"Lost In Translation": "Rainy Day Women # 12 & 35"
Por Claudinei José de Oliveira
Postado em 26 de outubro de 2015
Se uma pessoa não domina um idioma estrangeiro, dificilmente uma tradução literal dará conta de transmitir, plenamente, a ela, as possibilidades de assimilação de uma obra escrita naquele idioma, seja a obra um texto técnico, um tratado filosófico, um romance, um poema ou a letra de uma canção.
Nesse sentido, muitas ideias presentes num determinado idioma não possuem correspondentes noutro e, aí, necessariamente, o tradutor terá de abandonar a literalidade ou, então, coalhar o seu texto com notas de rodapé para evitar que o sentido fique, na expressão inglesa que dá título a este texto, "perdido na tradução". Expressão esta, por sinal, sem correspondente no português, tanto que o filme homônimo de 2003, dirigido por Sofia Coppola recebeu o título nacional de "Encontros E Desencontros". Resumindo: toda boa tradução é, na verdade, uma boa versão.
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A música "Rainy Day Women # 12 & 35" abre o clássico e primeiro álbum duplo do rock "Blonde On Blonde", lançado em 1966, por Bob Dylan. Foi também lançada como "single", alcançando a segunda posição no "Hot 100" revista "Billboard".
O livro de Howard Sounes, "Dylan A Biografia", publicado no Brasil em 2002, pela editora Conrad, diz que a gravação da música foi tão ou mais surreal que a própria. Os músicos, em Nashville, abastecidos de álcool e "otras cositas mas" foram convidados a trocar seus instrumentos e o entorpecimento dos sentidos somado à falta de domínio técnico deu um ar de "fanfarra desafinada" à sonoridade. Ao ouvir, na cabine de som do estúdio, o resultado, um dos músicos, sentindo o potencial da faixa, comentou com Dylan que quando a música fosse concluída ela ficaria muito boa. Dylan teria respondido: "Como? Ela já está pronta." Isso deixou o tal músico horrorizadamente desnorteado.
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O título da canção, literalmente, seria "Mulheres Dos Dias Chuvosos Nºs 12 & 35", o qual, aparentemente, não possui conexão alguma com as estrofes e com o refrão da música, dando a impressão de puro e simples nonsense, a exemplo de alguns recursos poéticos que Dylan, desde o álbum "Bringing It All Back Home", já vinha lançando mão. Porém, desde cedo, a obra de Dylan está sujeita a interpretações, sendo um prato cheio para os exegetas de plantão, acostumados a "encontrar chifre em cabeça de égua". Dada à comprovada esperteza do compositor, não é de se estranhar que exista mesmo um sentido submerso por trás do título, mas muito provavelmente ele está apenas rindo da nossa cara.
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As estrofes da canção apresentam uma espécie de ladainha iniciada com as palavras "they'll stone ya", o que, literalmente, seria algo como "eles te chaparão", visto que o verbo "to stone" é gíria norte-americana para o verbo "drogar". Ao mesmo tempo, faz trocadilho e duplo sentido com o ato de "apedrejar", manifestação, desde épocas bíblicas, de julgamento social.
Assim, nas estrofes, "eles te chaparão/apedrejarão quando você tentar ser bom, (...) quando você tentar ir pra casa, (...), quando você estiver caminhando, (...) quando você for jovem e capaz, (...) quando tentar 'descolar uma grana', (...) quando estiver dirigindo, (...) quando estiver tocando violão, (...) quando for corajoso e (por fim) quando for pra cova." Subentende-se que o "eles" são, na verdade, o moralismo e os "bons costumes" presentes, em qualquer organização social, para a manutenção de uma ordem, explorada em prol das lideranças às custas do sacrifício da "base social", "dopada" pelos mesmos.
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É, então, revelada, no refrão, a hipocrisia sobre a qual se assentam a moral e os bons costumes que, por um lado, condenam a iniciativa do uso de drogas mas, por outro lado, entorpecem. Qual será a pior droga? O refrão deixa a "pulga atrás da orelha" do ouvinte:
"Mas eu não me sentiria totalmente sozinho
Todos devem ser/estar chapados/apedrejados."
Dessa forma, é amarrado, com maestria, o conceito lírico ao sonoro, afinal, "a fanfarra desafinada" que faz a base pra o vocal é a trilha sonora da consciência alterada, tão chapada que não sabe mais qual é a droga real e nem quem é "careta" ou "doidão".
O verso "Não sermos literais às vezes faz nossa beleza", escrito por Humberto Gessinger, resume o sentimento de quando, numa tradução, sofremos um certo desapontamento com uma canção em inglês, pois esta não é Ciência Exata e de um idioma para outro, muita coisa "fica no caminho", expressão que, no português, é uma boa versão para "lost in translation".
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