A farsa da falta de público: por que a indústria musical insiste em abandonar o Nordeste
Por Otaviano Lacet
Postado em 19 de dezembro de 2025
A desculpa de que "não há público" para grandes turnês no Nordeste é uma mentira conveniente. O que existe, na verdade, é uma indústria covarde, centralizadora e viciada nos confortos do eixo Sudeste - às custas de uma das regiões mais vibrantes, conectadas e culturalmente ricas do país.

O Clube Fechado das Turnês Brasileiras
Há décadas o circuito de grandes turnês no Brasil funciona como um clube fechado: o Sudeste concentra tudo, o Sul fica com o que sobra, o Centro-Oeste participa por acaso e o Nordeste, quase sempre, é tratado como um território inviável. O discurso é repetido como mantra corporativo: "não há público suficiente". Mas isso nunca foi verdade. O que existe é uma estrutura de mercado viciada que prefere culpar o público em vez de assumir sua própria falta de visão, coragem e profissionalismo.
A alegação de que o Nordeste não teria demanda para turnês de grande porte tornou-se um dogma empresarial repetido sem análise, usado para encobrir preguiça, preconceito e desorganização. É mais fácil declarar um público inexistente do que admitir a incapacidade - ou a total falta de vontade - de construir uma rota nacional que realmente inclua o país inteiro.
A Ecologia da Performance: Como a Indústria Decide Onde a Música "Pode" Chegar
No livro How Music Works, David Byrne (lendário vocalista da banda Talking Heads) explica que turnês não seguem geografia populacional, mas sim uma ecologia complexa: infraestrutura mínima, percepções de risco, tradição industrial e zonas de conforto. O show business brasileiro transformou o Sudeste nessa zona exclusiva - e nunca mais voltou a olhar o mapa com honestidade.
A ironia?
O Nordeste possui tudo aquilo que Byrne aponta como vantagem competitiva: capitais próximas, fluxo turístico intenso, estradas funcionais, aeroportos movimentados e uma cena cultural viva. Salvador, Recife, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Maceió, Teresina e Aracaju formam um circuito natural - menor e mais prático que inúmeras rotas europeias. Ainda assim, a indústria age como se fosse impossível incluir a região.
Biohazard em Natal: A Noite em que a Mentira Desabou
Em 22 de outubro de 2011, a banda norte-americana Biohazard subiu ao palco em Natal (RN) e, sem saber, destruiu uma das maiores farsas do mercado musical brasileiro. O show tinha tudo para dar errado: pouca divulgação, espaço inadequado, descrença generalizada e meia cidade achando que seria uma banda cover.
Mas quando ficou claro que era o Biohazard real, a mobilização foi instantânea. O local precisou ser trocado às pressas, os ingressos evaporaram e as calçadas ao redor ficaram lotadas de gente tentando ouvir o show de fora. Foi um terremoto cultural.
Aquele show provou, de forma incontestável, que público nunca foi o problema, mas sim quem insiste em subestimá-lo. Agora, imaginem por um instante o que esse show poderia ter sido e alcançado se tivesse contado com uma campanha de marketing regional articulada (abrangendo também capitais próximas, como João Pessoa, Recife e Fortaleza), inserções na TV (meio dominante em 2011) e vendas online bem exploradas... bem, basta dizer que, sem contar com nada disso, o show conseguiu ser um daqueles raros eventos que reorganizam a cidade ao redor de si.
O Biohazard não provou apenas que existe público, mas, principalmente, que ele é muito maior do que a indústria supõe - e que o que falta, invariavelmente, é competência para tratá-lo com respeito.
Humberto Barros e o passado que já não explica o presente
No artigo "Por que Mutantes não tocavam no Brasil todo nos anos 1970?", publicado pelo Whiplash.Net, o tecladista Humberto Barros - que, além dos Mutantes, já tocou com Frejat, Heróis da Resistência e Kid Abelha - lembra que, naquela época, fazer uma turnê nacional era quase uma aventura suicida. Estradas ruins, vôos caros, equipamentos enormes e frágeis, ausência de empresas especializadas e pouca mão de obra qualificada tornavam praticamente impossível levar um show para além do eixo Rio–São Paulo sem correr o risco de naufrágio financeiro.
Esse relato faz todo sentido para os anos 1970. Mas, insistir na mesma justificativa hoje, soa mesmo como mera preguiça intelectual, pois o panorama mudou completamente. Hoje existe um ecossistema logístico profissionalizado, composto por empresas de transporte de equipamentos (que trabalham com rotas otimizadas, seguros e prazos extremamente precisos), locadoras de som, luz e painéis de LED com suporte técnico permanente, fornecedores de estruturas de palco, tendas, arquibancadas e backstage completo, além de equipes de montagem e desmontagem altamente especializadas.
Ao redor disso, surgiu ainda uma camada de agências corporativas focadas exclusivamente em eventos e turnês, responsáveis por organizarem passagens, hospedagem, deslocamentos, fretamentos, cargas aéreas e cronogramas simultâneos - exatamente o tipo de infraestrutura que simplesmente não existia na época dos Mutantes. Esse tipo de serviço, antes restrito a megaeventos internacionais, tornou-se comum e amplamente acessível ao mercado nacional - e o Nordeste não é uma exceção, muito pelo contrário.
No livro "Música Ltda.: O Negócio da Música para Empreendedores", o pesquisador Leonardo Santos Salazar descreve o papel da produção executiva, que funciona como cérebro dessa engrenagem moderna: coordena ensaios, cronogramas, cargas, horários, equipes, montagem, passagens de som e toda a operação técnica que mantém uma turnê viva. Esse profissional - e a rede que o sustenta - simplesmente não existiam de forma disseminada no passado.
Quando somamos tudo isso - logística profissionalizada, fornecedores especializados, equipes técnicas experientes, redes consolidadas de transporte e agências habituadas ao ritmo do showbusiness - fica difícil repetir, em 2025, a mesma desculpa que valia nos anos 70. O que antes era limitação material, hoje é, quase sempre, limitação mental. A infraestrutura chegou. O público sempre esteve lá.
Quem não chegou ainda foi a indústria.
O medo do desconhecido: a psicologia que move (e paralisa) as turnês
Na obra "All You Need to Know About the Music Business", Donald Passman explica que turnês não são apenas cálculos financeiros - são decisões emocionais. Quando um território é desconhecido, ele é percebido como risco, mesmo quando os números reais apontam lucro. E é exatamente isso que acontece no Brasil.
O Nordeste não é inviável: é desconhecido para uma indústria acostumada ao conforto do Sudeste. E, para um setor avesso a incertezas, o desconhecido vira sinônimo de perigo.
Essa psicologia aparece em diversos casos concretos:
Produtores do Sudeste que nunca pisaram no Nordeste recusam propostas baseadas em boatos e preconceitos, ignorando dados reais de público;
Festivais consolidados como Abril Pro Rock (PE), Mada (RN), Ponto CE (CE) e Feira Noise (BA) atraem multidões, mas continuam sendo tratados como "praças secundárias";
Casas de show de alto padrão - Classic Hall (PE), Armazém (CE), Centro de Convenções (BA), Arena das Dunas (RN) e Teatro Riachuelo (RN) - têm infraestrutura comparável às do Sudeste, mas ainda carregam o estigma de serem "riscos";
E produtoras do Sudeste, ao operarem no Nordeste sem conhecer fornecedores e dinâmicas locais, cometem erros de logística, perdem dinheiro e depois usam esse fracasso como "prova" da inviabilidade da região.
Enquanto isso, todos os elementos concretos da logística moderna estão disponíveis: backline profissional, rotas de transporte consolidadas, cargas rápidas (por via aérea, terrestre e até marítima), mão de obra técnica qualificada, hotéis preparados, catering, geradores, grids, iluminação, LED e fornecedores especializados capazes de montar grandes estruturas em prazos curtos.
Ou seja: não existe mais qualquer limitação técnica que justifique a falta de turnês, seja no Nordeste ou em qualquer região brasileira. O que existe é medo. E medo, ao contrário de logística, não se terceiriza.
O mais irônico é que, quando turnês finalmente arriscam o Nordeste, elas funcionam magnificamente:
Paul McCartney lotou Recife;
Elton John lotou Fortaleza;
Guns N' Roses lotou Fortaleza;
Iron Maiden lotou Fortaleza;
Ariana Grande lotou Fortaleza;
Todos, sem exceção, desmentem a tese da "falta de público".
A hélice da inércia: por que a indústria continua ignorando o Nordeste
Em "Música Ltda.: O Negócio da Música para Empreendedores", Leonardo Santos Salazar descreve o conceito de trajetória herdada - a tendência do mercado de repetir práticas antigas por hábito, não por eficácia. É essa lógica que mantém o Nordeste fora das grandes turnês. Como a região recebeu menos shows no passado, transformou-se, por puro costume, em "praça alternativa", e essa percepção nunca foi revista, apesar de o país ter mudado completamente.
Os dados recentes escancaram a distorção. Um estudo nacional sobre comportamento do público mostra que 55% dos brasileiros afirmam deixar de ir a shows porque a maioria das apresentações está concentrada no Sudeste, provando que a centralização não é resultado da demanda, mas um fator que a inibe. Já o relatório Mapa dos Festivais 2024 confirma que 49% dos patrocínios de festivais de música no Brasil estão no Sudeste, enquanto o Nordeste recebe uma parcela drasticamente menor - um indicativo direto de desigualdade na distribuição de recursos e oportunidades.
A hélice da inércia funciona assim: não se investe porque "não há histórico", e não há histórico porque não se investe. O mercado cria o problema e depois o usa como justificativa. É um ciclo viciado que se retroalimenta. E enquanto a indústria insiste nesse roteiro ultrapassado, o Nordeste segue pronto - com público, estrutura e demanda - esperando apenas que o mercado abandone a inércia e finalmente olhe o país inteiro.
Um Brasil particionado: quem recebe cultura - e quem recebe desculpa
A desigualdade cultural brasileira não é apenas uma questão de logística ou de mercado - é um fenômeno político, histórico e simbólico. A concentração de turnês no Sudeste moldou não só a economia da música, mas a própria percepção de onde "vale a pena" investir em cultura no país. Criou-se, ao longo de décadas, uma espécie de cartografia emocional: há lugares onde a cultura "acontece", e lugares onde a cultura "não compensa".
Esse mapa é falso - mas é conveniente.
Quando turnês ignoram o Nordeste, o impacto não é apenas musical:
É econômico, porque cidades deixam de movimentar turismo, serviços, empregos temporários e toda a cadeia ligada a eventos;
É simbólico, porque reforça a ideia de que a região está sempre "de fora" do que é relevante;
E é político, porque coloca 57 milhões de brasileiros na posição de espectadores periféricos dentro da própria nação.
Isso se torna evidente quando observamos cidades que já provaram, repetidamente, sua capacidade de mobilização cultural. Recife, Fortaleza e Salvador receberam alguns dos maiores públicos do país em shows internacionais de grande porte - frequentemente superando plateias equivalentes no Sudeste. Em Natal, o Festival Mada há décadas transforma uma capital considerada "fora do eixo" em um dos centros de música alternativa mais potentes do Brasil. Em Aracaju, o Pré-Caju movimenta mais público do que muitos festivais de projeção nacional. Em São Luís, eventos independentes lotam sem apoio de grandes marcas. Mesmo assim, a narrativa dominante (e burra...) permanece a mesma: "não vale a pena".
A imprensa regional nordestina denuncia isso com regularidade. Reportagens do Diário do Nordeste e Tribuna do Norte apontam que, em várias turnês internacionais recentes, produtores sequer entraram em contato com casas de shows locais - ou seja: a decisão de não vir ao Nordeste já estava tomada de antemão. O público não é consultado. O mercado local não é ouvido. As cidades são descartadas por hábito, não por análise.
O resultado é um Brasil rígido, dividido em duas esferas culturais: uma que participa do circuito global e outra que só o observa à distância.
E quando a participação depende de fatores emocionais, preconceitos herdados, decisões centralizadas e uma visão antiquada do país, o público não recebe oportunidades - recebe desculpas. E desculpas, como sempre, saem mais baratas do que trabalho. Mas o custo social desse abandono é imenso.
Luis Alberto Braga Rodrigues | Rogerio Antonio dos Anjos | Everton Gracindo | Thiago Feltes Marques | Efrem Maranhao Filho | Geraldo Fonseca | Gustavo Anunciação Lenza | Richard Malheiros | Vinicius Maciel | Adriano Lourenço Barbosa | Airton Lopes | Alexandre Faria Abelleira | Alexandre Sampaio | André Frederico | Ary César Coelho Luz Silva | Assuires Vieira da Silva Junior | Bergrock Ferreira | Bruno Franca Passamani | Caio Livio de Lacerda Augusto | Carlos Alexandre da Silva Neto | Carlos Gomes Cabral | Cesar Tadeu Lopes | Cláudia Falci | Danilo Melo | Dymm Productions and Management | Eudes Limeira | Fabiano Forte Martins Cordeiro | Fabio Henrique Lopes Collet e Silva | Filipe Matzembacher | Flávio dos Santos Cardoso | Frederico Holanda | Gabriel Fenili | George Morcerf | Henrique Haag Ribacki | Jorge Alexandre Nogueira Santos | Jose Patrick de Souza | João Alexandre Dantas | João Orlando Arantes Santana | Leonardo Felipe Amorim | Marcello da Silva Azevedo | Marcelo Franklin da Silva | Marcio Augusto Von Kriiger Santos | Marcos Donizeti Dos Santos | Marcus Vieira | Mauricio Nuno Santos | Maurício Gioachini | Odair de Abreu Lima | Pedro Fortunato | Rafael Wambier Dos Santos | Regina Laura Pinheiro | Ricardo Cunha | Sergio Luis Anaga | Silvia Gomes de Lima | Thiago Cardim | Tiago Andrade | Victor Adriel | Victor Jose Camara | Vinicius Valter de Lemos | Walter Armellei Junior | Williams Ricardo Almeida de Oliveira | Yria Freitas Tandel |
O Nordeste não perde apenas shows. Perde empregos, circulação econômica, visibilidade midiática, validação cultural e a sensação de pertencimento a um país que insiste em tratá-lo como margem - mesmo sendo centro de tudo o que faz o Brasil pulsar: música, criatividade, identidade, diversidade, resistência.
O público sabe disso.
A indústria sabe disso.
Só falta admitir.
O público sempre esteve lá. Quem sumiu foi a indústria
Ao longo de décadas, a indústria musical brasileira preferiu repetir narrativas prontas em vez de olhar o país com honestidade. Disse que faltava público. Disse que faltava estrutura. Disse que faltava viabilidade. Mas cada dado, cada caso concreto, cada cidade lotada, cada festival vibrante e cada show histórico no Nordeste prova o contrário.
O público nordestino nunca foi obstáculo - sempre foi potência. O que falhou não foi a região, mas sim o modelo mental de um mercado acomodado, concentrado e emocionalmente dependente de um eixo geográfico específico. Um mercado que ainda trata o Brasil como se houvesse um "centro musical natural" e uma "periferia desinteressante" - uma ficção conveniente, que nenhum número sustenta.
A verdade é incômoda para quem sempre operou no conforto: o Nordeste é um dos maiores mercados culturais do país - e foi a indústria que escolheu ignorá-lo.
A música sempre viajou.
Os artistas sempre circularam.
O público sempre respondeu.
Mas a indústria, por covardia, inércia e preconceito, sempre voltou para o mesmo lugar.
Quando as turnês funcionam no Nordeste - e elas SEMPRE funcionam - não é exceção: é confirmação. A exceção é a ausência. A região de onde vieram Luiz Gonzaga, Raul Seixas, Alceu Valença, Tom Zé, Djavan, Nação Zumbi, Baianasystem, Pitty, Far From Alaska, Zé Ramalho, Gloria Groove, Baco Exu do Blues, Zeca Baleiro, Lenine, João Gomes, Duda Beat, Tarcísio do Acordeom, Johnny Hooker, Belchior, Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa, Nara Leão, João Gilberto e centenas de outros grandes representantes das mais diversas cenas musicais, não pode continuar sendo tratada como décimo plano da cultura nacional.
O tempo da desculpa e omissão acabou. E quem continuar fingindo que o Nordeste "não compensa" vai descobrir, muito em breve, que o que realmente não compensa é insistir num modelo excludente e ultrapassado de Brasil. Porém, neste espetáculo de novidades quem precisa decidir aparecer é a indústria, pois o seu público já chegou faz tempo.
Receba novidades do Whiplash.NetWhatsAppTelegramFacebookInstagramTwitterYouTubeGoogle NewsE-MailApps



O vocalista que irritou James Hetfield por cantar bem demais; "ele continua me desafiando"
Ex e atuais membros do Pantera, Pentagram, Dark Funeral e Fu Manchu unem forças no Axe Dragger
A maior linha de baixo do rock, para Geddy Lee; "tocaria com eles? Nem a pau"
A banda que nunca fez um álbum ruim, de acordo com Ozzy Osbourne; "grandes e profissionais"
Garotos Podres são indiciados e interrogados na polícia por conta de "Papai Noel Velho Batuta"
A lendária banda de rock que Robert Plant considera muito "chata, óbvia e triste"
Matt Tuck fala sobre show com Limp Bizkit no Brasil e a morte de Sam Rivers
Box-set do Rainbow com 9 CDs será lançado em março de 2026
Regis Tadeu explica se reunião do Barão Vermelho terá tanto sucesso como a dos Titãs
Steve Morse diz que alguns membros do Deep Purple ficaram felizes com sua saída
Bruce Dickinson revela os três vocalistas que criaram o estilo heavy metal de cantar
A banda australiana que não vendia nada no próprio país e no Brasil fez show para 12 mil fãs
Höfner vai à falência e Paul McCartney lamenta em declaração
Angra fará novos shows de reunião? Empresário afirma que dependerá da química no Bangers
Ex-esposa de Paulo Miklos consegue medida protetiva contra o artista

A nostalgia está à venda… mas quem está comprando? Muita gente, ao menos no Brasil
Afinal o rock morreu?
Será mesmo que Max Cavalera está "patinando no Roots"?
Por que a presença dos irmãos Cavalera no último show do Sepultura não faz sentido
Angra traz "Rebirth" de volta e deixa no ar se a formação atual ainda existe
De fãs a palpiteiros, o que o heavy metal e o futebol têm em comum
Pink Floyd: entenda o "estilo Gilmour" de tocar guitarra
Thrash Metal: a estagnação criativa do gênero