei. E a letra? Bom, a letra. Vamos a um excurso pessoal. Fiz Filosofia, e com esse peso eu entendo mais ou menos o que significa essa ideia de uma chave epistemológica, uma chave que resolver os enigmas. Pois esta faixa é, a meu ver, a faixa que esclarece o CD como um todo, seu título, sua pegada, e mesmo aquilo que vem depois, depois da faixa a seguir. Ou seja, a chave epistemológica. Pois esta faixa trata de nascimento e morte, de uma forma para lá de singela, que nos deixa a ver navios, na poesia de se imaginar um nascimento e tudo o que ele significa. Pois está tudo aqui, na letra desta música. Tanto que a gente ouve "quem irá nascer hoje?" e quase se emociona, entendendo que com o nascimento tudo começa, ao mesmo tempo em que tudo começa a terminar.
A faixa narra os momentos do nascimento e também da morte, e aborda tudo de forma altaneira, quase sobrenatural, como se pensássemos no assunto olhando-o de longe, mas como se o encarássemos de frente, também, porém. Fala-se de uma criança cigana, rei por um dia, que escapa das sombras e vai em direção ao Sol, e tudo é mais do que claro. Daí o AMOLAD, tudo uma questão de vida ou de morte, e de morte. O que dizer, afinal? A faixa é simpática, e me faz querer cantá-la, sem conseguir, e nela vemos como a voz do Bruce ainda permanece como sempre foi. A chave epistemológica do CD todo está aqui. Voilá.
Claro que por revelar a faixa não esgota nada. Como vemos no vídeo que posto aqui, e que expressa a tradução que um condenado fez dessa letra. Uma tradução que eu teria bastante preguiça de fazer. Notem as fotos do vídeo, se não me engano todas da época de gravação do AMOLAD. Nada ou pouco mais singelo. Mais amoroso. Notem também as imagens, segurar UMA auréola ao redor do mundo (só uma, ou seja, bem específico), ao mesmo tempo em que notamos como o dia é dourado, e prenuncia um novo amanhecer. Uma nova vida. Em seguida, quem são os príncipes do universo? Somos nós, é claro. E qual é o caminho? O de nossos fardos, claro, também. Pois estamos num círculo cristão, católico, diria, em que o peso determina o caminho e o peso que ele nos provoca. O imediatamente seguinte eu já comentei. Menos a ideia dos sonhos do passado e das antigas formas sendo feitas. O que isso significa? Claro, a vontade desses que geram o novo rebento, e ao mesmo tempo a reminiscência às antigas formas deles, dos que geraram o rebento. Ou seja, a ascendência. Nada mais bonito, mais legal.
Fico pasmo com as imagens, assim como - espero - todo fã também fique. Há beleza, claro, em tudo, mas também dor - é o nascimento! E tudo o que nós devemos suportar, para vivermos novamente - no outro. É lindo. Sonho empoeirado? Claro, o sonho de quem quis ver nascer! A luz que tremula nas paredes? Claro, do Sol nascendo e da vida nova. Nada de novo, a vida como deriva, e os questionamentos eternos do ser humano. Mas em seguida vemos a outra face, a morte, estendendo as mãos, quando menos esperamos. Clamando para a luz estelar nos circundar. Pois é isso o que é, a morte. Num gesto poético, claro! Provo então que aqui está a explicação para o título do CD. E com linda poesia. Posso até vê-los, a todos eles, os membros da banda, combinando o título do CD, enquanto refletem sobre todas as faixas, e sobre especificamente essa. Posso vê-los. A faixa tem um trecho que parece não combinar, claro. Mas logo volta ao que era antes. E a deixamos, solenes, sabendo o que ela significa.
The Reincarnation of Benjamin Breeg
Sempre, desde que me conheço por gente, gostei dos escritos de Edgar Allan Poe. Ainda tenho suas Histórias Extraordinárias, assim como seus poemas, numa coletânea que me marcou muito. Falo isso porque, tão logo vi (e ouvi) esta faixa, lembrei-me dele. Logo comentarei sobre as fontes desta faixa, que destoa claramente de todo o resto do CD, mais temático. Mas desde já deixo claro que o que me aproximava dela não era ela, em si, mas algo que ela expressava em seu jeito macambúzio de encarar uma vida. Lembro-me de pensar: quem seria Benjamin Breeg? O que teria ele feito (seus grandes pecados)? De onde adviriam seus poderes? Teriam eles algo a ver com aquela sensibilidade que uma garota percebera em mim (talvez a primeira que me viu como eu realmente era)?
Nessa época, eu estava casado e começava a entrar numa vibe bastante depressiva relacionada ao meu trabalho, ao casamento e à ausência de perspectivas, andando as coisas como andavam. A gente ainda não viajara a alguns países da América Latina. Eu ainda não me enfronhara (dedicara) à história latino-americana. Eu ainda não soubera o que havia acontecido no Peru, por exemplo. Não havíamos viajado ao Equador, que tantas marcas deixou. Eu tentava me conhecer e reconhecer em minha sensibilidade, e esta faixa meio que me dizia que o trabalho iria ser em vão. Que eu não conseguiria meu intento. Claro, a faixa dizia respeito a um tal de Benjamin Breeg, com seus problemas. Mas o jeito da faixa, seu caráter grave e sério, seu jeito de história de Edgar Allan Poe, me cativava. Eu sentia que precisava fazer alguma coisa. Eu sentia.
Mas quem seria Benjamin Breeg? Claro, todo mundo se perguntava, tão logo o CD havia saído. Muito foi conjecturado a respeito, e hoje existem diversos sites - inclusive um link na página dos fãs da banda - que falam a respeito. Benjamin Breeg seria, para a grande maioria dos maiores entendidos, uma espécie de alterego do Steve Harris, com uma biografia fictícia e diversos detalhes que remetem ao próprio baixista. Posto um dos links mais bem documentados aqui:
http://www.ironmaidenbrasil.com.br/2009/09/analise-verdade-sobre-benjamin-breeg.html.
Não irei repetir o que o sujeito fala no link. Para mim, essa - a explicação do alterego - é a explicação mais cabível para a identidade do Benjamin, para suas características algo macabras, para seus sentimentos de inadequação, para a questão dos sonhos e dos pecados, etc. Sendo assim, não temos que conjecturar mais. O Steve estava brincando conosco - como muitas vezes antes.
Ocorre que a faixa expressa uma série de impressões pelas quais não dá para passar batido. Impressões que nos aproximam do caráter de uma figura, de um personagem, e que nos fazem rememorar personagens à la Poe. Aqui entrarei um pouco na letra para mostrar por que a música tanto cativa, ainda (tendo dado origem a um single, inclusive). Bom, a faixa entra com uma melodia que cativa. Que nos faz entrar num universo muito particular. Com uma guitarra que deixa uma impressão funda, que me agrada muito (sempre agradou). Daí entra a letra, falando a respeito de uma vida que irá ser contada. Com uma estranheza profunda, de coisas reais para quem fala, mas aparentemente estranhas para quem ouve. Porque o real é real para quem fala, "sempre reais para mim", e de uma esperança, uma necessidade de alcançar o céu, algo muito comum para quem, como nós, está imerso nesta cultura cristã que nos embala desde crianças. Daí o narrador diz que vai nos levar numa viagem incômoda, e nos dizer "por quê", de um jeito bem tranquilo e bastante soturno. É algo que me cativou já no começo, e que me levava ao mundo de um Poe, de antiga memória (que eu o lia quando criança, e que tanto medo me causava).
Ocorre que, quando crianças, a gente tende a se considerar frágil e submetido às forças do mundo. Com o passar dos anos, essa sensação diminui, até o ponto de desaparecer. No meu caso, claro, aconteceu o mesmo. Mas esta faixa parecia, na minha primeira audição, recuperar algo disso que eu sentia, e que me fazia sentir tão frágil. É então quando a faixa engrena, e de forma que poucas vezes eu havia antes experimentado. Uma pegada de cavalgadura, como quase sempre, com o Iron, mas agora com um clima confessional em que entram referências fortes, como a maldições, perdões aos quais não faríamos jus, e tudo mais. Ocorre então aqui uma referência que ressoou por tempos a fio. Ou seja, que ele, o Benjamin, não será perdoado até que seja livre. Mas como assim? Pois é como se ele já tivesse morrido, e a lápide tão conhecida pela banda deixa claro que Breed morreu em 1978. Ou seja, é como se ele tivesse morrido e mais, como se tivesse reencarnado. Pois não estamos mais em 1978, estamos depois, ou talvez ele queira reencarnar. Não sabemos bem.
Sabemos apenas que o clima é de desespero, e que entramos facilmente nele. Ele sofre por culpas, ele paga os pecados, e paga-os porque teria vendido a sua alma! Quem de nós não imaginou alguma vez passar por esse pesadelo? Pois é. Tudo é gritado, ele pode ver coisas que não não podemos, e as vidas das almas pesam sobre ele. Ou seja, estamos num pesadelo como nunca antes. Notamos então que ele quer reencarnar para poder viver novamente. É o que parece claro. Mas confesso-lhes, eu não sei bem. Sei apenas que minha sensação de desespero se avoluma e que pareço desesperar com a música. É então que ela avança, claro, e de forma como nunca antes, não aos trancos e barrancos, mas com passagens memoráveis. É uma das faixas que, completa, eu mais aprecio de toda a carreira do Maiden.
Está mais do que claro, aqui, que a banda nos leva a uma ficção, e que entramos nela, fugindo da realidade que tão bem foi expressa em faixas anteriores. Esta faixa mostra também que estamos diante de um enigma, mas um enigma bastante tranquilo, que no meu caso me levou a um ápice de sensações por meio de um imaginário à la Poe, ao qual eles não se referem. Mas que a mim parecem claras. Poe está aqui o tempo todo presente, no sentido de ser um inferno pessoal, no sentido de haverem maldições contra o personagem, e no sentido de elas fazerem com que nos sintamos presos a um mundo do qual queremos escapar. Isso é óbvio. No final das contas, a faixa é quase uma brincadeira, conosco, feita pelo Steve e pela banda, e algo que podemos curtir de nosso jeito, particular, sem que precisemos nos PREOCUPAR com aquilo que vem a significar. A faixa rola fácil, e chega também fácil ao final. Uma história que serviria para vender, mas também para os fãs curtirem, com uma mitologia toda particular.
For the Greater Good of God
Mas o CD teria ainda bastante a fornecer. Como nesta longa faixa que ainda trata do tema guerra. Uma faixa que eu não ouvia com atenção, e que para os mais cruéis continua com uma certa temática pacifista, aqui falando de guerra e de Deus, como que nos convocando a pensar novamente no assunto. Ocorre que neste CD a temática guerra está a cada momento sendo tratada de uma forma. Seja enquanto batalhas, enquanto o envio dos homens a lugares distantes, enquanto tema específico (bomba atômica), etc. Aqui a guerra é tratada enquanto tal, no nosso envolvimento na energia que lhe cobra, e naquilo que podemos pensar a respeito quanto ao envolvimento do tema religião. Esta, no caso, é citada apenas uma vez na letra toda, mas perpassa os questionamentos e percebemos que é ela o foco principal.
A faixa em si começa tranquila, com questionamentos, acelera no uso da bateria num esquema duro e que não me atrai muito para depois engrenar em refrões que nos pegam pelo pé por estarem super bem colocados. Mas eu sinto que algo se perde. A emoção não me conquista, o tema não me deixa apalermado, muito ao contrário. Eu me sinto meio mal, com essa moral contra a guerra, enquanto a música avança e se torna um rock bastante bem conduzido. É uma das faixas que poderiam me fornecer mais, se eu compartilhasse da mensagem, se eu pensasse realmente na guerra como algo a ser tratado em respeito a questões religiosas - quando as guerras religiosas em geral são civilizatórias, não de credos, mas de formas de ver o mundo e de expansionismo geopolítico. Muito se perde nesta faixa, que não me cativa - muito embora possua muitos méritos. E o pior é que os vídeos que encontramos no Youtube tanto apostam em imagens com ela que é quase impossível encontrar um deles sem imagens. É uma faixa que, ouso dizer, me contraporá à maior parte dos fãs, que devem adorá-la.
Lord of Light
A segunda faixa mais fraca do álbum (na minha singela opinião) tem uma pegada diferenciada. Entra em questionamentos existenciais em meio a um contexto que também é o de guerra, e parece não engrenar (embora engrene, de forma que alguns fãs irão gostar). Houve momentos, nessa minha sua redescoberta, que eu achava haver nela alguma mensagem maior, algo que me motivasse a continuar. Mas não conseguia achar essa chave epistemológica. Desanimava, desanimava, e quase condenei esta faixa à quase inexistência de comentários. Pois muito ao contrário de riqueza, ela passava-me ela a impressão de algo mais a preencher espaço e a comentar a guerra sob o ponto de vista eminentemente existencial. Só isso. Estava enganado, claro. Porque pesquisei um pouco (apenas um pouco) e vi luzes (sem querer brincar com o título da música). Foi no grupo de fãs, em que alguns condenados comentavam em inglês de fundas raízes nas letras. Foi então que me motivei a rever o que havia pesquisado, e que engrenei o texto a seguir.
Quem é o Senhor da Luz? Deus? Não, nada disso. O senhor da luz é seu opositor, Lúcifer (cujo nome remete a esse tipo de coisa). Sendo Lúcifer, o Belzebu, o que estaríamos querendo apreender com essa brincadeira entre guerra e religião? Não seria nada virtualmente pacífico. Seria algo questionando nosso envolvimento com o Deus maligno ou com o mal no meio do mundo.
Antes de mais nada, um excurso sobre filosofia da religião. No começo, quando todos pensavam na origem do mundo, os gnósticos tinham uma teoria. Ela está explicada em vários livros clássicos sobre filosofia, sobre religião e sobre filosofia da religião. Essa teoria descansava na explicação de que, se um Deus bom teria criado o mundo como um todo, um Deus maligno teria criado o mundo concreto, esse no qual o mal se aloja. Os gnósticos não acreditavam em que o mal teria se originado da criação, mas acreditavam em alguma força alheia, um Deus maligno, a dar embasamento ao mal no mundo. Nesse sentido, nós viveríamos num mundo condenado ao mal pelo seu real criador, o Deus maligno. Claro que Satã, no cristianismo, assume outra cara. Satã é o anjo caído, o anjo que teria se revoltado contra Deus. Não é o criador das coisas, tais quais existem, com o seu bem e o seu mal entranhados. Satã é diferente.
Pois aqui, ouvindo com atenção a letra, entendo que o chamado Senhor da Luz, que é Lúcifer (e que é citado literalmente), é mais o Deus criador do mundo, o Deus que também cria o mal, o Deus gnóstico. E é a ele que tudo, a música toda, parece dedicado. Porque é como se no afã de descobrirmos existencialmente quais seriam nossos segredos nós estaríamos rendendo homenagem a ele, que é citado como Senhor da Luz. Ou seja, como se estivéssemos falando enquanto relacionados ao Deus dos gnósticos. Nesse sentido, a letra torna-se ainda mais revolucionária que o The Number of the Beast, porque aqui é como se estivéssemos realmente prestando tributo. E é curioso, porque a relação entre ele e nós se torna íntima, com segredos que só contamos para ele, com estranhezas com que nos deparamos, mas que não conseguimos decifrar. Porque claro, elas nos remetem a ele. E essas estranhezas dizem quem nós somos, e que não conseguimos ver de outra forma. Ou seja, somos algo que escondemos de nós, e somos dele, do Senhor da Luz. Somos algo que não podemos revelar.
A faixa é bastante agitada, a partir de certo momento, e nos conquista de várias formas (embora, numa primeira audição, eu tivesse deixado isso passar). Nessa parte mais agitada é quando acontece a prestação de contas, quando se fala em nome do ser humano, e quando a guerra entra em cena. Com corpos jogados ao léu, e sofrimento de montão. Com inferno (citado textualmente), ferramentas cuspidoras de fogo e corpos amontoados, assim como com a citação do novo milênio, que estamos vivendo. A descida ao inferno é citada também textualmente, e esse trecho é aquele em que Lúcifer aparece citado textualmente. Quando aparece o refrão, que assume o rosto de um achado de liberdade, de deixar a alma voar em direção do... Senhor da Luz. Ou seja, é como se aqui estivéssemos quase comemorando o fato de o mundo ser da forma que citamos. Como se estivéssemos com uma metralhadora giratória em mãos e entrando no clima de nos deixarmos levar por Ele. É muito interessante, até porque se diz "dê sua vida ao Senhor da Luz", ou seja, como se nos deixássemos levar, em alma, ao anjo caído, ou ao Deus dos gnósticos (como já citei).
Se parasse por aí já seria até suficiente. Mas em seguida, num trecho calmo, remetendo ao começo da música, reparamos numa letra que quase causa arrepio. Vejam só: "Não somos dignos de seus negros e ardentes olhos/ Nós reunimos demônios no espelho todos os dias/ A ponte das trevas lança uma sombra em todos nós/ E todos nossos pecados nós damos a você neste dia/ Outros esperam sua vez, suas vidas foram feitas para durar/ Use sua sabedoria como a luz (que) está (se) apagando rápido/ Liberte sua alma e a deixe voar/ A minha está presa, não pude tentar/ O tempo retorna novamente para punir todos nós". Ou seja, sem querer transcrever tudo, é como se fôssemos o sujeito escolhido para assumir o lugar do mal, de Lúcifer, e como se ele estivesse falando para outros, que podem ser livres (mas ele não mais). Ou seja, é como se estivéssemos na guerra, na batalha, e não nos restasse saída. Deixo a vocês o que se segue a esse trecho, para tentarem sacar o destino desse condenado que nos fala em primeira pessoa. Só dou destaque ao fato de que ele, quem fala, só confia no mundo de pesadelo em que vive. Nesse momento, a música entra numa vibração que não me atrai muito, mas que agora, com estas revelações, assume um caráter bastante interessante e até mesmo atraente. Em meio a experimentos de solos que eu não conhecia, seguidos por um ritmo cavalgado, com solos, para fechar a faixa. Tudo com um clima de destino inelutável, contra o qual nada podemos fazer.
The Legacy
Estamos no fim deste CD, aquele que eu comentei mais longamente, repleto de referências e excursos pessoais. Aqui, então, faço uso de meu último, que diz respeito à história que eu vivi - e que estamos nós, latino-americanos, condenados a sofrer.
Bom, nasci em outro país, o Chile. Vi uma ditadura, experimentei como ela começava, enquanto criança, e quando ela assumiu pude sofrer um golpe de Estado. A tal ponto essa violência me capturou o espírito que somente agora, com quase 50 anos, consigo aos poucos superar o trauma. Mas aqui gostaria de falar de outro aspecto. No Chile, sob Pinochet, pude também experimentar em primeira mão a cegueira de determinados parentes, quanto àquilo que acontecia. Uma cegueira que dividiu uma família ao meio, e que até hoje deixa marcas. A cegueira de seguir um líder que não se conhece o suficiente, ou que somente se conhece pelas marcas mais superficiais. Uma liderança carismática, construída aos poucos, em cima de pessoas que em geral não valem mesmo a pena. Nenhum líder praticamente vale qualquer pena. Isso sabemos aos poucos, quando pensamos com nossos botões, juntamos peças e entendemos aquilo que sentimos e aquilo que vemos ao nosso redor. Mas parte de minha família (não nuclear) era pinochetista, e outros permaneciam calados, que era época da mais absoluta repressão. Pois estava se matando e torturando adoidado.
Ocorre que aqui, em The Legacy, não estamos nesse contexto. Estamos ao que parece numa guerra, e num tempo e locais determinados (gás mostarda e tudo mais). Ocorre porém que nos sentimos acompanhando um elenco de oficiais - de negro - avançando rumo a um lugar que será o seu (deles) último. E sentimos que nesta brincadeira a manipulação dos destinos é óbvia, e que nos sentimos como testemunhas de gente que avança rumo a um Deus-dará. É nesse ponto que gostaria de me focar - até porque muitos comentários, nos grupos do Iron, vão nessa direção (no fato de a música narrar uma história com começo, meio e fim, não necessariamente conectada a guerras).
A música começa, muito apropriadamente, com acordes que lembram uma contação de história medieval; até a própria entonação de voz do Bruce vai nesse sentido. Dizem alguns até que conseguem imaginar algo propriamente medieval, com pessoas percorrendo a Europa em carrinhos puxados por cavalos, etc. e tal. Eu não sei. Sei apenas que a música desde sempre me surpreende. E parece levar mais longe do que simplesmente a guerras ou batalhas da Segunda Guerra Mundial, que é como quase todos ilustram em seus vídeos. É quando surge uma série de acordes lentos, que no começo aparece com guitarra, apenas, mas depois aparece com uma distorção estranha, forte, com um teclado ao fundo. Viajamos em nossa mente, porque vislumbramos outros horizontes, e pensamos em algo mais portentoso, algo que redunda a uma espécie de ópera.
Claro que tudo isso não aparece sozinho: vemos e ouvimos umas guitarras ou violões mais comedidos, repetitivos, que nos puxam para dentro de nós. Que não nos levantam tão longe. É quando começa a melodia puxada pela cavalgada naturalmente advinda de um Iron Maiden. Vemos ou imaginamos uma guerra, mas vemos também uma viagem interna, e algo que nos remete a algo mais profundo, a algo que vai além do gás mostarda, apenas, algo que nos leva ao horizonte do ser humano como um todo. Pois é quando começamos a vislumbrar o horizonte do ser humano, e a perceber que o legado é algo maior, algo que está para além de uma paz sonhada, e que descansa no legado que deixamos para o mundo, sabendo-nos limitados pela guerra e pela paz. É por isso que os intérpretes vão mais longe: é porque estamos para além de uma simples guerra, muito embora a música avance mais forte, como o Iron que todos conhecemos, e os solos a que tão bem nos acostumamos.
Mas vamos com vagar. Fiquemos por enquanto no trecho tranquilo, bem do começo, em que uma voz parece nos conduzir a uma história medieval. O que o homem fala? Bom, sentimos que somos guiados. Mas, mais, sentimos que somos guiados a algo que é alheio, que tem a ver com a história de outras pessoas. Quem? Homens de preto, muitos dos quais vão para não voltar. Enviados para a guerra, para jogarem vários jogos. Várias dicas também são espalhadas aqui e acolá. O gás amarelo (mostarda) parece remeter-se a bombas químicas, usadas na Primeira Guerra. Mas o que mais importa, aqui, aparentemente, é o tom com que tudo é dito. Parecemos falar de histórias como fábulas, em que as pessoas se envolvem na História mas seguem o rumo aparente de algo acima deles. Pois o gás amarelo "brincou com as mentes deles", "avermelhou seus olhos" e "removeu todas as mentiras". Pois é como se os fatores aqui citados revelasse algo sobre os envolvidos de que eles não sabiam, ou de que não faziam inteiramente conta. É como se a história que irá ser contada revelasse a verdade.
Nos grupos de fãs que eu consulto, existem diversos fãs que citam ditadores variados para comentar sobre o que a música está falando. Há quem cite guerras e batalhas em que o gás mortarda teria sido usado, antes e mesmo há pouco tempo (por exemplo, pelo ditador Saddam Hussein). Há também quem diga que isso no fundo é irrelevante, porque a música estaria (também com base naquilo que iremos comentar) se referindo a uma série de ditaduras, em especial ocorridas no século XX. Há quem diga que o gás se refere ao uso pela Alemanha, Japão e União Soviética (por exemplo, isso na Segunda Guerra). Outros preferem ater-se ao potencial mais poético daquilo que é pronunciado. Eu prefiro ater-me ao fato de que tudo isso parece revelar uma camada mais profunda no que é dito: uma camada quase irônica de algo que conduz muitos à morte, e cujo significado ficará para a história. Mas, mais concretamente, pela referência aos homens de preto (que não são coveiros, até porque os mortos serão eles mesmos), tendo a achar que tudo se refere bastante especificamente à Alemanha mesmo, durante a Primeira e Segunda Guerras. Até porque a ideia do ditador conduz a Hitler, embora este (como veremos) não descanse em paz como o homem que será descrito.
Pois quando a música começa a entrar na cavalgada somos apresentados a um homem no leito de morte. Mas é curioso, porque é como se estivéssemos defrontados enquanto o homem que jaz no leito de morte. Ou seja, como se ocupássemos o seu lugar. E ele está em questão. Com coisas que ele trouxe à baila de todos, frutos de decisões que ele tomou, com posturas que passam a cobrar um preço (confiança absoluta como algo mortal), em que nós teríamos sido enganados ou nos enganado. Ou seja, é como se um homem, que antes decidiu por nós, agora estivesse sendo colocado em questão, em suas posturas, em suas decisões, e no sangue derramado. Ou seja, é como se alguém que antes ditava agora fosse colocado em xeque. Há um momento na música em que tudo fica claro, o homem havia mentido, e agora jaz "enroscado numa rede de mentiras".
Breve momento para um excurso pessoal. Podemos, até o momento, pensar claramente em ditadores de muitos matizes. Mas gostaria de retomar o caso que eu mesmo experimentei, o do Chile. Antes, uma pequena explicação sobre história. Quando o golpe do Chile estourou, em setembro de 1973, a Junta Militar que assumiu viu-se diante de uma opção: prender, torturar e deixar a Justiça decidir ou mandar ver? Todos sabem, é claro, que a ditadura decidiu mandar ver, prender, separar, torturar ou simplesmente eliminar e não deixar rastros. Ocorre que essa postura, assumida depois pela Operação Condor, de perseguições e simples eliminações, passou a ser assumida por parte da sociedade chilena, no começo com uma certa vergonha, mas depois de forma clara e patente. Essa postura, claramente contrária a qualquer direito humano, foi uma opção que o Pinochet assumiu por conta própria e que conduziu o Chile ao país que atualmente existe, dividido, cindido, em que muitos ainda lamentam e muitos outros comemoram. Porque o ditador decide, e muitas vezes o faz contrariamente à opinião de muitos, e aos rumos da história por quem quer vê-la esclarecida. Nesse sentido, foi Pinochet quem assumiu a opção pela guerra civil, conduzida a guerra e fogo, e foi ele que levou a essa cisão. Ocorre que essas cisões ocorrem nas famílias, nas comunidades, em todo lugar. E é o ditador que as assume. E pior, quando ele morre, é quando ele deixa para os outros a sua culpa. Porque a culpa, se existe, se torna geral.
Nesse sentido, quando este ditador (o da música) deixa os resultados de suas decisões aos outros é porque ele deixa tanto o preço a pagar quanto a culpa, se é que ela existe. E é por causa disso que eu ainda acredito que a faixa tenha a ver essencialmente com o caso alemão. Pois é como se estivéssemos refletindo sobre o preço que a nação alemã pagou durante a guerra e depois dela em função do ditador que agora morre com suor no rosto (embora Hitler, como todos sabem, tenha se matado com Eva Braun). Claro que a música segue, e percebemos que as supostas mentiras a que a música se refere são também identificadas a profecias, "inconsciente das consequências" (frase que me faz acreditar ainda mais no caso alemão). Ou seja, um ditador que leva um povo às últimas consequências, num povo amarrado com promessas de paz que não ocorrem (porque não eram do seu alvitre). Porque, como a própria música diz, as promessas de paz eram formas de enganar, e as profecias, formas de levarem a todos ao inferno. Em seguida, a música refere-se a homens de ouro (talvez a raça ariana), e explica que o homem (que jaz) poderia ter dado a todos uma espécie de esperança, uma chance para um mundo melhor. Ocorre que o homem jaz agora no leito de morte, e seu legado está dado. Daí vem o título e a ideia geral da música.
Mas, como com quase tudo que acontece com o Iron, seria preciso haver uma moral. É o que fica para depois dos solos e de uma parte que, todos nós sabemos, se não atrai musicalmente, nos atrai (aos fãs), porque é Iron. Aqui, um parênteses. Eu chego à conclusão, como disse, de que o texto se refere à Alemanha. Mas, Primeira ou Segunda Guerra? A gente não sabe ainda. Pois, nos grupos de fãs, há quem defenda que é a Primeira. Outros preferem optar pela Alemanha de forma geral (ou seja, tanto faz). É aqui então que a dúvida é esclarecida (ou não). Pois é aqui que a letra fala do Armageddon, do Holocausto. Mas o fala enquanto "alguns diriam que o Armageddon está próximo". Tirando o resto, que não parece esclarecer, aqui entendemos que o Armageddon ainda estaria por vir. Ou seja, que não teria acontecido aqui, ao menos nesta guerra. Ou seja, que estamos (na música) em algum momento antes - na Primeira. Por isso, concordo com a maioria dos outros interpretadores. É uma música sobre a Alemanha na Primeira Guerra. Mas, qual ditador então seria? Não se sabe. Deve ser uma figura feita por ocasião, para dar um sentido a tudo.
Epílogo
Estamos no final do CD. Após transitarmos por dimensões sem conta no tema guerra, e podermos avaliar o trabalho na íntegra, sem precisarmos nos conter às reclamações de que "o Iron não é o que era" ou coisa que o valha. Todo real fã percebe essas dimensões, ou ao menos as intui, e meu trabalho aqui foi trazer algo do que está ali à luz, para todos nós, que tanto gostamos do Iron Maiden.
Up to the Irons! Até a próxima.
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