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O Oitavo Dia: Uma Homenagem ao Dia do Rock

Por Ronaldo Celoto
Postado em 22 de julho de 2015

Capítulo I – O embrião

O grande pensador MONTAIGNE um dia disse que "nascer, viver e passar é apenas mudar de formas".

Pois bem. Os cantos religiosos ("the spiritual voices") têm sua origem na África, onde a tradição é passada de pai para filho. Ali, expressões de dor e de felicidade, gritos de guerra e de libertação eram transformados em melodias e frases, e, a partir delas, tudo de tornava um motivo para celebrar, com os movimentos do corpo, uma dança, uma junção de mãos e braços entre todos das tribos e das famílias, um louvor aos céus ao redor de fogueiras, ou, pelo simples desejo de ter uma noite abençoada ou de partilhar o arroz que grudava nos cantos das panelas, e, misturado à farinha extraída dos tubérculos (mandioca, batata), servia de alimento aos menores.

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Esse milagre de Deus trazido pela população africana chegou à América em épocas de escravidão e crueldade, genocídio e tortura da população negra. Chegou nos calabouços e porões dos navios, expressando a injustiça e a voz de Deus em cada garganta das mulheres negras e dos homens que, quasímodos, eram obrigados a carregar em suas costas o peso do mundo da colonização branca e anglo-saxã.

Deus estava presente na criação da vida. E dizem os cientistas, que o primeiro momento se deu na África. Pois Deus também esteve presente na criação da música. E desta voz sofrida de seu povo, ele fez ecoar as raízes para o primeiro e importantíssimo movimento musical diferente do conceito "clássico e sinfônico" nascido das plantações de algodão no final do século XIX. Ali, especialmente no Alabama, Mississipi, Louisiana e Geórgia, escravos embalavam suas intermináveis e sofridas jornadas de trabalho através de melodias vociferadas, simbolizando a "alegria triste", ou, se me permitem, o "blue", expressão que mais tarde significaria a pungência do "blues" como movimento estridente de melancolia e existencialismo. Era uma forma de trabalhar sob os açoites, mas de responder: - "Podem cortar minhas mãos e ferir meus pés, mas ainda assim eu andarei com o pouco do corpo que me resta, sobre o chão onde me desafiam os inimigos. E meu escudo será minha alegria, traduzida pelas minhas canções".

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Talvez, o mundo tenha testemunhado aí, em silêncio, o mais profundo e maravilhoso significado da música, a partir da alma e da voz, sem instrumentos, sem partituras, apenas e tão somente, a partir da alma.

E o século XX chegou. Com ele, as primeiras tavernas onde a lei seca não dizia apenas que era proibido beber, mas que negros não podiam andar nas mesmas calçadas que os brancos. Mas, ainda assim, nas reuniões entre estes trabalhadores, e, nos "pubs" que eles puderam frequentar em algumas localidades, o "blues" começou a surgir sob o acompanhamento de instrumentos. Ali, um senhor chamado W. C. HANDY ouviu dentro de um vagão de trem um negro a tocar violão com canivete, e, a dizer seus lamentos ao Sol e às nuvens que cortavam sua visão e esmagavam de sua alma a esperança de que aquele trem pudesse parar em um lugar onde ele seria livre. Após este arrebatamento, podemos dizer assim, surgiam nomes como o de CHARLEY PATTON, e, posteriormente, SON HOUSE, WILLIE BROWN, LEROY CARR, BO CARTER, TOHMMY JOHNSON, BLIND WILLIE, e, claro, ROBERT JOHNSON. Já nos anos 30, tínhamos SONNY BOY, BIG BILL BROONZY e, a partir da década de 40, T-BONE WALKER introduzia a guitarra de forma ruidosa e com certa dose de atitude. Era como se alguém bebesse todos os dias um preparado de álcool e mel, e, de repente, alguém lhe trouxesse Jack Daniels à mesa.

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A partir desta lâmpada de Aladim, os anos 40 apresentaram ao mundo o genial MUDDY WATERS, seguido de WILLIE DIXON e HOWLIN’ WOLF. Depois, B. B. KING e JOHN LEE HOOKER completavam o time. E a história nunca mais seria a mesma.

Claro que, a partir daí, a invenção que mudou comportamentos, modificou guerras e criou verdadeiras bíblias e cartas políticas de protexto e de mudança de comportamento, nasceria absolutamente influenciada por todos estes negros citados e todo cenário do início do século. E foi então que CHUCK BERRY criava seus primeiros acordes de guitarra e mostrava ao mundo o maior de todos os movimentos: o "rock’n’rll". A partir dele, o mundo dançaria, pensaria, se vestiria e cantaria de forma diferente.

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Inconformados com tal ato, os brancos norte-americanos trataram de incriminar em um processo tramado a fama de CHUCK BERRY, para substituí-lo por brancos como ELVIS PRESLEY (e eu adoro ELVIS, não vou mentir aqui), BILL HALLEY (que jamais foi o inventor do ROCK, embora alguns pouco estudiosos acreditem nisso), e, posteriormente, BEACH BOYS (que copiaram o riff de "Johnny B. Goode" de CHUCK BERRY em sua canção "Surfin’ USA" de forma descarada), e, em seguida, os britânicos fãs de blues, capitaneados por BEATLES, STONES, e, mais tarde, descendentes diretos do blues negro, como LED ZEPPELIN, CREAM, YARDBIRDS, FLEETWOOD MAC, entre outros, todos brancos. Na América, o blues branco era revertido por CREEDENCE CLEARWATER REVIVAL, THE DOORS, BOB DYLAN e seu "folk com requintes de blues do final do século XIX" (pois para quem não sabe, o que DYLAN fez foi repetir os cantos de dor e protexto dos negros das plantações de algodão, mas com um violão e intitulando-se líder de uma geração, apenas por ter olhos azuis), RODRIGUEZ, e, claro, Jimmy Hendrix, talvez a maior fusão catalisadora dos limites entre o "blues" e o "rock", e, até onde poderia ir a genialidade e a criatividade humana. Com sua guitarra em punho, HENDRIX foi além da estratosfera, e, tornou-se um marco dividor da música em todos os seus estafes. A partir dali, vieram o sinfônico progressivo branco da Inglaterra, e, o "glam", que era um blues travestido de purpurina e letras ácidas e fictícias, além de ruidosas em termos físicos e sexuais. E, posteriormente, tudo se transformou em mídia, e, nada mais. Nem quero falar disso.

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Quero apenas dizer que, foi nos navios negreiros cantados por "sinhôzinho" Castro Alves, que a música, a voz de Deus, nasceu. E a partir dali, foi do "blues" que o "rock" embrionou-se, e, a partir deste embrião, nenhum movimento foi capaz de ditar a história do mundo como foi o "rock".

Capítulo II – O comportamento social e político a partir do "rock": verdades e mentiras

O gênero "rock" mantém-se como advento de um produto ainda pouco explorado no cenário musical: a imagem. Foi com o "rock" que a imagem também passou a ser concebida como arquétipo social copiável.

No Brasil, por exemplo, sem querer citar a febre americana a partir de ELVIS PRESLEY (injustamente coroado como "rei do rock", pois este título pertence a CHUCK BERRY), no ano de 1957 era exibido o filme "No Balanço das Horas", tendo CELLY CAMPELLO como coadjuvante de canções como "Estúpido Cupido", "Banho de Lua", "Túnel do Amor" e "Broto Legal". Não é preciso dizer que, enquanto a política brasileira caminhava alheia a todas as roupas e modismos trazidos pelo "rock", a geração seguinte, capitaneada por ROBERTO CARLOS, e, suas revoluções sonoras e sua intensa capacidade como compositor, testemunhou um novoi embrião paralelo ao "rock", mas ungido dele, a "Tropicália", que revolucionou não apenas o conceito musical brasileiro e trouxe uma invenção nossa para o mundo todo, em especial, com os MUTANTES e com CAETANO VELOSO e GILBERTO GIL, mas também abraçou o pano de fundo dos protestos anti-militares e fez uma geração toda transformar-se em consciente. Se nos Estados Unidos a maioria passava brilhantina e dançava sob efeito de coquetéis das novas "ondas" que chegavam (maconha, cocaína, entre outros entorpecentes), no Brasil, a geração lia SARTRE, MARX, SHAKESPEARE, FOUCAULT, NIETZSCHE, DESCARTES, MONTESQUIEU, ROUSSEAU, e, tantos e tantos outros, e, saía às ruas para enfrentar a milícia, alguns para nunca mais voltar.

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Paralelamente, o "rock" começava a ganhar cerco também nos Estados Unidos, e, a apologia crítica à guerra do Vietnã elegia JIM MORRISON o poeta da revolução, e, BOB DYLAN o herói do anti-conformismo. Enquanto os escândalos passeavam pela Casa Branca, de JOHNSON a EISENHOWER, passando por KENNEDY e NIXON, a juventude vestia-se de acordo com as túnicas e mantos de seus ídolos, e, o "rock" alimentava a crença de que a partir dali, estaria a ser recriada a sociedade de uma ordem mundial onde a consciência cósmica ditaria os rumos do planeta, e, não haveria mais política, nem ídolos, nem mesmo religião. Ledo engano. A igreja jamais permitiria que isso ocorresse, e, os "W.A.S.P." norte-americanos também não. Tão antigo quanto o racismo e o preconceito na América (vide Ku-Klux Klan) é o medo do novo na mente dos americanos.

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De idealizadores do "blues" e do "rock" em sua essência, eles tornaram-se consumidores dos britânicos, que copiaram o "rock" e o "bues" e os reinventaram em forma de consumo como que num supermercado, e, fez com que toda uma geração pensasse que os BEATLES foram os pais do "rock", quando nem os filhos foram.

E o "rock" passou, como um cometa. E dele vieram o "punk" e toda uma parafernália que na verdade, não saiu de passeatas e de roupas rasgadas e coloridas e cabelos com claras de ovo (à exceção deo fantástico IGGY AND THE STOOGES e da criatividade "bubble gum" (one-two-three-four) e das letras sórdidas, capitaneada pelos RAMONES, e, por fim, a elasticidade lisérgica e ruidosa do monumental VELVET UNDERGROUND). A identidade, por si só, ainda que legítima, jamais foi capaz de enfrentar um sistema capitalista. E do "punk" vieram tantos e tantos ritmos dissociados, chegando ao ponto de, por exemplo, termos em plenos anos 2000, uma banda holandesa com nome de TRAVOLTAS (em homenagem a ele mesmo, JOHN TRAVOLTA), só que tocando "surf music" com "riffs" de CHUCK BERRY.

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Mas nem por isso, o "rock" pode ser visto como algo sem cor, aparentemente sem sabor. Ele foi e é o maior de todos os movimentos musicais. Tentou, ao menos, ter o impacto capaz de mudar o mundo. Não mudou, mas, tentou. E digam o que quiser, o "rock" foi e será sempre um mito absoluto, no sentido positivo da palavra.

CAPÍTULO III – O oitavo dia

Talvez o "rock" seja maior do que a sua própria essência em termos do que ele conseguiu conquistar para a sociedade. Mas ele conquistou a capacidade de mudar sonhos, e, de fazr o mundo todo dançar como forma de criticar o sistema escravista dos monopólios e dos empregos bem remunerados. Ele não deixou a guerra em paz, pois viu-a como sinônimo da desgraça humana. Ele incitou à rebelião, embora não tenha conseguido a rebelião que merecia. Ele trouxe o amor e a paixão por costumes, roupas, e, ele uniu e casou homens e mulheres e gerou filhos apaixonados também pelas bandas que seus pais ouviram.

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Sim, o "rock" foi e ainda é um mito maravilhoso, gerador de canções espetaculares. Em nenhum movimento musical, poderemos juntar uma música tão grandiosa como "Stairway to Heaven" (LED ZEPPELIN), ou "Time" (PINK FLOYD), ou o álbum todo intitulado "Ziggy Stardust – The Concert" (DAVID BOWIE). Em nenhum movimento poderemos enxergar frutos que mesclam desde o "blues" ao "country", desde o "sinfônico" ao "new age". Poucos movimentos musicais terão, por exemplo, um álbum que tenha 4 canções apenas, e, cada uma delas beirando os 30 minutos de duração, e, este álbum venha a ser intitulado de "Tales From Topographic Oceans" (YES), ou, ainda, poucos movimentos musicais terão a coragem de passar batom e laquê, usarem botas de plataformas e criarem personagens maquiados a partir da música, como se eles fossem seres interestelares (KISS). E poucos movimentos musicais terão a capacidade de transformar músicas como "School’s Out" (ALICE COOPER), "My Generation" (THE WHO – a mais consciente e politizada banda britânica que já existiu), "Aos Fuzilados da CSN" (GAROTOS PODRES), "Blitzkrieg Bop" (RAMONES), "Veraneio Vascaína" (ABORTO ELÉTRICO), "Polícia" (TITÃS), "Agressão/Repressão" (RATOS DE PORÃO), "Sem Lenço, Sem Documento" (CAETANO), "Panis Et Circenses" (MUTANTES), "Purple Haze" (JIMMY HENDRIX), e, torná-las hino de toda uma geração. Não haverá, em nenhum outro movimento, a explosão da temática oculta como houve no "rock" com BLACK WIDOW, COVEN ou o próprio BLACK SABBATH. Não haverá uma orquestração tão criativa e genial, que mescle o niilismo tecnológico com o clássico erudito e insira guitarras descomunais, quanto ocorreu com URIAH HEEP (e a voz absolutamente descomunal de DAVID BYRON), com DEEP PURPLE e SCORPIONS na fase ULI JON ROTH, e, depois, com o IRON MAIDEN (já no chamado "Heavy Metal"). Ninguém criou discos tão maravilhosamente conceituais quanto o "rock", vide "The Wall", "Dark Side Of The Moon", "Wish You Were Here" (todos do PINK FLOYD) ou "Misplaced Childhood" (MARILLION) e "Selling England By The Pound" (GENESIS). E não haverá jamais uma força motriz rítmica tão pulsante, que seja capaz de fazer com que um simples trabalhador, envolto em seu terno, dentro de um escritório, tenha o sonho íntimo de subir na mesa, tirar suas vestimentos e danças, danças, danças até o mundo acabar. Estas características e todas essas associações pertencem única e exclusivamente ao ROCK e os movimentos que a partir dali, ele gerou, como por exemplo, o "hard-glam" posterior (que eu adoro, e, que gerou ao mundo bandas como MOTLEY CRUE, WASP, EUROPE, HANOI ROCKS, POISON, SWEET, DEF LEPPARD, entre tantos outros), "ska-punk", "funk metal", "hardcore", "speed", "thrash", "death", "gothic", "black metal", também posteriores, entre tantos outros movimentos aqui não citados. E, claro, não há nenhum fã de qualquer outro movimento que seja capaz de tatuar seu ídolo, comprar roupas e guitarras customizadas com a logomarca dele. Repita-se: só o "rock" pode ser o que ele é: o "rock", puro e simples, transformador e gerador de influências, catalizador de cenários políticos e mobilizador de movimentos sociais nas ruas. Mas, como efeito em termos de impacto, hoje, o "rock" não conseguiu e ainda não conseguirá transformar toda uma sociedade dentro do contexto político.

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Mas, sinceramente, ele não precisa. Ele já é, pela própria força motora de suas músicas, a forma de rebeldia com que cada um de nós se dissocia do mundo, e, passa a sonhar com um mundo melhor, uma estrada sem acidentes, uma montanha de viagens existenciais, uma pista frenética de dança onde, mesmo não sabendo passos certos, você pode chacoalhar seu esqueleto, e, por si só, o "rock" hoje é o cálice e a hóstia dos romances modernos. Não existe no mundo um casal que não tenha um dia, se apaixonado e escolhido uma bela canção romântica de "rock" para dar sentido à sua história. Ou muitas e muitas canções, para não ficarem apenas com uma.

Ame-o ou odeie-o. O fato é que impedir sua marcha, ninguém jamais conseguirá. O "rock" nasceu da dor dos campos de algodão, sim, é bem verdade. Mas hoje, o "rock" significa cor, amor, protesto, identidade, roupa, sapato, sopro, voz, e, principalmente, o "rock" significa vida. E esta vida um dia, a exemplo do que eu disse no início do texto, um dia nasceu, passou, e, mudou de formas. E esta vida continua mais viva do que nunca.

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Se eu pudesse contar a história da criação do mundo em 8 (e não em 7) dias, e, eu diria: - E no oitavo dia, Deus semeou o "blues"...e o homem criou o "rock’n’roll".

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Sobre Ronaldo Celoto

Natural do Estado de São Paulo, é escritor, professor, poeta e consultor em direito, política e gestão pública. Bacharel em Direito, com Mestrado em Ciência Política, atualmente cursa Doutorado em Direito, Justiça e Cidadania pela Universidade de Coimbra. Além destas atividades, dedica diariamente parte de seu tempo à pesquisa e produção de artigos científicos, contos, romances, matérias jornalísticas, biografias e resenhas. Seus interesses pessoais são: cinema, política, jornalismo, literatura, sociologia das resistências, ética, direitos humanos e música.
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