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AC/DC: Como uma banda conseguiu conquistar (tarde) meu coração

Por Rodrigo Contrera
Postado em 29 de julho de 2016

Metade da década de 80. Eu era um garoto, apenas, e terminava meu colegial numa escola da Barra Funda, em São Paulo. Sempre fui um dos menores da sala, e um dos mais estudiosos. Mas não era discriminado por ser CDF. Eu simplesmente era assim, e passava meus dias indo e voltando da escola, prestes a fazer cursinho, para prestar vestibular.

Mas eu precisava curtir a vida de moleque. E eu curtia, no primeiro e segundo colegial, indo à casa do meu melhor amigo, o Carioca (lembro do nome completo dele, mas não quero ser indiscreto), para ouvir música, pegar a espingardinha de chumbo dele e atirar nos ônibus que passavam por ali e nas bundas dos desprevenidos. Ele começava a gostar de rock. Eu também. Não conhecia ainda o Iron Maiden, que descobri sozinho, mas ele me mostrava a coleção de LPs que ele tinha de rock. Lá havia Def Leppard, Scorpions e... AC/DC.

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Não me lembro bem daquelas tardes. Sei que se passavam num apartamento que a mãe do Carioca comprara perto da Paulista. Eu ia lá e ficávamos ouvindo. O Carioca era um cara singelo, tranquilo, e não me lembro de trocarmos muitas impressões sobre o que ouvíamos. Mas eu achava o Scorpions do caralho. E o AC/DC, bom... o Carioca dizia que era genial. E eu confesso, não conseguia entender. Ouvia aqueles acordes simples, via o Carioca dançando que nem um maluco, via as capas, aqueles sujeitos últimos da classe, e eu não conseguia realmente gostar. Mas me lembro bem: o Carioca dizia: cara, eles são ou não geniais?

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Passei uns 20 anos com isso na cabeça. Minha vida avançou, claro. Eu ouvi muito heavy metal, ouvi os neoclássicos, fui defrontado com o Joe Satriani, ouvi muita coisa mais, e meio que o rock ficou lá, naqueles idos, em que via um W.A.S.P. na tv, encarava alguns minutos o Lemmy cantando Ace of Spades naqueles programas pop, e ia me entrosando (mal) com a vida, arranjando emprego, arrumando encrenca com minhas motos, terminando outras graduações, me casando, me separando, e assim por diante.

Ocorre que na minha segunda graduação (para a qual tive que fazer novo vestibular para concluí-la), eu estava, digamos, me desencaminhando. Já não era o CDF da classe (até porque o perfil da classe havia mudado), eu já escolhia de outras formas minhas companhias (que eram gente estudiosa, pero não da forma tradicional), minha imagem perante os professores era diferenciada (eu era mais um rebelde que de vez em quando se metia a ser rigoroso), em suma, eu já era da turma do fundão.
Não sei como se deu, nessa época, mas de alguma forma o AC/DC voltou à minha vida. Sob a roupagem do Back in Black ou do Razor's Edge, não me recordo exatamente. Sei apenas que aqueles caras, não diria mulambentos, mas que não faziam mais o gênero predileto do CDF de sempre (eu), começavam a fazer sentido em minha cabeça. Eu via aquele som e ele entrava e mexia comigo.

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Eu trabalhava nessa época em uma editora de revistas técnicas e viajava bastante. Pois então. Eu levava os CDs do AC/DC que passara a comprar e cantava durante as viagens naquele timbre inconfundível do Bon Scott ou naquela voz rasgada do Brian Johnson. Entendia as letras, sim, mas, mais que isso, eu começava a entender aquele tipo de postura. Mas ainda não bebia. Eu iria beber muito mais tarde, já separado, quando fui me meter com o teatro. Mas havia uma raiva naquilo tudo. Uma espécie de raiva surda. Que me transmutava. Eu mudava ouvindo aquele som. E aquele som mudava ao ouvi-lo continuamente.

Meus valores também mudavam. Não haviam mudado por completo, mas eu não era mais o garoto de antes. Isso se deu muito aos poucos, mas creio que (para a minha então mulher) de forma meio traumática. Eu, que havia sido um homem tenro, me tornara uma pessoa um pouco dura demais para ela, distante, descrente, talvez um pouco amargo, e ela tinha dificuldade com isso. Não à toa pediu separação, eu entrei em crise, mas não consegui levar com traquejo os anos seguintes, e depois, em 2011, nos separamos. Eu fiquei na merda.

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Claro que o AC/DC nessa época fazia todo o sentido para mim. Eu entendia como era sentir-se de lado, sacava a dor que era perceber-se de fora, percebia como meu comportamento de alguma forma irritava e eu me irritava demais, eu começara a me tornar uma pessoa-problema. Não tão problema assim, porque meu perfil de CDF não caíra de todo no esquecimento, eu tentava ler, ainda vislumbrava saídas pelo estudo, mas eu já não era aquela pessoa de antes. Eu era um cara meio problemático que gostava de rock pesado, que entendia essa questão do ensimesmamento, da ausência de lugar, que por outro lado se animava com coisas que a muitos causava uma certa aflição, e que imaginava cenas com trilhas do AC/DC. Eu já me envolvera com o teatro, e rascunhava em papeis algo que pudesse dar vazão à minha imaginação. Sob a égide de um Thunderstruck, por exemplo. Ou cantando, de forma bastante doída, um Ride On, com o Bon Scott, sempre inesquecível.

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Eu era, de alguma forma, uma alma desencantada. Que bebia (forte) da alma do blues, retirada do próprio, ou do rock que me invadia de todos os cantos, inclusive da Austrália, terra daqueles caras. Não era, digamos, um Angus Young, dando uma de garoto rebelde, mas conseguia passar minhas noites em bebedeiras, e só não fazia ridículo porque tinha muitos amigos em volta. Tinha quase todos os CDs da banda, e ficava relembrando aquelas tardes com o Carioca, sem conseguir entender por que esses caras (do AC/DC) eram gênios. Mas agora tudo era óbvio. Todos eles, até o Cliff, que recentemente se aposentou, sempre foram gênios. Tudo em nome do rock.

Hoje as gerações mais recentes encaram a banda com bastante naturalidade. Não choca a ninguém (exceto aos meio bobões, e eu, embora recém-convertido, não cheguei a isso) os chifres que o Angus faz crer "ter", nem as mensagens, nem as menções a bebedeiras, ou a gente largando outros no meio do caminho, nem nada. Nada parece mais chocar. Virou uma espécie de alfabeto absolutamente indispensável a todos, a banda. E tornou-se intocável. Ninguém pode sequer arranhar a imagem de qualquer um. Todos envelheceram, é claro. Mas continuam os moleques de sempre. Aqueles que eu não reconhecia. E em um dos quais eu quase me tornei.

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O AC/DC fica, enquanto eu passo. E fico de boca aberta.

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Sobre Rodrigo Contrera

Rodrigo Contrera, 48 anos, separado, é jornalista, estudioso de política, Filosofia, rock e religião, sendo formado em Jornalismo, Filosofia e com pós (sem defesa de tese) em Ciência Política. Nasceu no Chile, viu o golpe de 1973, começou a gostar realmente de rock e de heavy metal com o Iron Maiden, e hoje tem um gosto bastante eclético e mutante. Gosta mais de ouvir do que de falar, mas escreve muito - para se comunicar. A maioria dos seus textos no Whiplash são convites disfarçados para ler as histórias de outros fãs, assim como para ter acesso a viagens internas nesse universo chamado rock. Gosta muito ainda do Iron Maiden, mas suas preferências são o rock instrumental, o Motörhead, e coisas velhas-novas. Tem autorização do filho do Lemmy para "tocar" uma peça com base em sua autobiografia, e está aos poucos levando o projeto adiante.
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