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Neurosis: Uma imersão no lodo que habita almas alheias

Resenha - Neurosis (Carioca Club, São Paulo, 08/12/2017)

Por Homero Pivotto Jr.
Postado em 16 de dezembro de 2017

Estar na primeira passagem do Neurosis pelo Brasil - em 8 de dezembro, no Carioca Club, em São Paulo - foi uma neura. Dessas viagens das boas. Uma trip que, para este narrador, começou em Porto Alegre com uma ambientação 'a sun that never sets' (sol nascendo) e seguiu por São Paulo num clima mais 'enemy of the sun’ (várias nuvens e vento) e, em seguida, 'the eye of every storm' (mais vento e chuva pra caralho). Mas foi tudo times of grace (que dia, migues!). Tanto que a sombra do show protagonizado por Scott Kelly (voz e guitarra), Steve Von Till (voz e guitarra), Dave Edwardson (baixo e voz), Noah Landis (teclados) e Jason Roeder (bateria) vai encobrir a memória por um longo período. Talvez até 'the end of the road'.

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Seria fácil seguir com trocadilhos, eles eram quase inevitáveis durante a sexta-feira, data da evento. Isso porque a neurose de ver o Neurosis era uma constante em tempos pré-show (ouvir, falar e ler sobre a banda fez parte do cotidiano) e tudo parecia remeter ao tema. Títulos dos discos ou das composições do quinteto serviam para ilustrar vivências.

Complicado é descrever a experiência que foi assistir aos caras. Não se trata apenas de mais uma apresentação de rock. Bagulho é uma imersão no lodo que impregna a alma de cada um. Um tipo de força que te coloca mergulhado numa sonoridade densa e sorumbática, mas que te dá ar suficiente para seguir pela enxurrada de graves, ruídos, distorções, microfonia e sensações.

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Narrar isso é um exercício que não pode se resumir em listar as músicas do setlist. É preciso, ao menos, tentar ambientar o que foi essa comunhão de dissonância.

Então, fica o alerta de que este texto é mais um relato pessoal com percepções do que uma resenha. Até porque a partir de determinado ponto, para sentir-se mesmo parte daquela congregação regida pela música torta, era preciso se entregar à ocasião em vez de fazer anotações para um futuro relato.

Além da atração principal, as aberturas da Saturndust e do Deaf Kids também fundamentaram o ritual catártico.

A Saturndust deu início à seara de perturbação. Despejando sons lamacentos e pegajosos, encruados de sujeira sludge/doom encharcada pelo ranço de nomes como Eletric Wizard, o trio fez o clima pesar na medida. Em um trecho da performance, o baixo caiu, e a queda foi desculpa para o instrumento ser espancado a chutes em meio a uma sessão de arrastamento de riffs.

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O Deaf kids subiu ao palco gritando distopias configuradas na forma de lamentos ruidosos. Tudo embalado por reverberações e batidas primatas. Hipnótico e psicótico. Enquanto o trio mimetizava uma usina de ecos, barulhos e texturas sonoras pouco ortodoxas, parte do Neurosis assistia atento ao que se passava. O DK é cada vez menos uma banda tradicional, e cada vez mais um bando de desajustados com a proposta de executar colagens minimalistas que grudam na mente e retumbam pelo corpo. Interessante como a voz mergulhada em reverb se agrega às composições, ocupando espaços que um vocal nos moldes normais não preencheria.

Do Neurosis, nada menos do que uma atuação impactante era esperado. E a entrega dos californianos foi, deveras, um ataque aos sentidos. Uma avalanche em forma de música que não se atém a rótulos. Denso e intenso. Devastador ao mesmo tempo que revigorante. Um espetáculo de satisfação e perplexidade.

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Era comum entre o público a expressão de alegria por estar ali, mas também de incredulidade. Não era tão simples realizar que o Neurosis estava ali, diante de olhares ávidos, mostrando seu estilo forjado a fogo, intensidade e experimentalismo.

Havia gente que parecia perdida, tentando se (re)conectar com o mundo ou consigo mesmo por meio daquela musicalidade estranha. E foi só a intro de 'Lost' vazar pelos PAs para que errantes se encontrassem. O repertório foi de labaredas que compõem um incêndio gigantesco: teve 'The Web', 'Shadow Memory', 'Locust Star', 'Fire Is the End Lesson', 'Water is Not Enough', 'Broken Ground', 'Takeahnase', 'At End of the Road', 'Bending Light' e 'Stones from the Sky'. Mas, neste caso, contar como foi a execução talvez seja mais imprescindível do que elencar quais obras foram executadas. Algumas impressões podem auxiliar na compreensão do que se aconteceu em cerca de 1h45min. A ver.

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Toda a banda parecia muito disposta a compartilhar aquele momento. E isso vale ser mencionado. Antes do show, Dave Edwardson confraternizava com fãs e circulava pela plateia. Aliás, que atuação desse tio do cabelo momentaneamente verde. Os backing guturais pelos quais ele é responsável anunciavam trevas e caiam com a força que se espera de uma banda tão pesada. Sua participação em 'Locust Star', faixa que apresentou o Neurosis à uma parcela considerável de admiradores, soterrou o espaço com urros.

Ao lado dele estava Scott Kelly. Discreto e imponente, não economizou palhetadas que soavam cortantes nem gritos desesperados. Ao mandar brasa em algumas das tradicionais bases repetitivas e monolíticas que nos enfeitiçam, fez isso com a autenticidade de quem incorpora o que se propõe fazer. 'Broken Ground' e 'Fire is the End Lesson' foram provas disso. Seu vizinho de palco, Steve Von Till, parecia o mais à vontade. O mais pilhado. Não poucas vezes duelou com os amplificadores empunhando a guitarra plugada neles. Em algumas situações, recorreu aos pedais de efeito para complementar a ofensiva às áreas sensíveis do cérebro. Nos encaminhamentos finais de 'Takeahnase', no trecho em que segura um dedilhado minimalista e grudento, foi um legítimo mestre de cerimônias: uniu a todos por meio do fluxo de energia que emanava com a simplicidade daquelas notas.

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No canto esquerdo estava Noah Landis, cara que praticamente ressignificou o uso de teclados. Em vez de disparar melodias de seus dispositivos, bombardeia os ouvintes com barulhos diversos, dos etéreos aos explosivos. Performático, castigava seus equipamentos descendo-lhes o braço. Em 'Stones from the Sky' - na qual tinha-se a impressão de estar em algum culto ecumênico e, de repente, ser surpreendido por uma chuva de meteoros -, ele mostrou como é imprescindível para aquilo que o Neurosis se tornou e representa. Ao fundo, um pouco distante dos holofotes, Jason Roeder fazia brilhar estampidos de batidas fortes e seguras. Vem dele o impulsionamento percussivo que mantém a máquina operando com mais força do que velocidade. Na abertura, com 'Lost', o bumbo batia firme na sinapse e ecoava pela carcaça. Ao fim da performance, Reeder ficou em pé atrás de seu kit e saudou a turba em sinal de agradecimento.

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Enquanto o mundo se afunda em decadência, foi uma honra testemunhar um culto tão envolvente. Ver, ouvir e sentir o Neurosis em ação baliza todo o legado criado por eles em mais de três décadas. Dá a impressão até de que o material em estúdio, por mais marcante que seja, não consiga dimensionar o abalo que a banda causa ao vivo.

Almas lavadas, vidas zeradas. Souls at zero.

Publicado originalmente no portal Zona Punk
http://www.zonapunk.com.br

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Outras resenhas de Neurosis (Carioca Club, São Paulo, 08/12/2017)

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Sobre Homero Pivotto Jr.

Pai do Benjamin, jornalista e assessor de imprensa. Idealizador e apresentador do videocast O Ben para todo mal (que entrevista pessoas ligadas à música para falar sobre filhos e som). Vocalista da Diokane e da Tijolo Seis Furos (TSF).
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