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Rebeldia Vermelha: história do rock and roll na União Soviética

Por Roberto Lopes
Postado em 26 de julho de 2015

Introdução

Durante a segunda metade dos anos 1950, o cenário artístico e cultural da União Soviética seria marcado por duas realidades antagônicas. De um lado, os soviéticos experimentaram, em variados setores, entre eles as artes e a cultura, um período de maior abertura, conhecido como ‘degelo’ (nome inspirado em romance lançado em 1954 pelo ucraniano Ilya Ehrenburg), quando foi permitida a publicação e exibição de livros e obras com tons críticos ao regime comunista. De outro, a censura ao conteúdo dessas obras continuou a ser feita e foi mantida uma postura hostil à cultura ocidental, em especial a norte-americana.

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As políticas de isolamento impostas pelo governo comunista, no entanto, não evitaram totalmente a entrada, no sistema soviético, de elementos da cultura ocidental. Um exemplo que confirma esse fato, de forma parcial, envolve o rock and roll, gênero musical originado nos Estados Unidos em meados dos anos 1950. Criticado e censurado pelo partido comunista durante a maior parte da existência da URSS, esse gênero teve uma recepção inicial fria por parte da população dos países do bloco, mas aos poucos ganhou a aceitação dos jovens, o que culminou, nos últimos anos da União Soviética, com a realização autorizada de shows de artistas e grupos de rock locais e de grandes eventos com a participação de astros e bandas ocidentais.

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Artistas pioneiros

O rock and roll não teve, em sua primeira década (de 1954 a 1964), um grande impacto na União Soviética. Nas raras apresentações desse tipo de música no país, nessa época, a recepção do público soviético foi pouco entusiástica. Isso aconteceu, por exemplo, no sexto festival internacional da juventude, realizado em Moscou, em 1957, e em movimentos isolados, como o stilyagi (‘estilo’), que reuniu uma geração de jovens dissidentes originada no pós-Segunda Guerra e no qual alguns artistas criaram obras que transitavam entre o rock e o jazz.

O então secretário-geral do partido comunista, Nikita Kruschev (1890-1971), classificava o rock como um estilo "decadente" e dizia que este se opunha à música produzida na União Soviética. Chegou, em alguns momentos, a afirmar que o gênero norte-americano era uma ameaça à juventude, porque incentivaria práticas como alcoolismo, fascismo, violência e perversão sexual. Essas opiniões justificavam as medidas que restringiam a entrada de material do estilo no país.

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Essa realidade começaria a apresentar pequenas mudanças em meados dos anos 1960. Apesar do controle e da censura, muitos jovens soviéticos conseguiram obter, de modo clandestino, discos de artistas norte-americanos – como Chuck Berry, Elvis Presley, Jerry Lee Lewis e Little Richards – e do conjunto inglês The Beatles.

Essa ‘importação’ permitiu a formação, de forma discreta e escondida, de uma primeira geração de roqueiros soviéticos, os quais, no decorrer dessa década, criaram suas bandas e até gravaram, de maneira rudimentar, algumas canções. Dessa geração faziam parte artistas como Yan Frenkel, que flertou com o rock em trabalhos localizados, além da cantora Aleksandra Pakhmutova e do grupo Pojuschie Gitary (Guitarras Cantantes).

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‘Pirataria’ comunista

As restrições oficiais fizeram com que parte da juventude soviética, curiosa para conhecer essa música ‘decadente’ do Ocidente, se valesse de meios clandestinos para conseguir material desses artistas. Ainda na segunda metade dos anos 1950, era muito utilizada a técnica denominada roentgenizdat, em que os discos de rock de outros países eram reproduzidos em chapas de raios-X – os finos ‘discos’ feitos com esse tipo de material existiam no país desde os anos 1930, devido à escassez de vinil, e até o governo, de forma localizada, usava a técnica para lançar peças sonoras oficiais. As informações sobre como os registros clandestinos eram produzidos no país ainda são controversas, mas alguns trabalhos afirmam que dezenas de milhares de roentgenizdats teriam sido comercializadas na URSS até 1959, quando o governo comunista endureceu a repressão sobre a atividade.

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Com isso, os primeiros roqueiros soviéticos, também impossibilitados de exibir suas músicas nas casas de shows e nas emissoras de televisão e rádio do país, partiram para a prática conhecida como magnitizdat, ou seja, a produção e distribuição de registros sonoros em fitas magnéticas (de rolo ou cassete). Essa nova forma de distribuição – que muitas vezes dependia de gravadores primitivos – floresceu no país entre a segunda metade dos anos 1960 e a primeira metade da década de 1980, e permitiu que a música de artistas regionais chegasse a amigos e colaboradores. Muitos artistas e bandas devem a esses registros sonoros sua sobrevivência artística e a divulgação de seu trabalho e de suas ideias para uma parcela diminuta, mas importante, da população soviética. Após o fim da URSS, grande parte desse material tem sido recuperado, remasterizado e relançado.

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Como parte dessas gravações não era de protesto ou de oposição ao regime comunista, e como as leis do país permitiam aos cidadãos portar e usar gravadores em suas residências, os órgãos que comandavam a repressão – o Comitê de Segurança do Estado (a KGB) e a organização juvenil do Partido Comunista (o Konsomol) – não tinham como exercer grande controle sobre essas fitas.

Relaxamento versus controle

Percebendo a impossibilidade de uma censura total ao rock no país, o governo soviético decidiu, no final dos anos 1960, contornar essa situação combinando três estratégias.

Em primeiro lugar, admitiu um relaxamento do controle e proibição da entrada de discos e fitas de grupos de rock ocidentais na URSS. Como resultado, nos anos 1970, não era raro ver jovens soviéticos portando (ainda que discretamente) discos de bandas inglesas ou norte-americanas: Led Zeppelin, Rolling Stones, Deep Purple, Queen, Parliament/Funkadelic entre outros.

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A segunda estratégia foi uma tentativa de estabelecer critérios que permitiriam aos grupos de rock soviéticos a obtenção do status de ‘oficiais’ – ou seja, autorizados pelo regime a lançar seus discos e fazer apresentações públicas ou nos meios de comunicação. Esses grupos ganhavam a classificação ‘conjunto vocal-instrumental’ (VIA), mas eram obrigados a tocar no mínimo 50% de obras de origem soviética e podiam cantar apenas as letras autorizadas pelos órgãos censores do país.

A terceira iniciativa do governo foi delegar à KGB e ao Konsomol a tarefa de fiscalizar o cumprimento das novas diretrizes e de direcionar, quando possível, o que a juventude soviética poderia ou não ouvir. Para isso, esses órgãos continuavam com o poder de punir músicos e espaços abertos à música nos casos de desobediência às determinações da censura.

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No início dos anos 1970, o lançamento da ópera-rock Jesus Cristo Superstar, dos britânicos Andrew Lloyd Webber e Tim Rice, causaria forte impacto no cenário do rock na URSS. Embora banido de imediato pelas autoridades soviéticas, o espetáculo – lançado em disco em 1970 e encenado em 1971 – teve recepção entusiástica por diferentes bandas e músicos soviéticos e tentativas não oficiais de sua encenação ocorreram em repúblicas associadas (Letônia e Lituânia) e na própria Rússia. Esse musical também influenciou o compositor russo Aleksandr Zhurbin a criar a primeira e mais influente ópera-rock soviética, Orfei i Evredika (Orfeu e Eurídice), apresentada pela primeira vez em 1975, no Uzbequistão.

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Nesse período, consolidavam-se também bandas de rock que manteriam longa e bem-sucedida carreira, apesar da censura e das dificuldades impostas pelo partido comunista. Grupos como Tsvety, Yalla, Pesniary, Akvarium, Mashina Vremenie e músicos como Yuri Morozov (1948-2006) e Yuri Antonov seriam os principais símbolos de artistas que construiriam trajetórias respeitáveis no cenário musical soviético. Buscando influências tanto em elementos sonoros russos quanto em grupos de rock ocidentais, os músicos dessa geração exploraram estilos diversos, como rock progressivo, heavy metal, jazz-rock, disco, pop e punk.

No entanto, raras foram as bandas da época que, mesmo ganhando a condição de ‘grupo autorizado’, conseguiram gravar discos na única gravadora disponível para o rock no país, a Melodyia, fundada em 1964. As que chegaram a gravar enfrentaram outros problemas, como a distribuição precária de seus discos no mercado soviético e a intervenção excessiva dos produtores em sua sonoridade e em suas letras.

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Ainda na década de 1970, emergiu na União Soviética uma nova geração de ouvintes de rock, que tentou conciliar as condições restritivas vigentes no país com posturas e hábitos inspirados em cenários norte-americanos (em particular o movimento de contracultura hippie). Esse novo público, enquanto acompanhava as instáveis carreiras das bandas nativas, tentava despistar os órgãos de censura e controle ideológicos soviéticos.

Os avanços do rock

Nos últimos anos de Leonid Brejnev no poder e nos breves períodos de Yuri Andropov (1982-1984) e Konstantin Chernenko (1984-1985), o clima de abertura parcial nos campos artístico e cultural no país foi mantido. Em relação ao rock and roll, porém, continuaram as políticas ambíguas. Ao mesmo tempo em que eram permitidos no país festivais de rock (como o Tbilisi-80, ocorrido na Geórgia, em 1980, e outros, esparsos, em Leningrado – atual São Petersburgo – entre 1983 e 1985) e shows ocasionais de artistas ocidentais (como o do músico inglês Elton John, em 1979), críticas amargas e posturas repressivas ao rock foram mantidas.

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Outra marca dos anos 1980 foi o surgimento e a expansão de casas noturnas (chamadas de diskoteki) em Moscou e na então Leningrado, que enfrentavam sérias dificuldades por conta da carência de material a ser apresentado, já que as poucas bandas soviéticas ‘autorizadas’ não eram capazes de disponibilizar com regularidade novas músicas para os shows nesses locais. No entanto, no mesmo período, já se formava uma rede clandestina de discotecas e casas de rock, que ofereciam músicas com maior aceitação do público jovem soviético.

A ascensão de Mikhail Gorbatchev como secretário-geral do partido comunista, em março de 1985, e a implantação pelo novo líder soviético de políticas liberalizantes – perestroika (reconstrução) e a glasnost (transparência) – permitiram o despertar de uma nova fase para o rock and roll soviético.

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Em 1986, Gorbatchev afirmou que "o rock tem o direito a existir, mas somente se for melodioso, coerente e bem executado". Isso significou que os nós da censura para as bandas soviéticas seriam afrouxados, mas não completamente: os grupos de rock do país ainda enfrentariam, até o fim do comunismo, mas agora de modo mais brando e discreto, oposições e críticas do sistema socialista.

As bandas locais sairiam da cultura do magnitizdat e passariam a gravar discos, ainda com dificuldade e com uma recepção ambígua por parte da imprensa soviética. Em alguns casos, as vendas atingiram um ou dois milhões de cópias. Bandas como DDT, Grazhdanskaya Oborona, Zoopark, Taranky, Kino, Aria, Alisa e Master, e artistas como Alexander Bashlachev (1960-1988), Yanka Dyagileva (1966-1991), Mike Naumenko (1955-1991) e Ygor Letov (1964-2008) seriam nomes relevantes para a consolidação dessa nova fase do rock na URSS. Certas posturas e letras desses artistas por vezes se chocaram com o que o partido comunista considerada aceitável, mas grande parte dessa geração de roqueiros percorreu os últimos anos da União Soviética sem maiores retaliações.

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Com a relativa abertura cultural na URSS, nesse período final, um número maior de artistas ocidentais pôde realizar shows no país, como o músico Billy Joel (em 1986) e as bandas inglesas Pink Floyd (1989) e Asia (1990). Além disso, Moscou sediou, com a participação de diversos grupos ocidentais- Motley Crue, Cinderella, Bon Jovi, Scorpions, Ozzy Osbourne-, o (instável) evento ‘Música para a paz’ (em agosto de 1989) e uma (desorganizada) edição do festival ‘Monsters of rock’, dedicado ao chamado rock ‘pesado’, com a participação de bandas como Metallica, AC/DC e Pantera em setembro de 1991, evidenciando a resistência cada vez menor à influência da música ocidental, embora as críticas de setores conservadores do partido comunista ainda fossem comuns. Após o fim do comunismo e a dissolução do bloco em várias repúblicas independentes, essa tendência seria, ao menos na Rússia, mantida e expandida.

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10 discos para conhecer o rock soviético (títulos em inglês)

Pojuschie Gitary - Pojuschie Gitary (1968)
Yuri Morozov - The Cherry Garden Of Jimi Hendrix (1973)
Alexander Zhurbin - Orpheus and Eurydice (A Rock Opera) ([1975] 2000)
Mashina Vremini - It was a long time ago (1978)
Akvarium – Radio Africa (1983)
Aria – Megalomania (1985)
Alisa - Block of Hell / Blockade (1987)
Kino – Bloody Type (1988)
Grazhdanskaya Oborona – Songs of Joy and Happiness (1989)
Yanka Dyagileva - Krasnogvardeyskaya (Live in Moscow) (1989)

Leitura sugerida:

KVEBERG, G. ‘Moscow by night: musical subcultures, identity formation, and cultural evolution in Russia, 1977-2008’. Universidade de Illinois (tese de doutorado em história), 2013 (disponível em: www.ideals.illinois.edu/bitstream/handle/2142/42317/Gregory_Kveberg.pdf).

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RYBACK, T. ‘Rock around the bloc: a history of rock music in eastern Europe and the Soviet Union’. Oxford e Nova York, Oxford University Press, 1990.

Vídeos:

Pojuschie Gitary - Был один Парень (cover de "C'era Un Ragazzo Che Come Me Amava i Beatles e i Rolling Stones")

Yuri Morozov - Cherry Garden Of Jimi Hendrix/ Blowin' In The Wind

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Aleksandr Zhurbin - Orpheus and Eurydice

Akvarium – Rock and Roll is dead

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Aria – Megalomania

Show do grupo DDT em 1988

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Kino – Bloody Type

Evento "Música para a paz", realizado na URSS em 1989.

Show do Metallica no Monsters of Rock, setembro de 1991

Esse artigo é uma versão resumida e parcialmente modificada do trabalho "Rebeldia comunista: história do Rock and Roll na antiga União Soviética", publicado na revista Ciência Hoje, edição 327, julho de 2015.

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Sobre Roberto Lopes

Arquivista, professor, cientista da informação e pseudo escritor de música nas horas vagas. Apesar de mais focado no Rock Progressivo e clássico, também curte metal, punk, rock alternativo e indie Rock.
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