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Angra: o metal é um terreno fértil para projetos complexos

Resenha - Aqua - Angra

Por Rafael Correa
Postado em 18 de setembro de 2010

Um disco de... literatura? Observando o conceito que permeia "Aqua", novo disco do Angra, tal definição torna-se verdadeiramente plausível. É comum que diversas bandas desinentes do heavy metal passem a objetivar algumas canções (ou um álbum inteiro, como é o caso) baseados em poemas, contos, livros ou ensaios filosóficos. Na verdade, o metal é um terreno fértil para esse tipo de projeto, em grande parte de suas vertentes: por ser complexo e, até mesmo, refinado, o diálogo cultural do metal com outras manifestações artísticas geralmente garante bons frutos. Todavia, as coisas tendem a ser mais complicadas do que aparentam em primeira impressão, ainda mais quando se trata do esperado lançamento de uma banda amada por muitos. Por isso, antes de alçarmos a "análise" de algumas faixas e do próprio conceito que permeia "Aqua", é imprescindível que algumas ressalvas sejam feitas.

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Vimos como exemplo, nos últimos dias, a dimensão de discussões que um lançamento relativo à uma grande banda pode causar: "The Final Frontier", do Iron Maiden, provocou um verdadeiro debate entre os fãs do grupo, que não recearam em expor opiniões sobre o álbum, sejam elas espelhadas ou não em bom senso (como ocorreu com a maioria delas). Pouco antes do lançamento de "Aqua", os pessimistas de plantão já "alertavam" para o fracasso e, quando finalmente saiu, tais opiniões permaneceram na minoria. Portanto, o que será feito nesta resenha não se vincula à uma ou outra corrente de pensamento: trata-se de uma análise sensata e imparcial de um álbum de heavy metal que traz em si um conceito literário, experiência salutar que deve ser apreciada até o último momento. Lógico, não podemos fazer tal análise desvinculando ao álbum da figura do Angra, mas, na medida do possível, tentaremos observar "Aqua" por um prisma neutro, tecendo comparações somente quando indispensável, ou então, quando tal comparação trouxer bons frutos.

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Pois bem. O conceito que permeia "Aqua" deriva daquela que é considerada a última peça que Shakespeare escreveu em vida, "A Tempestade", cuja data é indicada por alguns como em torno de 1612 (muito embora existam fontes que asseverem que a peça fora em encenada pela primeira vez em 1611, no palácio Whitehall, em Londres).

A obra trata de temas usuais, geralmente presentes nos trabalhos shakesperianos, como traição, amor, vingança, conspirações e traços da sociedade do século XVII, que mostram o ser humano e suas faces, sejam aquelas grotescas ou amigáveis. Em breves linhas, a história narra a tragédia de Próspero, antigo Duque de Milão, apaixonado pelo conhecimento e pela arte da magia, é traído por seu irmão Antonio, que almeja ocupar seu lugar no cenário político local. Após o golpe de seu irmão (que contou com o apoio de outros nobres), Próspero e sua filha Miranda são abandonados em uma ilha distante, que serve de cenário para a peça. Quando o rei de Nápoles, anos mais tarde, e sua comitiva real (que conta com os mesmos nobres que traíram Próspero, inclusive seu irmão, agora Duque) retornam de uma viagem marítima e aproximam-se da ilha de Próspero, uma intensa tempestade (criada pela magia do Duque traído) abate os navios reais e fazem com que seus ocupantes sejam trazidos, pelo mar, até a ilha, onde Próspero pretende completar sua vingança, instaurando a loucura em todos aqueles que o traíram. Todavia, como em toda peça shakespeariana, o amor surge para fixar-se ante a vingaça: Miranda, filha de Próspero, apaixona-se pelo filho do Rei de Nápoles.

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É neste ambiente inicial que "Viderunt Te Aquae" e "Arising Thunder" surgem para abrir e apresentar "Aqua" aos ouvintes. As canções ambientam-se na tempestade criada por Próspero para destruir os navios de Nápoles e trazer à ilha os seus desafetos. "Viderunt Te Aquae" aposta na conhecida receita do Angra em transformar as canções de abertura em peças instrumentais concisas que criam o terreno para a força da faixa seguinte, ao exemplo de "Deus le Volt!" e "In Excelsis". "Arising Thunder" aposta em criativas linhas de guitarra e em um refrão de qualidade para prender a atenção do ouvinte. Em alguns instantes, é possível perceber a influência de Malmsteen na canção. A letra, ao seu turno, caminha em passos certos à história de Shakespeare, apresentando a vingança de Próspero, representada pelos trovões de sua tempestade.

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Adiante, "Awake From Darkness" introduz um dos melhores momentos de "Aqua": o riff da canção sustenta-se em uma criatividade ímpar, refletindo o peso do som que estamos habiatuados a ouvir. Kiko Loureiro e Rafael Bittencourt fizeram nesta faixa um excelente trabalho. A canção atinge seu clímax após o refrão, quando o compasso acelerado é abreviado por um retrato mais calmo, pintado por pianos e violinos. Ao seu fim, o peso retorna com as seis cordas, em um solo memorável e interessante, que conduz a canção até o seu fim. "Awake From Darkness" ambienta-se na reflexão de Próspero, ao contar para a sua filha Miranda o duro golpe que sofreu com a traição de seu irmão. Seus sentimentos são palpáveis nos versos iniciais da canção: "Out in the dark I roam/Onward to meet my fate/Time's an illusion today/Away from all I know/A frail that is filled with pain/Feeling the lifeless taste ahead/I wish for no more than air". Na mesma canção também é possível trafegar pelo âmago da vingança de Próspero, e a importância de sua paixão pelo conhecimento, que o libertou do medo e ensejou os primeiros passos de sua vingança.

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Adiante, "Lease of Life" abre mão da roupagem mais densa e pesada do início do álbum para criar um ambiente mais rebuscado e leve. A canção procura proporcionar ao ouvinte a chance de penetrar na atmosfera de "A Tempestade" narrando o encontro de Ferdinando, filho do Rei de Nápoles, com Miranda, filha de Próspero. Ferdinando, após a tempestade, é atingido pelos encantamentos de Arial, espírito a serviço de Próspero, que o faz ouvir vozes e cânticos de ninfas. Atormentado e julgado-se louco pelas vozes que houve, sua desorientação cessa apenas quando encontra Miranda vagando pela ilha: eis que surge o já famoso traço do "amor" shakespeareano. Apesar de ser uma canção muito bem trabalhada e narrar de modo fiel o conceito que a conduz, "Lease of Life" destoa do peso inicialmente observado em "Aqua" e, de certo modo, chega a afastar-se da sonoridade da qual o público da banda está acostumado. Talvez por isso, tal faixa leve um certo "tempo" para ser compreendida por completo.

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Em suma, "Aqua" apresenta uma resultante final capaz de surpreender alguns fãs do grupo, justamente pela sonoridade mais calma que algumas canções apresentam. Todavia, essa estranheza se encerra a partir do momento em que o ouvinte lê "A Tempestade": é nítido que seria impossível ao Angra retratar a história de Próspero mantendo o peso natural de seu som. As nuances contidas nas canções representam as mudanças de tons da própria obra de Shakespeare; elas se moldam para retratar, em modo mais próximo possível, por exemplo, como a vingança de Próspero tornou-se arrependimento e como diversos outros fatores e sentimentos incrustados em tal história se estruturam. Por isso, seria interessante que, ao ouvir o disco, o ouvinte também lêsse "A Tempestade", sob pena das alterações sonoras de"Aqua" não fazerem lá muito sentido ao ser executado.

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Esta talvez seja a "desvantagem" de se adpatar um conceito à um disco, e retratá-lo através da música: se não seguir-se o rumo da história e retratar seu ambiente, o disco perde sua razão de ser, transformando o diálogo entre literatura e música em um punhado de coisas sem muita lógica. Por isso, não há muito o que contestar: "Aqua" é um excelente resultado temático, e todos os integrantes do Angra obtiveram êxito em desempenhar suas funções. De fato, "A Tempestade" de Shakespeare não poderia ser contada de melhor forma.

Set List:
1. Viderunt Te Aquae
2. Arising Thunder
3. Awake From Darkness
4. Lease of Life
5. The Rage of Waters
6. Spirit of the Air
7. Hollow
8. A Monster in her Eyes
9. Weakness of a Man
10. Ashes

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