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Rolling Stones: O Antigo Testamento do rock em carne e osso

Resenha - Rolling Stones (Morumbi, São Paulo, 24/02/2016)

Por Fernando Yokota
Postado em 26 de fevereiro de 2016

A turnê América Latina Olé dos Rolling Stones segue uma tendência do mercado fonográfico pós-MP3. Atualmente, as bandas vivem de apresentações e venda de merchandising, basicamente. Além de saciar o ímpeto criativo, álbuns servem atualmente apenas como uma espécie de desculpa para intermináveis turnês. No caso dos ROLLING STONES, a simples vontade de tocar constitui o álibi para excursionar e manter a máquina funcionando.

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Chuva, trânsito pesado, São Paulo. Às 21h15, os telões do palco gigantesco dão as boas vindas. Fogos de artifício. Keith Richards. Dois acordes. Start Me Up. Loucura. Sem "aquela do disco novo" para abrir o show, o primeiro round termina com It's Only Rock And Roll (But I Like It) — com o solo de guitarra de Keith Richards comemorado como se fosse gol — e Tumbling Dice, do essencial Exile On Main Street.

Out Of Control, de Bridges to Babylon, remete à ultima visita da banda a São Paulo, numa surreal noite de abril há dezoito anos no Ibirapuera, com abertura de um certo Bob Dylan e quase 50 mil pessoas num lugar que hoje não comportaria a metade disso. Sua introdução ao baixo apresenta ao público o já veterano Darryl Jones (que já tem quase o mesmo tempo de banda que Bill Wyman), mas as rédeas da noite são retomadas pelo anfitrião, vocalista e gaiteiro. Ao contrário do que dizem, Mick Jagger não dança, mas expele pelas pernas o senso de urgência que meio século de carreira não é capaz de esgotar.

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Bitch é o aceno dos Stones aos "millenials", não pela canção em si — do longínquo Sticky Fingers de 1971 — mas pelo fato de ter sido escolhida por votação através do Facebook. "Acho que sabemos tocar essa", murmura um dissimulado Jagger com um sorriso no canto da boca. Beast Of Burden (incluindo dueto com o backing vocal Bernard Fowler) e Worried About You (com direito a "beijinho no ombro" [sic] de Jagger) encerram esse segundo lote que, pelo menos para os menos imersos na discografia da banda, serviu de refresco.

Já sem a chuva do início da apresentação, Richards rasga o ar de São Paulo com o "twang" de sua telecaster e é acompanhado pela coral sitar de Ron Wood numa versão grandiosa de Paint It Black que, ao contrário do que o título possa insinuar, coloriu a noite paulistana com excêntricos tons orientais. Chuck Leavell, desde seus dias com os ALLMAN BROTHERS, é veterano na arte do tempero sulista norte-americano com seus teclados. Já excursionou com ERIC CLAPTON, JOHN MAYER e BLACK CROWES e há mais de trinta anos incorpora seu piano ao inconfundível cowbell de Honky Tonk Women (que, reza a lenda, é um legítimo Jagger/Richards concebido nos arredores de Matão-SP no fim da década de 60). Country ou caipira, os Stones fazem sua reverência à música de raiz.

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Se as pedras são perenes por conta do vigor surreal, profissionalismo e, no melhor sentido, a previsibilidade de Jagger, por outro lado elas só rolam por conta da errância de Keith Richards. Keef não é uma caricatura do rock star: a caricatura é baseada nele, naturalmente exagerado e graciosamente preguiçoso com seus acordes. Ouvi-lo tocar é aprender a arte da pausa no rock and roll; independente de ser deliberado ou não, nunca se sabe se ele vai tocar o próximo acorde, e às vezes ele não toca. Os perigos da juventude podem estar suavizados com o passar dos anos, mas esteticamente continuam latentes em seu jeito de tocar e no próximo acorde que nem sempre vem.

Em seu momento de destaque, Richards canta duas músicas (You Got The Silver e Happy, com Ronnie Wood no lap steel). Congelado pela atenção de 65 mil pessoas, mantém a feição de quem não se acostumou com isso após todos esses anos. Por quase um minuto, ele trava para, como se voltasse à terra, tragar seu cigarro e dizer que "tenho um show para fazer". Para ter a liberdade de ser Keef, ele se apoia em Jagger como ponto focal para poder brincar pelo palco feito criança. Jagger, por sua vez, precisa da imprevisibilidade de Richards. O ecossistema da banda funciona baseado nesse dualismo: dia e noite, yin-yang, Jagger/Richards.

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Do catálogo da banda, Let It Bleed é o álbum com mais ocorrências (quatro), incluindo a próxima canção, Midnight Rambler, com suas mudanças de andamento e desaguando em Miss You. O baixo de Darryl Jones é favorecido desta vez pela levada dançante, mas colada nele está a bateria de Charlie Watts. Se Watts fosse jogador de futebol, seria o "falso lento" do time. A impressão de quem está sempre um fio de cabelo atrasado é, na verdade, a virtude do baterista que não corre. Essa característica de tocar "behind the beat" amplia e dá um certo espaço sônico aos Stones ao vivo e, aliado ao inconfundível som de caixa, são parte inalienável do som da banda.

Com dois terços da noite já passados e o grosso da chuva reservado aos que chegaram mais cedo, o que a meteorologia não previa era a passagem do furacão Sasha Allen pela região. Gimme Shelter pode não ter sido o nome mais lembrado pelo público ao fim do show, mas foi de longe o momento mais grandioso. A substituta de Lisa Fischer é uma força da natureza; seu dueto com Jagger na passarela foi um furioso um choque de massas de ar que causou uma devastadora tempestade hormonal no Morumbi.

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A surpresa da parte final do show ficou com o tema apresentado nos telões em Sympathy For The Devil. Pentagramas, bodes chifrudos e ele, cujo nome espera que você tenha adivinhado, fizeram a alegria do eventual fã de metal que estivesse aproveitando a noite no Morumbi. Jagger surge no palco envolto em plumas vermelhas e conduz o evento de profanação-família com a maestria de um legítimo emissário do próprio capiroto. Tanto Sympathy For the Devil (o diabo) como Brown Sugar (drogas) tocam temas tidos como difíceis às mesas de jantar das famílias, mas o show de rock parece funcionar perfeitamente como despachante das pautas-bomba familiares. Fascinante.

Antes do bis, Jagger ainda tem tempo de atravessar a entrada de Jumpin’ Jack Flash para desencadear uma série de olhares assustados entre os músicos. A despeito disso, brilha a "bipolaridade guitarrística" entre Richards e Wood. Por ser uma das canções em que teoricamente eles tocam linhas semelhantes de guitarra, é notável ver os sotaques e timbres diferentes: Keith é estridente e intermitente enquanto Ronnie tem um timbre mais carregado de médios e de fluência mais constante. Adicionado à bateria de Charlie Watts, o núcleo duro do instrumental dos ROLLING STONES está constituído.

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O bis, assim como em todas as noites, é aberto com um coral local convidado pela banda para cantar em You Can’t Always Get What You Want. A magia do rock geralmente está em momentos como esse, em que se socializa com o diabo para ficar às voltas com a heroína e, num ato de redenção, armar com o clima de igreja com a ajuda do Coral Sampa. Para finalizar a noite, (I Can’t Get No) Satisfaction transforma o Morumbi num uníssono gigante de 60 mil pessoas naquele que foi o momento mais esperado de boa parte de quem estava lá. Mais de duas horas depois, o show termina como começa, com fogos de artifício e uma gritaria ensurdecedora. Quem foi ao Morumbi esperando um show de rock saiu no lucro e acabou por testemunhar uma épica encenação do Antigo Testamento do rock com os apóstolos em carne e osso.

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Em certo ponto do show, Mick Jagger lembrou que dezoito anos atrás veio a São Paulo e comeu pastel e mocotó. Curiosamente, foi a primeira vez que este repórter viu bancas de pastel num show, o que junto com Gimme Shelter foi o ponto alto, pessoalmente falando. Em tempo, se por acaso o Mick permitir o conselho de um local, diria para que, desta vez, ele tente um pastel com caldo de cana.

Titãs

Mais cedo, e debaixo de muita chuva, a abertura do show ficou a cargo dos TITÃS. O quinteto subiu ao palco e de forma mais que digna fez o serviço em 45 minutos de pouca conversa e muitos sucessos. Dos velhos tempos, a maior ausência talvez tenha sido sentida ao ouvir Marvin sem a voz de Nando Reis. Nada, entretanto, que tenha tirado o brilho dos rapazes que colocaram o Morumbi para se mexer principalmente em Bichos Escrotos e a clássica Polícia. A apresentação de uma das mais paulistanas das bandas terminou com uma das mais brasileiras das particularidades: um cover de Raul Seixas.

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Setlist dos Titãs:

Lugar Nenhum
AA UU
Diversão
Flores
Sonífera Ilha
Comida
Cabeça Dinossauro
Marvin
Desordem
Homem Primata
Polícia
Bichos Escrotos
Aluga-se

Setlist dos ROLLING STONES:

Start Me Up
It's Only Rock 'n' Roll (But I Like It)
Tumbling Dice
Out of Control
Bitch
Beast of Burden
Worried About You
Paint It Black
Honky Tonk Women
You Got the Silver
Happy
Midnight Rambler
Miss You
Gimme Shelter
Brown Sugar
Sympathy for the Devil
Jumpin' Jack Flash

You Can't Always Get What You Want (com o Coral Sampa)
(I Can't Get No) Satisfaction

(agradecemos à T4F pelo credenciamento)

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