Miles Davis: na gênese de um determinado gênero musical
Resenha - Bitches Brew - Miles Davis
Por Elias Rodigues Emídio
Postado em 23 de novembro de 2013
Como li certa vez aqui no Whiplash.Net em uma resenha do disco de estréia do Black Sabbath, existe uma quantidade razoável de bons discos lançados, destes algumas centenas merecem o status de clássicos e dentre estes raros são os que recebem o mérito de estarem na gênese de um determinado gênero musical. Este é o caso do imortal "Bitches Brew" gravado por Miles Davis em 1970, mas que ainda nos dias de hoje continua soando extremamente inovador e único, não encontrando nenhuma similaridade com qualquer outra criação musical realizada nestes mais de 40 anos após a sua concepção.
Miles Davis, hoje reconhecido como um dos maiores jazzistas de todos os tempos, iniciou sua carreira em meados dos anos 40 participando das big bands dos monstros sagrados do bebop Charlie Parker e Dizzie Gillepsie. Até o ano de 1970 Davis tinha em seu currículo pelo menos duas obras primas do jazz: "Birth Of The Cool", gravado em 1949, mas só lançado em 1957, e o clássico absoluto "Kind Of Blue" de 1959. Com estes discos Miles reescreveu as regras do gênero que antes trazia muita influência do blues, sobretudo na predominância da escalas pentatônicas de 12 compassos, que eram bases de todas as músicas do subgênero conhecido como "bebop" e "Hardbop". Nestes trabalhos Miles inaugurou o "Cool Jazz e o chamado "Jazz Modal" que tinham como característica principal uma maior liberdade para a improvisação com maior variação de acordes e escalas em geral dentro de uma mesma canção. Uma matéria mais completa sob os diversos subgêneros de jazz pode ser conferida no link abaixo.
http://thiagonanet.no.comunidades.net/index.php?pagina=1313576979
A partir do disco "Miles In The Sky" de 1968(cujo título é uma alusão a "Lucy In The Sky With Diamonds" dos Beatles), ele começa a incorporar elementos de rock e blues em seu som. Neste álbum pela primeira vez ele se utiliza de instrumentação elétrica plugando seu trompete em um amplificador.
Nesse período seu grupo contava com o saxofonista Wayne Shorter, o tecladista Herbie Hancock, o baixista Ron Carter e o baterista Tony Willians. Apesar do prestígio de se trabalhar com Miles, Ron e Tony decidem deixar o quinteto e partir para projetos pessoais. Nesse ínterim ele sai a caça de novos músicos e acaba contando com a adesão do contrabaixista Dave Holland (que a época acompanhava a cantora de jazz Elaine Delmar). Após uma breve turnê nos EUA em meados daquele ano Carter e Hancock acabam deixando o grupo de Miles que efetiva Holland como baixista principal e contrata o tecladista Chick Corea para assumir o lugar de Hancock.
Deste período conturbado, nasce a primeira grande obra da fase eletrica de Miles "Filles De Kilimanjaro", no qual os elementos de rock e blues aparacem bem mais delineados comparados ao trabalho anterior. Chick Corea neste trabalho teve o grande mérito de introduzir teclados elétricos (Fender Rhodes) em um disco cuja essência era predominatemente o Jazz, conseguindo com isto explorar novas sonoridades dentro do estilo.
A capa deste álbum trazia a imagem de sua namorada na época Betty Davis (anos mais tarde ela se lançaria em carreira solo como um dos expoentes principais do funk setentista). Ela era muito ligada nos estilos musicais de sucesso vigentes naquele período e apresentou Miles ao som do Sly And The Family Stone e do Jimi Hendrix Experience, este último em especial o deixou extremamente estupefato quando assistiu uma de suas apresentações no lendário Fillmore East, segundo Carlos Santana, amigo íntimo de Miles, durante o concerto teria soltado a célebre frase "How this motherfucker can play like this?".
Impressionado com o show, Miles teria convidado Hendrix para algumas futuras jams sessions, mas infelizmente elas nunca chegaram a ser registradas oficialmente devido a morte prematura de Hendrix. Analisando-se criteriosamente percebe-se que a melodia de música "Mademoiselle Mabry (Miss Mabry)" guarda fortes semelhanças com a clássica "The Wind Cries Mary" do grupo de Jimi.
"Mademoiselle Mabry (Miss Mabry)"
No inicio de 1969, Herbie Hancock retorna brevemente ao grupo de Miles. Tony Willians havia montado um grupo intitulado Lifetime que acabou recusado em uma audição para a Columbia Records e também retornou ao combo trazendo consigo o guitarrista John McLaughlin, um verdadeiro prodígio musical que contava apenas com 26 anos e que havia gravado um álbum intitulado "Extrapolation" em 1969 com os jazzistas Tony Oxley e John Shurman. Com a adesão do também tecladista Joe Zawinul estava fechada a primeira grande "Big Band elétrica" de Miles que no mesmo ano daria inicio as gravações do revolucionário "In A Silent Way", nome uma composição de Zawinul especialmente elaborada para o projeto a pedido de Miles.
Miles não tinha ideias preconcebidas para a criação do disco e ordenou que o produtor Teo Macero gravasse todo o material executado pela banda. Macero conseguiu reduzir as mais de 2 horas de gravações de estúdio para pouco mais de 80 minutos que era tempo demais para um LP simples e com ajuda de Miles reduziram a gravação para pouco mais de 9 minutos para cada lado do disco a ser lançado. Como isto era material insuficiente para cobrir um lado inteiro de um LP, eles tiveram a sacada genial de repetir alguns temas em cada um dos lados do álbum e assim conseguir que o mesmo tivesse quase 40 minutos de duração.
"In A Silent Way" é um disco que trazia influências múltiplas, mesclando ondas de absoluto silêncio às melodias modais de Miles que vinham adornadas pelos etéreos e aparentemente infinitos solos de guitarra de McLaughlin. Com uma sonoridade extremamente inovadora o disco havia sido rejeitado pelos puristas do Jazz e embora tenha sido aclamado pela crítica com um disco revolucionário desde a data de seu lançamento, ele alcançou apenas a 134ª posição nas paradas de disco da Billboard. Após seu lançamento Herbie Hancock abandonaria pela segunda vez o grupo de Miles.
In a Silent Way Lado 1: "Shhh/Peaceful"
In A Silent Way Lado 2: "In A Silent Way/It's About That Time"
Miles Davis ficou impressionado com o resultado final e convida novamente Hancock para gravarem juntos um novo disco nos mesmos moldes do trabalho anterior, pois acreditava que junto o três tecladistas tinham a força de uma orquestra completa. Em julho de 1969 com a saída de Tony Willians e a entrada do igualmente excelente baterista Jack DeJhonnete o grupo de Davis adquire sua formação definitiva.
As gravações do novo álbum iniciaram-se as 8 horas da manhã de 18 agosto de 1969, poucas horas depois de Jimi Hendrix detonar sua lendária versão do hino dos EUA no festival de Woodstock e é sua performance incendiária que permeia os três dias de jams sessions que culminaram em "Bitches Brew", o derradeiro disco de Miles.
Nas gravações que entraram no álbum estavam presentes os seguintes músicos:
Don Alias - Percussão, Congas, Bateria.
Khalil Balakrishna - Sitar.
Harvey Brooks - Baixo Acústico e elétrico.
Ron Carter - Baixo Acústico.
Billy Cobham - Bateria, Triângulo.
Chick Corea - Piano Elétrico.
Jack DeJohnette - Bateria.
Steve Grossman - Saxofone Soprano.
Herbie Hancock - Piano Elétrico.
Dave Holland - Baixo Acústico e elétrico.
Bennie Maupin - Clarineta Baixo.
John McLaughlin - Guitarra.
Airto Moreira - Berimbau, Cuíca, Percussão. (este participou apenas de sessões póstumas que não entraram na gravação do disco).
Bihari Sharma - Tabla, Tamboura.
Wayne Shorter - Saxofone Soprano.
Juma Santos (Jim Riley) - Conga, maracas.
Lenny White - Bateria.
Larry Young - Orgão, Celesta, Piano Elétrico.
Joe Zawinul - Piano Elétrico.
Uma matéria mais completa sobre a sessões de gravações do disco pode ser encontrada no link abaixo.
http://www.beatrix.pro.br/mofo/bitchesbrew.htm
Apesar das tensões durante as gravações, especialmente entre Miles e o produtor Teo Macero, o resultado alcançado pelos músicos é simplesmente magnífico. As canções do disco, embalada pelos três teclados e adornada pela guitarra viajante de Mclaughlin, adquirem uma densidade sonora quase sinfônica. A cozinha principal composta por Holland e DeJohnnete segura as pontas com um ritmo pesado enquanto os demais percussionistas e baixistas promovem uma verdadeira profusão de ritmos que fariam os fãs de Grateful Dead delirarem. Em cima dessa massa sonora (as vezes ao lado) Miles e seu trompete reinam absolutos.
O disco, como um todo, soa como um glorioso caos sonoro genialmente controlado. De fato, numa mesma canção muita coisa acontece ao mesmo tempo, de modo que cada audição revela novas e múltiplas nuances a todo momento. O disco em si não é nem jazz e nem rock propriamente dito, pois além destes gêneros ainda engloba elementos indianos e de música clássica, mas de uma forma tão harmoniosa que se torna algo extremamente difícil rotulá-lo.
"Bitches Brew" veio embalado por aquela que é talvez a melhor arte gráfica já feita para um álbum, a cargo do injustamente desconhecido artista gráfico alemão Mati Klarwein que conseguiu encapsular de forma brilhante toda a genialidade presente na música do álbum, ao retratar as origens africanas dos sons aqui presentes. Uma matéria mais completa sobre o assunto pode ser conferida no link abaixo.
http://www.ideafixa.com/por-tras-da-capa-bitches-brew/
"Frontispício traseiro do encarte original do LP 'Bitches Brew'"
O disco vendeu cerca de meio milhão de cópias no ano de seu lançamento e desde seu inicio se mostrou extremamente influente repercutindo no trabalho de grupos de rock como o Soft Machine, que começaram a incluir elementos de jazz ao seu som. Geralmente este álbum é tomado como o ponto zero do jazz rock praticado no anos 70 inclusive pelo próprio Miles em trabalhos posteriores como "A Tribute to Jack Johnson " de 1971 e "On The Corner" de 1972. Os maiores nomes do gênero (erroneamente denominado Fusion) como a Mahavishnu Orchestra, Return To Forever, Weather Report e The HeadHunters tem origens nas sucessivas digressões dos grupos formados por Miles.
Apesar de soar um pouco indigesto nas primeiras audições e independente de uma questão de gosto musical, "Bitches Brew" continua a ser um dos lançamentos mais importantes e inovadores do século XX. Um dos poucos álbuns que faz jus ao título de obra prima em toda a plenitude da expressão.
INDISPENSÁVEL.
OUÇA NA INTEGRA O ÁLBUM NO VÍDEO ABAIXO.
FAIXAS DO LP ORIGINAL
A1. Pharaoh's Dance - 20:06.
B1. Bitches Brew - 27:00.
C1. Spanish Key - 17:34.
C2. Jon McLaughlin - 04:26.
D1. Miles Runs The Voodoo Down - 14:04.
D2. Sanctuary - 11:01.
* A versão do álbum disponibilizada acima no vídeo do youtube conta com a faixa bônus "Feio" de autoria do saxofonista Wayne Shorter.
Receba novidades do Whiplash.NetWhatsAppTelegramFacebookInstagramTwitterYouTubeGoogle NewsE-MailApps