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A História do Cream

Por Denio Alves
Postado em 31 de outubro de 2000

Índice das partes desta matéria

Durante muitos anos, a Internet brasileira estava devendo uma fonte de informação à altura para fãs de rock que quisessem ficar sabendo um pouquinho mais sobre a banda em que Eric Clapton tocou no passado, em que a sua glória e a de Jack Bruce e Ginger Baker foram inscritas na posteridade, mas sobre a qual poucos sabiam, ou se limitavam a apenas conhecer por nome: o Cream. É com este propósito, o de trazer informação e mais dados, curiosos e interessantes, aos neófitos, e talvez até aos mais sapientes, que trazemos a História do Cream, dividida em três partes.

Cream - Mais Novidades

Foto: Capa Disraeli Gearsx
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Parte 01 - Os Puristas do Blues

Nesta primeira parte, nos concentraremos nas raízes que determinaram o surgimento de um dos maiores supergrupos da história do rock: das velhas bandas de blues tradicional e suas ramificações até que Clapton, Bruce e Baker se conhecessem. Veremos que Bruce e Baker já se conheciam (e se odiavam) de longa data, e uma vez, quase chegaram às raias do homicídio; que Clapton, quando jovem, era apenas um entusiasta de blues que não queria ganhar tanto dinheiro assim, abandonando os Yardbirds em sua ascensão comercial em busca de um pouco mais de blues com John Mayall... mas que o desenrolar dos fatos na efervescente capital inglesa dos anos 60 logo o faria mudar drasticamente de idéia.

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A Londres de 1964 era, definitivamente, um lugar especial para se viver. Nunca, desde a Era Vitoriana, os ingleses, e em especial a sua capital, haviam vivido um período tão fértil e promissor como o daqueles anos – e talvez nunca mais viveriam. O que havia se tornado a fortuna do Império Britânico naquela longínqua época de bens de consumo exuberantes advindos da Revolução Industrial e especiarias importadas das colônias (como a Índia), entretanto, não era o que produzia o êxito do Reino Unido agora, na abóbada celeste dos coloridos anos 60. Sim, se torna impossível não falar neles, já que daí veio tudo: os Beatles.

"Nós éramos motivo para vender de tudo para o lucro inglês: de discos a veludo cotelê" comentaria George Harrison anos depois, naquela série documental sobre a banda, "Anthology". E era verdade. A chamada Invasão Britânica, que assolou os Estados Unidos e, por conseguinte, todos os outros países do continente americano como uma praga desde que Lennon & MacCartney mais a sua entourage real puseram os pés no aeroporto de New York pela primeira vez mudou a cara do mundo, pintou de histeria as paradas pop e tingiu de sons diferentes e diversificados toda a produção fonográfica mundial – afinal, atrás de todo um grande sucesso devia estar, de agora em diante, o irrecusável sabor da novidade.

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E assim como os besouros de Liverpool eram uma tremenda novidade naqueles anos de caras sisudas e topetinhos pseudo-rebeldes a la Elvis e James Dean, enquanto toda a sociedade organizada ainda se resguardava de todos os ataques de uma sociedade jovem ainda silenciosa, mas reivindicante de mudanças modernistas radicais e ideologias novas a serem introduzidas (e que estavam sendo operadas há anos, nos EUA, pelos beatniks, e seus jovens seguidores, os cantores folk, como Bob Dylan), a sede por coisas novas, variedades, era intensa – daí o grande fomento da indústria musical através de novidades, visto que novos filões estavam abertos ao consumo público. O avanço da tecnologia e dos novos métodos de gravação, também, eram causadores disso – de reles experimentos realizados para filmes de Walt Disney, na década de 50, para quase 50% das cópias de discos produzidas no início dos anos 60 nos EUA, as gravações estéreo, inovação tecnológica introduzida no mercado fonográfico, representavam uma maior fidelidade de som presente na sala de reprodução do ouvinte que deixava maravilhados os cultores das novas técnicas de gravação. A partir daí, passou-se a falar em canais, mixagens e equalização com bem mais propriedade, visto que o sistema estéreo, em que a reprodução do som se torna mais ampla no ambiente através da divisão do som em duas vias de reprodução simultâneas (canal esquerdo e direito) dava mais sensação ao ouvinte de proximidade com a música real.

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Obviamente, todo este período de euforia na História da Música Popular mundial deu chance a que várias modas e tendências musicais fossem introduzidas. E na Inglaterra, terra dos Beatles, dos seus sucessores Rolling Stones e de uma nova e sensacional banda chamada The Animals, em 1964, o negócio era o blues.

Claro. Logo ficou evidente aos jovens britânicos que toda aquela explosão de criatividade dos grupos emergentes tinha seu motivo de ser numa só raiz – pois todos, com ou sem influências de country & western, doo-woop, motown ou até mesmo rythim n’ blues, acabavam sempre bebendo daquela água original, de preferência embarrelada pelas margens do Mississipi (Muddy Waters). Desse forma, então, é que nasceu, na capital absoluta das novidades, Londres, o movimento dos jovens puristas de blues.

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Na verdade, esta tendência já existia há muito tempo – desde os anos 50, quando jovens britânicos descontentes com a mediocridade do mundo inglês frio e hostil em que viviam, como Cyril Davies, Alexis Korner e John Mayall, resolveram se dedicar full time à música que ouviam nos discos de blues americano importados por marinheiros do Mersey. O próprio Eric Burdon, vocalista dos Animals, um dos grandes entusiastas do movimento purista de blues inglês, é quem lembraria essa sensação, em uma entrevista concedida mais tarde, nos anos 70: "A gente ouvia todos aqueles nomes esquisitos, canções estranhas cantadas por gente como Big Maybellene e Wynonie Harris, e aquilo era fascinante e tão diferente! Senti no ato que um dia eu teria que cantar daquele jeito...".

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Pois é, foi exatamente assim que a febre do blues pegou no público jovem britânico. Haviam as cisões, é claro: ou eram as tietes ensandecidas dos Beatles na área de Liverpool, Blackpool e Manchester, ou ainda os mods e rockers da região de Glasgow, Manchester e também em Londres (os primeiros curtiam motown e sons de grupos negros americanos, mais influenciados pelo soul e doo-woop, e tinham uma filosofia de vida bem dandy, antenados mais com a moda e os prazeres materiais da vida do que tudo, e os segundos gostavam de rockabilly selvagem e motos cheias de adornos, eram típicos Hell’s Angels, e dariam luz, quase uma década depois, ao movimento punk britânico).

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O blues, no entanto, já estava bem disseminado nas ilhas de Vossa Majestade em 1964, e foi justamente naquele ano que duas bandas estavam disputando a pau o título de "melhor banda de blues inglês" entre os seus admiradores, jovens ingleses existencialistas, grande parte deles universitários ou profissionais autônomos emergentes da Era das Sensações (como o fótografo dandy do clássico filme Blow Up – Depois Daquele Beijo, de Antonioni, de 1966), chegados num bom cachimbo (bem ao estilo Sherlock Holmes) e roupas e penteados exóticos – eram eles, basicamente, a platéia que lotava os enfumaçados pubs de blues daquela época, em Londres. As tais duas bandas eram o John Mayall & his Bluesbreakers e a Graham Bond Organization – desnecessário dizer que, pelo prestígio que ambas tinham no cenário britânico de blues, um sem-número de futuras estrelas do rock britânico passaram pelas suas cadeiras, pegando aquela experiência que lhes seria tão preciosa: Mick Jagger, Charlie Watts, Brian Jones (Rolling Stones), Peter Green (Fleetwood Mac), Paul Jones (Manfred Mann) etc. etc. blá-blá-blá... e, afinal, os heróis de nossa estória: Eric Clapton, Ginger Baker e Jack Bruce.

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Ginger Baker, nascido Peter Edward Baker em 19/08/1939, na pequena cidade de Lewisham, desde cedo se interessara por ciclismo, participando de várias competições juvenis ainda em tenra idade. Entretanto, logo a música confiscou a sua atenção, e lá estava ele, enfronhado em audições dos velhos discos de jazz de seu pai, vindo a tornar-se grande fã de Dizzy Gillespie. Inicialmente, ele teve aulas de trumpete, mas já aos 15 anos, adotava a bateria como instrumento definitivo, vindo a tocar com várias bandas em um curto espaço de tempo e profissionalizando-se no ofício em uma velocidade impressionante. Como membro da Storyville Jazz Men, Baker chamou a atenção de vários críticos para aquele novato, que havia aprimorado seu estilo ouvindo discos nos quais tocava Baby Dodds, célebre baterista de grupos de New Orleans – foi esta lenda do jazz e do blues americanos que praticamente criou o conceito de um só baterista de jazz na banda tradicional, que antes contava com pelo menos dois ou três percussionistas para a seção rítmica. Dodds arrumava todo o kit de percussão de forma que tivesse total controle para tocar de tudo um pouco. E foi ouvindo Baby Dodds com afinco que Baker tornou-se aquilo que conhecemos: um exímio, inventivo e eclético baterista, capaz de proezas rítmicas impensáveis para aquele tempo de bateristas firmemente aferrados a uma forma fria, quase matemática e impessoal, de tocar o jazz.

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Por trás de todo o grande gênio, entretanto, sempre há uma personalidade estranha ou conturbada. Devido a já precoces problemas devido ao seu temperamento explosivo, aliado ainda a um gosto pela heroína desenvolvido desde as suas primeiras noite de jam session com os seus primeiros grupos, Baker arrumava brigas onde quer que estivesse e era invariavelmente "convidado" a se retirar das bandas em que tocava, chegando mesmo a pensar em abandonar a carreira musical poucos dias após a sua expulsão da Storyville Jazz Men, com quem tocara até 1959. Porém, encorajado por amigos do meio musical que reconheciam nele um talento singular, Baker continuou tocando o barco, quer dizer, o bumbo e todo o resto, até 1961, quando numa temporada em Londres com um sem-número de grupos que estava acompanhando (sempre como convidado especial), conseguiu arranjar um lugar fixo no lendário Blues Incorporated, do pioneiro do blues Alexis Korner, substituindo ninguém menos que Charlie Watts – que partira para se aventurar vocês já bem sabem aonde...

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O engraçado é que todos estes combos de blues eram sempre muito cheios de suingue – não me refiro ao swing de batida, ritmo quente, mas sim ao troca-troca mesmo de componentes, um eterno vai-e-vem que parecia não terminar nunca. Só de junho a agosto de 1962, o Alexis Korner & the Blues Incorporated trocou de vocalista não menos que três vezes: Paul Jones (do futuro Manfred Mann), Ronnie Jones e até Mick Jagger (que encabulava todo mundo com seus trejeitos efeminados, muito antes que isso fosse virar moda). Pois eis que em novembro de 1962, o Blues Incorporated ganha um novo membro fixo, o saxofonista Graham Bond, e três meses depois o que acontece? Bingo! Graham Bond deixa o Blues Incorporated, mas não sem fazer um estrago. Ele leva consigo, para formar sua própria banda, Ginger Baker e o baixista Jack Bruce, outra fera que vinha acompanhando Alexis Korner.

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Jack Bruce, nascido John Simon Asher Bruce, em 14/05/1943, em Bishopbriggs, Escócia, a três milhas de Glasgow, possuía estrita formação musical desde cedo, havendo já estudado cello e piano, além de ter participado de corais de igreja por vários anos – o que explica a sua excelente e eficaz postura vocal. "Desde que eu estava na escola, no entanto"- conta ele – "minha grande ambição era ser um baixista, porém eu era ainda muito miúdo para conseguir segurar o monstro"(refere-se ele aos enormes baixos acústicos, visto que na época os modelos elétricos ainda não eram tão populares). "Finalmente, aos 15 anos, já havendo crescido o bastante, consegui realizar o meu desejo". Assim como Baker, Bruce tocara em vários grupos de jazz e blues, mas ao contrário do parceiro, tinha uma experiência formal e clássica mais avantajada – já havia viajado para tocar na Itália em famosos festivais de jazz e até os 17 ele havia estudado seriamente música clássica na Academia Escocesa Real de Música, em Glasgow, só saindo de lá por demonstrar o seu já inegável e crescente interesse pelo jazz e blues.

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O período entre 1963 e a metade de 1965 foi um dos mais prolíficos na mítica trajetória da Graham Bond Organization como desbravadores do território do blues inglês. Com Graham Bond, Ginger Baker, Jack Bruce, mais o lendário guitarrista John McLoughlin e o saxofonista Dick Heckstall-Smith, eles lançaram dois álbuns clássicos (The Sound of '65 e There's a Bond Between Us), que consolidaram a sua presença de palco entre o público londrino de blues, e os levaram a diversos shows de rádio e programas de TV que divulgavam bandas do gênero.

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Entretanto, logo ficou claro que as coisas não andavam tão bem assim dentro do grupo: o eterno gênio exterminador de Baker se fez mostrar. Se nos palcos a coisa funcionava excelentemente bem, é porque nos ensaios a cozinha quase havia se acabado de tanto brigar para chegar a um consenso: Bruce e Baker brigavam constantemente, discutindo sobre tudo, desde o volume com que Bruce amplificava o seu baixo elétrico até a força com que Baker atacava os pratos. Tudo era motivo para um quebra-pau, e no começo a reação dos outros membros da banda foi normal – aquilo era até um bom medidor do nível de perfeccionismo do grupo em busca de um grau evolutivo mais elevado. Entretanto, logo a coisa começou a ficar mais séria.

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Em um show do qual hoje em dia ninguém mais se recorda bem onde foi exatamente, mas apenas de que foi realizado em julho de 1965, membros da audiência assistiram, complacentes, a uma ruidosa discussão entre Baker e Bruce que por pouco não descamba para a violência física – já que a verbal já estava ardendo em chamas a partir do momento em que Bruce, fazendo uma firula virtuosística em seu instrumento como ele adorava fazer, saiu um pouquinho dos acordes planejados em uma das canções, ao passo que Baker parou imediatamente, no meio da música, berrando um grosseiro "eu te disse que não era pra ser assim, seu fuckin’ idiota!" A partir daí, o show acabou, e o ingresso daquela noite ficou valendo pela curiosidade de se ver Bond e Heckstall-Smith tentando apaziguar os ânimos de seus colegas de banda, num desconcertante "deixa disso".

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Logo ficou evidente a caveira que Baker, um conspirador no melhor dos estilos, estava fazendo para tirar Jack Bruce do Graham Bond Organization – e foi exatamente o que aconteceu, em agosto de 1965, após mais uma discussão entre Bruce e os outros membros da banda, de que seria melhor que saísse para que, inclusive, permanecesse vivo. "Nada pessoal, Jack"- lhe disse Bond – "mas o Ginger já andou até guardando um canivete na cintura dizendo que, caso você apareça novamente em um dos shows ou ensaios, ele não responde por si." Só depois de muitos anos esta incrível estória seria revelada pelos biógrafos do Cream, mas é verdade: talvez, por algum descuido, e devido a seu irascível temperamento por vezes alterado pela heroína e bebidas, Ginger Baker pudesse um dia ter esfaqueado Jack Bruce, ainda que atualmente ninguém queira mais tocar neste assunto.

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Bruce, convencendo-se de que era melhor ser um baixista sem banda, e vivo, do que um baixista na banda, mas morto pelo próprio companheiro de grupo, resolveu finalmente cair fora, e por volta de outubro de 1965, ele preparava a sua nova investida, de forma a impressionar a todos!

O grupo de John Mayall, The Bluesbreakers, estava tendo um extraordinário sucesso desde que um dos mais prestigiados guitarristas de todos os tempos, o jovem Eric "Slowhand" Clapton, havia deixado os Yardbirds, banda que, em sua primeira fase, servia de modelo e inspiração para todo e qualquer bluesista inglês vibrante.

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Eric Clapton, nascido Eric Patrick Clapton, 30/031945, na pequena Ripley, algumas milhas ao norte de Londres, é uma lenda viva do blues e do rock que, como todos sabem, passou por diversas bandas de blues de sua terra até chegar aos Yardbirds como um talento promissor considerável, especialmente após a lendária temporada da banda no célebre Crawdaddy Club, em que eles substituíram os Rolling Stones – o que ninguém esperava, entretanto, é que numa bela noite de 1963 um totem sagrado do blues americano, o gaitista e cantor Sonny Boy Williamson, fosse aparecer por lá para um show surpresa. Precisando de um grupo relâmpago na hora, ele recrutou os Yardbirds. Os pobres rapazes, pegos com as calças na mão, pouco haviam ouvido falar da fama de mandão e excêntrico daquele cara do blues, mas a atitude deles de reverência e humildade diante dele, dando o sangue e o suor em tudo o que sabiam de blues naquela noite e o acompanhando, assombrou tanto o próprio Sonny Boy quanto os privilegiados da platéia que presenciavam aquele momento histórico. Nada mal para o até então esparso currículo do jovem Clapton, que caprichou naquelas apresentações e saiu de lá ovacionado. Os Yardbirds, por sua vez, saíram de lá com um contrato de gravação praticamente assinado, graças a Giorgio Gomelski, gerente do Crawdaddy e empresário da banda.

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O problema, como muitos já sabem, é que, em 1965, a direção musical dos Yardbirds estava sendo sensivelmente alterada pelo seu empresário e pelos próprios membros do grupo, que haviam se decidido a firmemente "fazer dinheiro", no rastro das bandas de sucesso que não ficavam só presas ao esquema limitado de blues, pubs e discos com um restrito público formado apenas por apreciadores do gênero. A partir do hit "For Your Love", lançado no início daquele ano, os Yardbirds davam adeus aos puristas de blues que os consagraram, mas que passaram a torcer o nariz para eles com aquela virada tão radical em sua carreira: a nova canção, para alguns, era uma viagenzinha poppish no melhor estilo Beatles. Foi esta canção a carta de demissão de Clapton, que era um típico purista de blues, dos Yardbirds.

Convocado a prestar os seus serviços guitarrísticos ao grupo de John Mayall, Clapton lá chegou com toda a pompa underground prestada pelos admiradores britânicos de blues da época. Na manhã posterior à sua primeira noite de apresentação com os Bluesbreakers, Clapton foi, simplesmente, surpreendido com vários muros da cidade de Londres, repletos com a pichação "Clapton is God" (Clapton é Deus), o que solidificou a aura e a imagem mítica do guitarrista para todo o sempre. Até hoje, no entanto, há ainda os que afirmem que a "canonização" de Clapton, na verdade, não passou de um mirabolante golpe de marketing, bem ao estilo dos primórdios das campanhas publicitárias de impacto que fervilhavam em Londres naqueles dias esfuziantes, e quem haveria pichado nos muros teriam sido o próprio Clapton e alguns amigos bluesistas dos Bluesbreakers, numa silenciosa conspiração em resposta ao sucesso dos Yardbirds nos charts britânicos com "For Your Love".

Pois bem, foi no final de 1965 que Jack Bruce chegou aos Bluesbreakers de John Mayall, que já haviam lançado alguns estupendos registros sonoros em compacto e LP com Clapton (incluindo o histórico "John Mayall and the Bluesbreakers with Eric Clapton", onde figuram as imortais "Telephone Blues" e "All Your Love"). Bruce encontra, ao lado de Clapton, um ambiente totalmente diferente daquele vivido ao lado de Ginger Baker na Graham Bond Organization: o novo colega de banda o reverencia como um grande músico, e fica especialmente interessado em suas habilidades jazzísticas no baixo. É nessa época que Clapton comenta com Bruce o desejo de, um dia, formar uma banda bastante diferente, com capacidade de fazer um som que conecte tudo que havia de interessante até então, sempre tendo como raiz os blues, evidentemente, mas jazzística e disposta a alçar vôos bem mais altos e diversificados. Estaria o purista de blues Clapton traindo a causa, afinal?

A verdade é que, tanto Bruce quanto Clapton, como qualquer ser humano normal deste mundo, também estavam começando a perceber que tinham o desejo de, além de serem criativa e musicalmente satisfeitos, terem carreiras profissionais bem sucedidas dentro daquilo que faziam, ou seja, o mundo da música. O circuito de blues é limitado – o foi, é, e sempre vai ser. É uma espécie de sacerdócio se manter em um só estilo musical como este, além de ser um tanto quanto limitador, musicalmente falando – daí, o desejo nascente em Bruce e Clapton de formarem algo diferente. Além disso, algo pouco comentado na época era a inveja que ambos tinham do belo modelo Rover conversível que Ginger Baker havia comprado há pouco tempo. Ou seja: é óbvio que, além de dar vazão a todo o seu potencial criativo, Clapton e Bruce burilavam, intimamente, em transformar o seu projeto em uma "máquina de fazer dinheiro".

Rastros acerca desta nova banda que Clapton e Bruce formariam foram dados, aos fãs ingleses, em um obscuro lançamento fonográfico do início de 1966: Jack Bruce já havia migrado dos Bluesbreakers (onde tomara parte apenas em algumas sessões de gravação e em alguns shows) para o Manfred Mann, uma das bandas pop de maior sucesso na Swingin’ London (aquela de hits como "Do Wah Diddy Diddy" e "Pretty Flamingo") – talvez até mesmo pelo desejo de ganhar algum dinheiro. E então, com alguns membros do Manfred Mann mais a luminosa participação de Eric Clapton (já abandonando os Bluesbreakers também), foram gravadas algumas faixas de blues tradicional, com uma nova roupagem, no entanto. A química de peso vertiginoso que se formava no entrelaçamento do baixo de Bruce com a guitarra de Clapton era impressionante, e se fazia sentir nas três faixas gravadas para aquela compilação de blues da Elektra Records inglesa, chamada "What’s Shaking", na qual a tal banda, um projeto de uma noite no estúdio, aparecia sob o nome de Eric Clapton & the Powerhouse.

Sem saber, haviam eles criado o embrião do Cream.

Parte 02 – O "creme" do rock

Na segunda parte desta História do Cream, o caro leitor entrará em contato com o início da escalada ao sucesso daquele que é considerado o grupo estaca zero do rock pesado, e saberá como o blues e a psicodelia ajudaram a parir um dos estilos de rock mais apaixonantes e cheios de admiradores desde sempre. Verá como Clapton e seus comparsas fundiram vários elementos em uma música altamente densa e criativa, e como nasceram as grandes celebrações que são as intermináveis "jams" de rock ao vivo, perpetradas depois por grupos que vão de Led Zeppelin a Metallica. Conhecerá a gênese dos êxitos fonográficos da banda, de seu malfadado primeiro single ao sucesso do álbum "Disraeli Gears". E, de quebra, perceberá as fases pela qual atravessou o grupo em suas mudanças de postura e de visual, migrando do trinômio blues-pequenos clubes-Inglaterra direto para rock pauleira-grandes auditórios-EUA.

Durante seus últimos dias nos Bluesbreakers de John Mayall, uma idéia contaminava a mente de Eric Clapton: o guitarrista não conseguia tirar da cabeça a idéia de uma super banda de três elementos, um power trio. Era um lance que já havia sido meio esquecido havia algum tempo no ramo do rock – retornar às raízes instrumentais, a formação básica de guitarra / baixo / bateria num line up preciso e criativo. Algo que já não acontecia desde os bons e velhos grupos, de Buddy Holy & the Crickets a algumas incríveis surf bands americanas. Exigia destreza e inventividade extra de seus integrantes. Para Clapton, era tudo o que bastava naqueles dias. O seu instinto desafiador apontava para isto. Ele mesmo confessaria, meses depois, à revista Beat Instrumental: "Eu já estava pensando em um grupo com Jack e Ginger havia meses, mas eu não achava que seria possível. Pra começar, na minha opinião Ginger era bom demais para tocar comigo; ele era bastante jazzy (improvisador). Então, um belo dia, ele ME PROCUROU, e pude a partir de então sacar que ele era, realmente, um tremendo baterista de rock, por instinto. O cara, na verdade, sempre foi um bluesman." De fato, foi o que aconteceu.

John Mayall havia acertado com o seu empresário uma série de shows em Oxford, lá pelo início de 1966. Era abril quando Baker perguntou, na noite de uma das primeiras apresentações, se ele poderia acompanhar a banda. Para Mayall, um eterno cabeça fresca entusiasta do espírito experimentalista e incestuoso do blues, com seus grupos invariáveis e eternas trocas de componentes, no problem. E assim, Baker e Clapton foram se aproximando à medida que estudavam o jeito de tocar um do outro – e quanto mais conviviam, mais gostavam do que viam (ou ouviam). Conforme Clapton conta na entrevista dada à Beat Instrumental, realmente foi Baker que o abordou com a idéia de saírem dali já com uma banda, partindo juntos para o seu próprio sucesso. Clapton, no entanto, companheiro musical de Jack Bruce fascinado pela habilidade do cara com o contrabaixo desde aquelas sessões de estúdio para a coletânea What’s Shakin’, impôs uma condição: só toparia formar o grupo caso fosse um power trio, e o melhor, com Jack Bruce no baixo. Dá para imaginar a cara com que Baker ficou na hora em que Clapton mencionou esse nome, já há algum tempo esquecido. Enquanto o seu rosto mudava de uma tonalidade de cor para outra, sem saber o que responder, Baker provavelmente imaginava: "Não posso acreditar. De todos os baixistas nesse mundo... esse cara, de novo...". Clapton, por sua vez, sorria timidamente, esperando a decisão do baterista e mal imaginando o que o passado já havia feito na vida daqueles dois caras.

Finalmente, em uma cinzenta tarde do mesmo mês de abril daquele ano, Baker, depois de muitos drinques para esfriar a cabeça e armado da cara mais amável e da maior humildade desde mundo, resolveu vencer o seu orgulho e ir à casa de Bruce. Janet, a então namorada de Bruce que se tornaria sua esposa, atendeu à porta, e lá estava aquele esquálido e alto cara ruivo de olhos esbugalhados, querendo falar com Jack. A figura era por demais engraçada, quase um espantalho de feições irlandesas! Na hora em que viu Baker, Bruce não pôde acreditar, e a reação de grande surpresa inicial logo foi substituída por suposições cheias de enigmas sobre o que deveria o cara que praticamente o expulsara da banda de Graham Bond querer com ele.

Durante os quase quarenta minutos em que colocaram a sua conversa em dia, Baker e Bruce foram, aos poucos, concordando em guardar os velhos fantasmas dentro do armário, e Baker foi o mais humilde, sincero e simpático cara que poderia ser em muito tempo. Mais de uma vez pediu desculpas pelas implicâncias do passado e tentou resumir, em poucas palavras, o quão bom poderia ser acompanhar Clapton e partilhar com ele as suas idéias musicas, pois o cara era muito bom também e tinha grandes planos para os três. Devemos nos lembrar, afinal, que estar junto com Clapton naqueles dias, como ainda hoje, não era algo para se considerar pouco – afinal, estar com Clapton era estar com Deus!

Ao final do bate-papo, devidamente acompanhado pelo tradicional English tea das cinco, Bruce marcou um lugar para os três se encontrarem e resolverem tudo, e mais: com os seus instrumentos junto, para verem se realmente a química rolava. Não é preciso nem dizer que a jam inicial, ocorrida dois dias depois, foi a confirmação de que os três precisavam para saber se eram capazes de dominar o mundo.

Um dos locais preferidos para os ensaios, nesta época, era o salão de basquete de uma velha escola em Willesden, a poucos quilômetros de Londres – a boa acústica do lugar, um antigo prédio praticamente abandonado, ajudava a nascente banda a dar vazão às suas idéias revolucionárias. Bruce trabalhava já em algumas poesias que poderiam servir de letras às composições do grupo, enquanto Clapton se exercitava em riffs no melhor estilo de Buddy Guy, como frontman não declarado da banda. Ele havia deixado os ensaios dos Bluesbreakers para próximas gravações poucos dias antes, e apesar de uma de suas últimas participações efetivas no grupo ter sido um single em que cantava pela primeira vez, a clássica "Rambling On My Mind", ele preferiu deixar os vocais da nova banda a cargo de Bruce, mais experiente no assunto. Baker, por sua vez, esmurrava sem dó o seu instrumento, denunciando já ali uma tendência de mostrar serviço e segurar, da melhor forma que pudesse, um som que para todos eles era algo incrivelmente novo de se fazer. Ele mesmo dizia: "A formação de trio requer muito dos músicos que dela participam. Como um baterista desde tipo de banda, eu precisava fazer o máximo que pudesse para preencher todas as lacunas de som, mantendo o ritmo todo o tempo, e traduzir, da melhor forma e com coesão, as idéias que tínhamos." Foi dele e de Clapton, aliás, a preocupação inicial sobre a idéia de um nome para o grupo. Após a visita de um repórter da Melody Maker, Chris Welch, convidado por Baker para ver o que os três estavam aprontando, Welch avisou a Baker: "Arranjem um bom nome para o grupo e me mantenham informado. Mês que vem, queremos publicar sobre vocês com exclusividade." Uma matéria de uma página da Melody Maker de 11 de junho de 1966 anunciava, com alarde, e sob o título "ERIC, JACK E GINGER SE JUNTAM!" o que Welch havia visto (e apreciado bastante): "Um sensacional ‘grupo de grupos’(se referindo ao fato de todos já terem vindo de bandas famosas), estrelando Eric Clapton, Jack Bruce e Ginger Baker, está sendo formado". O artigo, que vinha com o propósito de matar a absurda curiosidade que acometia os fãs de Clapton sobre o que o ídolo vinha fazendo na época, ainda dizia que a formação realmente deveria ser a de um trio e que Bruce seria o possível vocalista. A matéria da Melody Maker provocou alarde na Swingin’ London – todos estavam loucos para saber que tipo de som estaria vindo de três caras como aqueles. A felicidade só não atingiu os ex-grupos de Clapton e Bruce, que não haviam anunciado formalmente a tais conjuntos que eles estavam debandando. Desnecessário dizer que John Mayall (apesar de sua cuca fresca) e Manfred Mann ficaram bastante desapontados – Mayall, especialmente, por haverem lançado recentemente o LP Blues Breakers: John Mayall with Eric Clapton. O nome do disco dava aos fãs a impressão errônea de que Clapton, dividindo as honras da casa com o líder, ainda estava com o grupo.

Após algumas sugestões e trocas de idéias, os três acolhem, com unanimidade, aquela burilada por Clapton e Baker: Cream, significando, nada mais, nada menos, e sem nenhuma modéstia, o que pretendiam ser: o creme do rock e da música pop do momento. Para empresariá-los, escolhem Robert Stigwood, dono do selo londrino Reaction, de acesso livre no show business inglês. E em 25 de julho, a Melody Maker estampa em sua capa: "ESTEJAM PRONTOS PARA O ‘CREAM’!". Em uma bela matéria de duas páginas, os integrantes do grupo falam de suas perspectivas para a banda, o tipo de som a que se propõem fazer ("é blues antigo e moderno, ao mesmo tempo", diz Clapton, enquanto Bruce prefere um "doce e saboroso rock and roll"), e coletam impressões sobre as suas raízes ("estamos pesquisando até sons de 1927 para o nosso repertório!") e as expectativas alheias ("muitas pessoas devem estar achando que seremos três solistas duelando entre si. No entanto, estamos mais interessados em tocar como uma banda coesa", diz Clapton – ingenuamente, não prevendo o futuro!).

O final de julho de 1966 é a época que presencia o nascimento da banda em um de seus mais memoráveis habitats: nos palcos. Uma pequena apresentação de "aquecimento", feita no clube Twisted Wheel de Manchester, desavisadamente, para poucas testemunhas, no dia 29, prepara o grupo para a sua grande estréia, oficial, que se dá dois dias depois, no grande Festival de Blues e Jazz Nacionais de Balloon Meadow – o popular Festival de Windsor. O grupo apareceu no último dos três dias de shows, e foi ruidosamente ovacionado por uma platéia afoita por ouvi-los. Durante a hora e meia em que se apresentaram, renderam versões matadoras de "Outside Woman Blues" e "Steppin’ Out", bem como de vários outros clássicos do blues e standards. Na palavra de todos, uma apresentação irrepreensível e emocionante, repleta de peso e energia, que gerou a impressão coletiva de que realmente se estava diante de algo novo: a cozinha perfeitamente sintonizada e tonitruante, hard e jazzística ao mesmo tempo como nunca se ouvira, casando jazz e blues elétrico amplificado com singular esmero, tendo à frente um guitarrista que se consolidava como verdadeiramente o melhor do Reino Unido, alçando vôos repletos de feeling e destreza com os seus solos endiabrados, diretamente da fonte de Robert Johnson e Muddy Waters. Era hard rock puro e descontrolado, como a equipe do jornal Record Mirror se orgulhava de dizer. Na mesma publicação, no entanto, Clapton dava mostras de um certo descontentamento, revelando os planos do grupo para coisas ainda melhores: "Estávamos um pouco nervosos em Windsor. Ainda vai levar uns dois meses para a gente ficar ‘okay’ mesmo. Já estamos treinando uns bons quatro números, próprios, e alguns clássicos...".

Os primeiros tempos mostram uma certa confusão nos rumos do grupo em sua tentativa de acertar o passo com seu estilo – inicialmente, não bem resolvido comercialmente.

Primeiro, Clapton tentou direcioná-los para uma linha de rock dadaísta, que estava começando a rolar na Inglaterra de 1966, com os grupos aderindo a idéias psicodélicas ainda nascentes e ingênuas, como os famosos happenings em shows ao vivo: apresentações pop inusitadas, com a pretensão de mostrar ao público alguma mensagem ou filosofia do grupo, por mais doida que fosse. Iam desde shows dentro de zoológicos até o grupo praticando o famoso "ritual de destruição" dos seus instrumentos ao final do show, um encerramento caótico iniciado por Pete Townshend do The Who, e seguido por bandas durante praticamente todos os anos seguintes da história do rock – vide o Nirvana, em plena aurora grunge. Poderia haver, ainda, a leitura de poesias e coisas estranhas acontecendo no palco enquanto a banda tocava, como grupos teatrais fazendo mímica – um pouco do clima nonsense destes hypes (as tais apresentações pop exóticas) daqueles dias estranhos pode ser conferido na seqüência que figura uma apresentação da ex-banda de Clapton, os Yardbirds, agora já com Jeff Beck e Jimmy Page, em um clube londrino, no filme clássico de Michelangelo Antonioni, Blow Up (Depois Daquele Beijo), e que hoje se tornou uma referência obrigatória bem mais por este trecho, que retrata com incrível singularidade o espírito louco daqueles tempos, do que por qualquer outra mensagem hermética que tenha a passar.

Pois bem: influenciado pelos novos conceitos da arte pop que despontavam, e que já lhe haviam sido apresentados na Escola de Arte na qual estudara, Clapton pôs na cabeça que as apresentações do Cream deveriam conter elementos inusitados, como perus pintados de rosa soltos no palco enquanto eles tocavam, múltiplas luzes estroboscópicas girando, e até bonecos de plástico e de borracha espalhados pelos cantos – como um insuspeito gorila com a enorme inscrição "Molly" na barriga. "Tenho que confessar que era algo bem ridículo, mas fazia parte dos conceitos que estávamos experimentando", disse Clapton posteriormente ao Los Angeles Times, na primeira tour deles pelos EUA. Gradativamente, as idéias dadaístas e de arte pop foram sendo abandonadas, à medida que o grupo notou que estava se preocupando muito menos com tais badulaques e parafernália do que com a equalização, a qualidade de som e a organização de suas imensas caixas Marshall no palco (adquiridas após um contrato de Stigwood com os fabricantes, garantindo publicidade). Somente um grupo de Cambridge, o Pink Floyd, levaria adiante pelos anos seguintes, com sucesso, a conjugação entre música e tais idéias psicodélicas.

O segundo passo em falso (ou incerto) do Cream foi em relação à sua estréia fonográfica. Como compositores, o time já estava bem engrenado: um amigo de Bruce, o poeta Pete Brown, foi trazido ao grupo para ajudá-los a compor material para a banda. O interessante é que Brown era velho conhecido também de Baker, que já o havia acompanhado, anos antes, em recitais de poesia musicados com jazz. Então, Baker e Brown experimentaram compor juntos inicialmente, mas como todas as tentativas de escrever uma música foram infrutíferas, pelo fato de juntos eles invariavelmente caírem na risada lembrando de alguma piada ou fato engraçado, Janet, a esposa de Bruce, se dispôs a compor com Baker. Este, mais inibido então, começou a trabalhar a sério com ela, e desta parceria saiu "Sweet Wine", uma dos grandes êxitos do primeiro LP do Cream. Bruce, por sua vez, começou a compor com Brown, nascendo daí uma parceria de grande sucesso – ele relembra com humor até hoje: "No final das contas, eu peguei o Pete Brown, e o Ginger pegou minha mulher".

O problema é que, lançado em outubro de 1966, o tão esperado primeiro compacto do Cream, "Wrapping Paper" (com a instrumental "Cat’s Squirrel" no lado B) desapontou os fãs. Aquela música, um típico tema vaudeville conduzido com leveza ao piano que dava a todos a impressão de que o Cream estava mais para cabaret band do que grupo de rock, deixou meia Inglaterra com um ponto de interrogação na cabeça. Pouco ou nada tinha do hard rock intenso apresentado em Windsor. Foi Bruce que saiu em defesa do grupo, em declaração concedida na Melody Maker: "Devo admitir que na verdade queríamos um pouco chocar as pessoas, havia um desejo neste sentido". O choque, entretanto, passou despercebido das paradas de sucesso: apesar de seu som bluesy extremamente agradável e original, "Wrapping Paper" atingiu a posição 34 nos charts britânicos. Ainda um mês depois, em uma aparição do grupo na Rádio BBC, para a apresentação em primeira mão de algumas das músicas que iriam compor o seu álbum de estréia, Clapton foi perguntado pelo apresentador do programa, Brian Mathew, o porquê do som apresentado no primeiro single. O guitarrista respondeu: "Eu tenho que admitir que queríamos surpreender os fãs um pouquinho, pois não queríamos que eles nos aceitassem simplesmente como uma blues band. Pretendemos algo mais que isso." Dadas as palavras divinas, era a hora de apresentar a música – e o Cream emendou com uma versão arrebatadora de "Sweet Wine", que deixou quem estava ouvindo o programa daquela noite aliviado. O corinho cheio de harmonia pop fresca e contagiante como introdução, a bateria tribal selvagem de Baker, o baixo forte e compressor de Bruce e seus vocais poderosos, o solo hipnótico de Clapton: aquele era o Cream que todos queriam ouvir, e que estaria presente no primeiro álbum.

Na verdade, "Wrapping Paper" representou não só uma dor de cabeça inicial para a banda no momento de atender a fãs e imprensa, como também em seus relacionamento internos – abalados já antes e no início de sua história devido à notória animosidade entre Bruce e Baker, conflito este que novamente veio à baila pelo fato de "Wrapping Paper" ter sido creditada a "Bruce /Brown", quando Baker insiste, até hoje, que na verdade esta canção foi escrita por todo o grupo, como uma contribuição conjunta, em um ensaio no estúdio. A alegação de Baker e a relutância de Bruce em aceitá-la constituiriam mais um ponto na longa trajetória de discórdias entre ambos, a ser continuada num futuro bem próximo.

O que muitos não compreendem, até hoje, é o caráter bastante comercial que foi dado ao Cream pelos seus próprios membros desde o início do grupo – eram uma banda que, apesar de sua imensa criatividade e brilho, era notavelmente projetada para dar certo, ao melhor estilo das pop bands inglesas da época, como Herman’s Hermits ou os Yardbirds após a saída de Clapton. Com todo um mercado pop alavancado com esmero por Beatles, Rolling Stones e, um pouco mais tarde, The Who, todos queriam a sua fatia de sucesso no meio. Especialmente caras talentosos como Clapton, Bruce e Baker, já cansados do binômio "grande popularidade-pouco dinheiro" previamente alcançado nos circuitos blueseiros. O Rover conversível de Baker adquirido por ele com o dinheiro ganho por ter contribuído com uma simples música para o lado B do single "Substitute", do The Who, fomentava tais expectativas. A simples declaração, bastante sincera, por sinal, de Clapton ao jornal musical Disc & Music Echo, de novembro de 1966, era uma prova gritante disto: "Nós (o Cream) queremos fazer dinheiro. Tenho trabalhado já há muito tempo por muito pouco e achei que já era hora de fazer algo a respeito para mudar isso".

Sem dúvida, estavam fazendo. Planejado para dar totalmente certo, o álbum Fresh Cream, lançado em 9 de dezembro de 1966, se tornou, ao longo dos dias seguintes, um estrondoso sucesso. Resultado de dias inteiros da banda trancada no estúdio, ensaiando, tirando novas idéias e testando novas sonoridades, resultantes das arrojadas inovações técnicas trazidas pela produção de Robert Stigwood (apelidado pelo grupo de "Old Stigbot"), o LP trazia 11 faixas, que davam ao público do rock inglês o que eles queriam: um Cream pesado e dinâmico, psicodélico e bluesy ao mesmo tempo, competentes o suficiente para fazer frente a medalhões da época como a tríade santa do som pop britânico: Beatles, Rolling Stones e The Who.

O maior êxito do álbum, por sua vez, o single que puxaria as suas vendas, "I Feel Free", permanece até os dias atuais como um dos mais perfeitos e concisos exemplos do hard rock sessentista e precursor do Cream: são três minutos e pouco de um som que começa inspirado no melhor blues & soul, com uma vocalização contagiante perpetrada pelos três, mais estalares de dedos anunciando a tempestade de som que se aproxima. A seguir, a entrada de uma condução imponente e atropeladora de Baker se faz acompanhar por guitarra e baixo cheios de suingue, enquanto as vocalizações prosseguem: "Feel, when I dance with you... we move like the sea...". Um intermezzo súbito pára a música, deixando espaço para um agressivo comentário de Bruce, exaltando os sentimentos de liberdade. O seu baixo lhe acompanha, ele libera tudo de seu vocal, e novamente a banda entra no ritmo hipnótico de antes, um rythim n’ blues rápido, elétrico e acachapante, enquanto Clapton deita em nossos ouvidos um solo incrível, épico e sinuoso, repleto de feedback e evocativo de toda a geração sixties. "NSU" e a já citada "Sweet Wine" também não deixavam a peteca cair, sendo que a primeira relembrava acordes tipicamente surf music para depois emendar numa porrada sonora monumental. Do lado dos covers de blues, tínhamos "Rollin’ and Tumblin’", de Elmore James, transformado num expresso locomotivo aflitivo e envolvente, mas o destaque ficava mesmo era com "I’m So Glad", de Skip James: a exemplo do que o grupo faria futuramente com "Crossroads", de Robert Johnson, esta era uma releitura inteiramente nova de um standard, injetando hard rock e sensualidade na dose certa, dando ainda espaço para um dos melhores momentos já registrados pela guitarra de Clapton em vinil, até então. Havia também "Spoonful", de Willie Dixon, metamorfoseada para um mastodôntico blues pesado, capitaneado pelo som furtivo da harmônica de Jack Bruce e os riffs viajantes de Clapton, ao passo que Baker explorava a batera e suas possibilidades rítmicas em suas miríades. Fresh Cream foi um sucesso: atingiu a sexta posição nas paradas britânicas, fazendo todos esquecerem do fracasso do primeiro single da banda, e conseguiu chegar ao número 39 nos EUA sem qualquer grande divulgação em território americano, mais na base do "de boca em boca" – nada mal para uma estréia, o que indicava já um proeminente sucesso além do Atlântico.

De fevereiro a março de 1967, durante a apoteótica turnê feita pela Europa (datas na Alemanha, Irlanda, Suécia e Dinamarca já contavam com ingressos esgotados), os fãs do grupo presenciaram o aperfeiçoamento de uma das suas mais sagradas instituições: as grandes improvisações ao vivo, feitas no palco como uma forma de dar mais espaço aos músicos para as suas habilidades individuais, bem como para compensar a falta de prática ou de interesse em tocar algumas músicas do álbum que não haviam sido bem treinadas para a execução pública. Na verdade, isto já havia começado logo após o Festival de Windsor, nas primeiras apresentações do grupo, quando descobriram que não detinham repertório grande o suficiente para animar uma platéia durante uma hora e meia, ou duas – desta forma, apelaram para os seus vastos conhecimentos musicais, e começaram a emendar as poucas músicas que haviam treinado com longas codas e intermezzos instrumentais variados, tornando uma prática comum em seus shows o casamento da liberdade jazzística com o peso do hard rock. Estavam criando, sem qualquer pretensão ou plano pré-estabelecido, uma espécie de celebração que seria feita por milhares de grupos de rock dali em diante, sempre se espelhando neles. Os admiradores iam à loucura com tamanho ataque sensorial – algumas "viagens" em cima de músicas como "NSU" e "Spoonful" duravam até vinte minutos, dependendo da inspiração que rolasse no momento, formando paredes de som intensas construídas por insistentes camadas de baixo, guitarra e bateria se sobrepondo, umas às outras!

De volta à Inglaterra, o Cream tinha mais algumas apresentações pela frente, mas a sua grande marca de vendagem de discos fez com que a Polydor, a sua gravadora, se interessasse sobremaneira em fazê-los embarcarem no grande lance da Invasão Britânica, e mexeu os pauzinhos junto a Robert Stigwood para que uma sólida turnê aos EUA fosse armada. Em poucas semanas, através de contatos com o DJ norte-americano Murray Kaufman, o célebre "Murray the K", foi organizado um grande evento pop em solo americano, chamado "Música em Quinta Dimensão", que tinha de tudo para atrair as grandes massas jovens do país, loucas por ácido e som, aos seus concertos, no RKO Theatre, em Nova Iorque. E o melhor: tendo o Cream como carro-chefe, ao lado de outros nomes célebres como Lovin’ Spoonfuls e The Who. Começava a era dos grandes festivais, e o Music in Fifth Dimension era mais uma dessas oportunidades de várias bandas faturarem conjuntamente, tocando um set de duas ou três músicas cada uma, e dando ao público a oportunidade de experimentar concertos ecléticos e variados, com diversos artistas. Para o Cream, no entanto, a experiência foi desanimadora, pois a má organização do evento deixou más impressões nos rapazes acerca de sua chegada ao Tio Sam: "Passamos a considerar estes tipos de show uma piada. Primeiro, pelo set apertado, não houve tempo para que Ginger tocasse o seu solo, e quase fomos expulsos do palco pelos organizadores. Depois, nos disseram que nosso equipamento não poderia ser trazido, e tivemos que usar o do The Who para fazer o show", relembra Clapton.

A bem da verdade, a primeira visita do Cream aos EUA serviu mais por três coisas, fundamentais: a mudança de visual, a descoberta de novos equipamentos e sonoridades, e o LP Disraeli Gears.

Haight-Ashbury e o movimento hippie estavam em plena efervescência quando o Cream aterrisou em solo americano. A psicodelia, com suas cores esfuziantes e cabelos longos, havia atingido o seu estágio mais avançado em todo o mundo, mas guardava diferenças geográficas – na Inglaterra, por exemplo, os jovens se ligavam mais nos terninhos tweed e em inspirações vindas dos mods e dândis londrinos, com os seus coletes, camisas de tecidos finos e casacos de veludo - uma tendência que virou febre após Brian Jones, dos Rolling Stones, um dos maiores dândis que o rock já teve, deixar clara a sua preferência por este tipo de roupa. Basta dar uma conferida no guarda-roupa de gente como Mick Jagger, Roger Daltrey ou de grupos como Status Quo e The Herd naquele ano para checar o que estava rolando no visual teenager dos britânicos nesta época. As cores e roupas de inspiração indiana, inclusive as batas, ainda demorariam quase um ano para virar sensação. Neste contexto, o hippie americano era bastante diferente: inspirada pelos paraísos artificiais induzidos pelo LSD tomado à luz de muito sol das praias californianas, – que estavam a anos-luz das foggy streets de Londres – a juventude passava a se vestir de roupas bem mais alegres e vivas, de um colorido psicodélico contagiante e bem a la vonté. Camisas esvoaçantes, lenços à exaustão, tecidos vindos da Índia: a nova moda era introduzida por bandas quentes como Love, Beach Boys e The Mamas and the Papas.

Contagiado pelo que viu (e ouviu), e por todo aquele visual ousado, o pessoal do Cream resolveu embarcar naquela: as cabeleiras de Clapton e Baker, já ficando vastas, deram oportunidade a loucos penteados afro que eles urdiram com a ajuda de cabeleireiros fashion de Nova Iorque e suas permanentes. Bruce, renegando o seu lado "afro", não quis fazer o mesmo com o seu cabelo, mas tratou de trocar o seu figurino para o que havia de mais moderno e arrojado para a época, no que foi prontamente acompanhado pelos outros. Quando regressou a Londres para a realização de mais algumas datas antes da gravação do novo LP, o Cream já era a banda com o visual psicodélico clássico que os consagraria – lá se iam as primeiras fotos promocionais do grupo, vestidos com tímidos uniformezinhos de prisioneiros, ou de couro, como pilotos da força aérea britânica.

É Clapton que conta, em entrevista concedida a um jornalista americano, nos anos 80, o resultado de suas peregrinações pelos estúdios e lojas de equipamentos musicais de Nova Iorque naqueles dias: "O pedal wah-wah utilizado em todas as sessões de gravação de Disraeli Gears eu comprei em Nova Iorque, em uma excelente loja de instrumentos musicais que eu achei por lá, a Manny’s. Tinha um som incrível, que dava um efeito impressionante, que eu usei largamente em "Tales of Brave Ulysses". As inovações técnicas advindas com a estadia do grupo nos EUA se fizeram refletir, também, no modo de gravar. Os estúdios da Atlantic, em Nova Iorque, foram escolhidos como novo reduto musical do grupo, e ali foram gravadas as duas primeiras faixas que figurariam no próximo trabalho da banda: "Lawdy Mama" e a emblematicamente psicodélica "Strange Brew", cantada por Clapton. Quando retornaram à Inglaterra, em 12 de abril, levaram os tapes daqueles novos sons que fariam gerações delirarem por anos e anos adiante. Para Clapton, então, em nova entrevista à Disc & Echo Music, a experiência de gravar em solo americano tinha se revelado inigualável: "Os engenheiros de som por lá são inacreditavelmente sábios musicalmente, tanto que até parece que são um outro membro da banda. Eles são magos musicais, e não apenas engenheiros de som."

Após cobrirem algumas datas em clubes ingleses ansiosos por verem seu espetáculo de peso e blues, o Cream retornaria aos EUA, eleitos o seu novo lar inspirador, onde gravaria as outras faixas de seu histórico segundo álbum, Disraeli Gears, que ainda demoraria uns bons meses para ser lançado – em muito, devido a problemas burocráticos com executivos da gravadora que não estavam achando muito "potencial criativo" nas novas faixas. O futuro trataria de provar quão erradas estavam aquelas pobres almas. As novas músicas, repletas de influências psicodélicas e cheias de um som cheio e vibrante proporcionado pelos estúdios da Atlantic, que dava maior dimensão à música heavy do grupo, iam sendo geradas, uma a uma, numa explosão de criatividade. Eram dias mágicos nos estúdios aqueles, e agora, junto à "gang" do Cream, estava um novo e precioso elemento: o baixista de ascendência grega Felix Pappalardi, grande amigo da banda desde os seus primeiros shows e uma espécie de roadie que os acompanhava aonde quer que fossem, agora dando também um suporte musical: "Strange Brew", o novo single programado para lançamento no mês de junho, havia sido composto por ele, sua esposa, Gail Collins, e Eric Clapton.

"Strange Brew" era um blues lisérgico e visceral embalado pela dança envolvente entre a guitarra de Clapton, alçando riffs fenomenais um após o outro, e o baixo de Bruce, conduzidos ritmicamente pela percussão precisa de Baker. Os vocais agudos de Clapton faziam a cama para adiante ele solar à vontade, com grande criatividade, enquanto a cozinha massacrava ao fundo. Um grande sucesso. Mas não menor, talvez, do que o lado B do compacto: a épica "Tales of Brave Ulysses", até hoje considerada uma das melhores canções do Cream. Era uma balada heavy em tom majestoso, cantada com imponência por Jack Bruce sobre a jornada do célebre personagem da literatura grega, e que dava margem a um dos melhores usos da guitarra wah-wah em uma canção de rock até hoje, emoldurando todo o som da música e conferindo-lhe uma atmosfera toda mágica. Clapton, aliás, preferia esta canção ao lado A do single. Ambas fariam parte do álbum Strange Brew.

Por falar em Clapton, este deu um verdadeiro arroubo de arrogância no retorno do Cream à Inglaterra em junho daquele ano, mas não sem razão: na verdade, a sua polêmica declaração, que irritou profundamente alguns ingleses mais bairristas, era uma porrada indireta no olho da imprensa oportunista: "É um verdadeiro saco estar neste país neste momento. Todo mundo anda obcecado por Jimi Hendrix – e se alguém mais ousa tocar uma frase de blues na guitarra que seja, é acusado de estar copiando ele!", declarou um revoltado Clapton à Disc & Music Echo. Clapton respondia a uma crítica feita por Lulu, célebre apresentadora de TV e cantora pop inglesa, uma espécie de ancestral dos teen media entertainers que temos hoje em dia, como os VJs da MTV – um de seus grandes hits foi a música-tema do filme To Sir, With Love (Ao Mestre Com Carinho), de 1967, no qual ela, inclusive, fazia um papel coadjuvante. Comentando o novo single do Cream, "Strange Brew", na mesma revista, ela dizia: "Clapton Cabeludo realmente ficou todo Hendrix, não é mesmo? Ele é espetacular em sua própria composição, mas tudo o que eu ouço nela soa a Hendrix." O que, analisemos bem, era uma visão totalmente distorcida da verdade: qualquer crítico com um mínimo de sensibilidade musical distinguiria muito bem os estilos de tocar guitarra de Clapton e de Hendrix.

O lendário guitarrista Jimi Hendrix havia aportado em Londres no final de 1966, levado pelo ex-baixista dos Animals, Chas Chandler, agora convertido em empresário musical, e estava agora fazendo o maior sucesso acompanhado da banda que Chandler arranjara para ele, o Experience. Por sinal, eram um trio, o que levantou rumores, posteriormente, sobre a intenção de Chandler de formar um grupo justamente na cola do Cream, que já estava sendo bastante comentado quando o Jimi Hendrix Experience começou os seus primeiros ensaios. Os dois grupos acabariam formando a linha de frente do então nascente rock pesado: ambos eram atordoantes em suas apresentações e gravações, apresentavam guitarristas apaixonantes e absurdamente inspirados, e sugeriam um visual "alienígena" e um clima psicodélico que agradava às platéias da época.

A obsessão inglesa pelo Jimi Hendrix Experience, entretanto, acabaria rendendo uma rivalidade saudável entre eles e o Cream que, ao modo dos Beatles e Rolling Stones, acabaram até ficando muito amigos, se cruzando em aeroportos e em casas noturnas célebres da época – como no Whisky A Go Go, de Los Angeles, EUA, assiduamente freqüentado por Clapton e Hendrix, que volta e meio trocavam figurinhas por lá e riam das comparações feitas pela imprensa entre ambos.

Durante o período de junho a novembro de 1967, o Cream realiza algumas das suas mais quentes apresentações, antecedendo o lançamento de seu fervorosamente aguardado novo disco, e tocando faixas dele durante elas, que levam as platéias ao delírio. Tocam na sétima edição do Festival de Windsor, num concerto de agradecimento pelo sucesso anterior por lá, assim como em San Francisco, EUA, lotando o Fillmore Auditorium e deixando extasiados os críticos musicais norte-americanos, que elevam o Cream à condição de culto, maravilhados com o brilhantismo, o domínio musical e os improvisos do grupo no palco. Tocam no Whisky A Go Go, em Los Angeles; em Boston, Massachusetts; no Café Au Go Go, em Nova Iorque. Para finalizar, enchem de gente o Grande Ballroom, de Michigan, dando um show irrepreensível. Do Los Angeles Free Press ao Melody Maker, a imprensa não se cansa de deitar elogios à banda e seu virtuosismo musical. Finalmente, na edição de 18 de outubro daquele ano, o prestigioso Time declara em suas mundialmente lidas páginas: "A turnê do Cream pelos EUA é a maior e mais bem sucedida aventura musical ocorrida desde os Beatles e Rolling Stones." Clapton, vingado perante a imprensa musical inglesa, diz simplesmente: "Acho que somos mais bem conhecidos e admirados aqui do que imaginávamos..."

Novembro de 1967 testemunha o lançamento de Disraeli Gears, que, confirmando todas as expectativas, chega ao topo das paradas tanto norte-americana quanto britânica, terminando por conceder ao grupo o status de lendas vivas do rock. Além do sensacional trabalho de arte de Martin Sharpe, fazendo da capa do LP um verdadeiro delírio ácido de cores e imagens, chamam a atenção faixas como a atemporal "World of Pain", a ultra-psicodélica "SWLABR" (originalmente intitulada "She Was Like a Bearded Rainbow"), de letra surrealista e ritmo inebriante, e a dramática balada "We’re Going Wrong" que são até hoje consideradas clássicos absolutos do rock, e são uma visão bem mais profunda e contemplativa das possibilidades criativas do hard rock lisérgico. Talvez, no entanto, não mais do que o maior êxito do álbum: uma das músicas pelas quais o Cream será eternamente lembrado, "Sunshine of Your Love", capitaneada por uma das frases de guitarra mais inspiradas e copiadas da história do rock. Este blues pesado e sincopado, cantado com grande garra por Bruce e Clapton, além de apresentar um solo sensualíssimo de Clapton e um dos mais perfeitos casamentos de baixo e bateria de todos os tempos, figurando alguns dos melhores momentos sonoros do grupo, termina com o primeiro "quebra-pau" gravado em estúdio de que se tem notícia, uma coda ensurdecedora que sinaliza o clima das apresentações ao vivo da banda, sumindo em fade out. É um clássico instantâneo.

O sucesso e a ovação geral, bem como a energia criativa, haviam chegado ao seu nível mais alto. Agora, era curtir cada vez mais e ir além... ou descer vertiginosamente, em declínio. Ou, possivelmente, os dois.

Parte 03 – O Concerto de Adeus

Nesta terceira e última parte da História do Cream, entraremos em contato direto com o luxurioso ambiente de fama, dinheiro, drogas e mulheres que cercou a banda em seus momentos finais, e o que a neurose advinda de todos estes elementos, combinados, fez para cingir para sempre uma das melhores bandas de que já se teve notícia. O leitor saberá como foram as primeiras dissidências, as mágoas e feridas que nunca foram esquecidas e nem curadas, a conexão Beatles / Rolling Stones / Cream, uma tocante homenagem do mago Hendrix, e a gota final de tudo: uma simples e miserável matéria da ‘Rolling Stone’. Verá, ainda, o que é uma despedida em grande estilo: o concerto eternizado no filme-disco "Goodbye Cream".

Enquanto crítica especializada e fãs se curvavam diante do som intenso e majestoso do álbum Disraeli Gears, que subia tranqüilamente nas paradas de sucesso daquele novembro de 1967, ninguém poderia imaginar que, dentro do Cream, a tensão havia voltado a se estabelecer como ordem natural das coisas. Desde a época de Bruce e Baker na Graham Bond Organisation que o clima não andava tão tenso como naqueles dias. A disputa de egos – para conceder autógrafos, para dar entrevistas, para resolver os assuntos particulares da banda, como divulgação, sessões de gravação etc. – parecia ter chegado a um ponto interminável. O engraçado é que a primeira grande discórdia dentro do Cream tenha começado, pra valer, não entre Bruce e Baker, o que seria mais previsível dado o notório passado de briga dos dois, mas justamente entre Bruce e Clapton.

Desde o mês de junho, quando havia sido lançado o single "Strange Brew", Bruce estava desgostoso com Clapton e com o produtor Robert Stigwood, pois ele descobrira, trivialmente escutando o compacto depois de pronto, que uma linha de baixo sua com alguns erros tinha sido a utilizada na mixagem – ou seja, apesar de ser um clássico do rock, até hoje reverenciado e copiado por inúmeros artistas, "Strange Brew", na verdade, não continha a parte de baixo gravada como a ideal por Bruce. Lembremo-nos que aqueles eram os anos 60, e quase nenhum pop star daquela época passou incólume pela experiência das drogas alucinógenas – assim como inúmeros outros não só da swingin’ London como da América e de vários outros cantos do planeta, Bruce e seus colegas do Cream, envoltos pelo embalo da fama e suas oportunidades graciosas, estavam experimentando uma novidade após a outra, excitados pelo clima de novidade e lisergia que Haight-Ashbury e o Verão do Amor de San Francisco haviam espargido pelo mundo. Foi assim que, envolto em suas roupas multicoloridas e com enormes óculos escuros para cobrir as olheiras de incessantes noitadas e compromissos do grupo, um indignado Jack Bruce chegou ao escritório de Robert Stigwood, numa manhã de junho de 1967, querendo satisfações sobre o que diabos havia acontecido na mixagem de "Strange Brew" para a sua linha de baixo, considerada a correta, desaparecer da versão final da música. Inicialmente, um atônito Stigwood alegou que os custos com o estúdio eram caros, e estavam excedendo o budget da banda – daí, na correria para terminarem a mixagem de "Strange Brew", em meio à confusão de fitas no estúdio, o tape correto de baixo havia sido limado. Explicações pela metade foram dadas, gestos e sorrisos amarelos foram trocados, e os assessores de Stigwood buscavam, em vão, mostrar a Bruce registros escritos do dia da gravação, tentando amainar aquele polvoroso imbroglio. Já visivelmente alterado após uma não muito deleitável viagem de LSD, Bruce chegava às raias da paranóia: ele havia lido comentários de Clapton (que não estava presente nesta ruidosa reunião) na imprensa escrita, louvando "Strange Brew" e os seus méritos como um marco na carreira do Cream. Clapton era o vocalista da canção, e tinha absoluto destaque no novo hit, que havia sido composta por ele, Felix Pappalardi e sua esposa, Gail Collins; Pappalardi era o novo produtor da banda, como indicavam as novas sessões de gravação, sempre sob o seu comando na cabine de controle: pronto, todas as evidências apontavam para uma conspiração de Clapton e Pappalardi para afundarem Bruce na banda! Ao final das contas, todas as estórias contadas a Bruce não conseguiram apagar o rancor do baixista que, irado, nunca mais esqueceu que um tape contendo a linha de baixo sua correta para "Strange Brew" havia, misteriosamente, desaparecido durante as sessões de mixagem.

A partir daí, Bruce, sempre um cara cordial e atencioso, começou a se distanciar mais da banda. Obviamente, como um músico decepcionado, ele começou a observar o gerenciamento e o modo como as coisas eram organizadas no Cream com uma maior visão crítica. Durante os concertos, a disputa de egos entre ele e Clapton começou a se exacerbar, sobretudo, nos momentos de improvisação – exatamente aqueles que se tornariam a marca registrada do Cream. Ciente da campanha que empresários e mídia silenciosamente faziam para promover a imagem de Clapton no Cream, Bruce passou a representar, nos shows ao vivo do grupo, uma espécie de oposição, elevando o volume dos amplificadores de seu baixo a um limite ensurdecedor durante as extended jams do grupo, perpetradas durante músicas como "Sunshine of your Love" e "Spoonful", que atingiam quase meia hora de improvisos. Clapton, em contrapartida, começou a ficar "mordido", e pagava um road manager só para, no backstage, cuidadosamente aumentar o volume dos amplificadores de sua guitarra na hora em que ele entrasse solando. Muitas vezes, tudo dava errado, e Clapton e Bruce saíam quebrando o pau após o show, inventando desculpas para culparem, um ao outro, por uma performance chata e apagada, quando, na verdade, tudo o que queriam era discutir sobre o volume dos PA’s. Nos bastidores, managers e amigos chegados notavam que o clima era de neurose, e que algo muito errado estava acontecendo.

Para piorar as coisas, alguns fatores externos ainda influíam negativamente no relacionamento entre os membros da banda. Não só drogas e problemas de entrosamento musical devem ser apontados como os culpados pelos conflitos que se seguiriam. As mulheres, também, – sem querer ser machista - desempenharam um papel importante para que o castelo de cartas ruísse. Groupies e tietes, afoitas por alguns momentos de glória, se aproximavam de Baker e Clapton a todo o momento, repletas de incenso, patchouli e ofertas de substâncias miraculosas, regadas a sexo: era a viagem ao paraíso que, invariavelmente, transformava-se numa descida aos infernos, muitas vezes. Baker, por exemplo, era constantemente cobrado, pelas fugazes namoradas que arrumava aqui e ali, sobre o seu papel de "grande baterista", e, já emocionalmente instável quando chapado de LSD (e outras drogas mais pesadas, no que ele era precursor no Cream), ele era instigado a brigar por mais espaço dentro da banda. Certa vez, após passar uma noitada com algumas "amigas" americanas, Baker chegou aos estúdios de gravação do próximo disco do grupo (o que viria a ser o Wheels of Fire) xingando todo mundo – e, enquanto não destruiu metade de seu kit de bateria, não sossegou. Bruce ficava desanimado por ver tempo e dinheiro perdidos ali, naquelas preciosas horas jogadas fora tentando produzir algo, e largava o baixo num canto, saindo para tomar um chá e tentando refrescar a cabeça até que as coisas ficassem bem novamente para voltar a tocar. A atitude de Clapton era do mais absoluto desânimo – apesar de, visto como o "deus da guitarra" e "líder do Cream", ele também tivesse lá os seus problemas com as visões doentias das tietes, o buraco para ele era bem mais fundo. Absorto em infindáveis pensamentos, Clapton experimentava as suas primeiras crises depressivas, originadas de um problema que ele ainda não havia conhecido muito bem: a dor da paixão.

Ainda em 1964, enquanto ainda fazia parte dos Yardbirds, Clapton conheceu o guitarrista dos Beatles, George Harrison, durante uma série de shows que ambas as bandas haviam sido contratadas para fazer no final do ano, no Hammersmith Odeon. Eles ficaram amigos, e ao longo dos anos, com a escalada de Clapton rumo à fama e sua ascensão no grupo de John Mayall e no Cream, a correspondência de ambos aumentou, e ele passou a se encontrar mais amiúde com Harrison em festas e visitas, nascendo daí uma grande amizade, baseada em uma afinidade de assuntos e gostos que os dois possuíam. O problema, a partir de então, talvez fosse justamente esta afinidade, que se estendeu ao ramo afetivo: em 1965, Clapton conheceria, em um encontro na casa de Harrison, a noiva deste, a modelo inglesa Patty Boyd, que dali a alguns meses, estaria se tornando a Sra. Harrison. Como em todas as estórias de grandes amores, Clapton não reconheceu imediatamente, mas estava ali a mulher que o faria perder a cabeça e passar oito longos anos de sua vida enfrentando problemas com drogas e bebidas dos mais diversos, tentando curar a paixão por Patty das maneiras mais inadequadas – período este durante o qual, não esqueçamos, ele pariu, em dedicação a ela, um dos maiores clássicos do rock: a canção Layla, em 1970, uma das mais belas declarações de dor-de-cotovelo da história da música pop.

Apenas com o passar do tempo, de 1966 em diante, e com o fracasso de vários relacionamentos amorosos, é que Clapton começou a perceber que havia algo de errado com o seu pobre coração. Começou a notar, também, que ficava profundamente irritado ao ver as fotos do festejado casamento de Harrison e Boyd nos jornais, ocorrido naquele ano. Consciente do mal que estava atravessando, passou a se distanciar de Harrison por uns tempos, não respondendo mais às suas chamadas e convites. Assim, Clapton procurou se concentrar mais nos assuntos do Cream, e tocar o barco com novos romances, que invariavelmente falhavam por ele procurar idealizar, em seus relacionamentos, uma mulher que fosse exatamente como Patty Boyd. Assim que o LSD, cocaína e demais congêneres começaram a adentrar o cotidiano do Cream, trazidos por garotas, empresários, amigos e demais figuras da esfera de contatos do grupo, Clapton embarcou na onda, procurando, mais uma vez, um paliativo para a dor que estava sentindo, grande bluesman que sempre foi, mas que não sabia explicar. Tudo isso foi levando o guitarrista a um estado de consciência bastante alterado, em diversas situações – e, obviamente, a velha magia do Cream, em estúdios de gravação e palcos rodeados de multidões, começou a falhar, devido ao delicado estado emocional em que se encontrava Clapton.

Estamos no início de 1968 agora, e esta era a situação limítrofe a que o Cream havia chegado, no ano novo, após um 1967 cheio de êxitos comerciais e artísticos. A tensão que havia se instalado dentro do grupo era difícil de ser superada, em decorrência dos fatores anteriormente explicados. Tínhamos um Jack Bruce extremamente magoado com a sua falta de poder decisório dentro da banda, e desconfiado de tudo e de todos; um Ginger Baker egocêntrico e exagerado, doidão de drogas constantemente, determinado a tomar todo o espaço que pudesse, com medo de ser relegado a um segundo plano por sua condição de baterista; e, enfim, um Eric Clapton nervoso e inseguro, apático e abatido pela sua paixão não resolvida, também se afundando nas drogas. Entretanto, ou talvez pressentindo mesmo a tempestade que se aproximava, promotores de espetáculo e empresários se apressavam em tirar o maior partido que pudessem das lucrativas apresentações da banda, e marcaram uma série de datas – o que, dada a conjuntura por que passavam, poderia só degringolar tudo. Já no final de 1967, haviam se desdobrado em uma série de shows nos EUA, que foram até o final de dezembro. Agora, em janeiro de 1968, enquanto tentavam gravar alguma coisa para o seu próximo álbum, os integrantes da banda recebiam de seus empresários, estupefatos, a notícia de que havia sido marcada para eles uma mega-turnê pelos EUA, de costa a costa, com início em 23 de fevereiro, e que se estenderia, provavelmente, até junho! As reações variaram de uma pseudo-felicidade (por tocar na América novamente) ao sentimento de estafa e esgotamento nervoso, assim que pensaram que seriam cinco meses vivendo juntos, lado a lado... Clapton, anos depois, é quem melhor definiria a situação delicada pela qual a banda estava passando naqueles dias: "Foi uma experiência terrível que vivenciamos, dia após dia, naquela época. Já estávamos ficando acostumados a sair e a nos relacionar apenas com os amigos que fazíamos nas inúmeras cidades em que chegávamos, e entre nós, nada mais havia a se falar. Não estávamos mais vivendo como um verdadeiro grupo; havia uma série de conflitos."

Ao mesmo tempo em que se concentravam para preparar novo material e conseguirem dar o melhor de si nas novas gigs que se aproximavam, mal imaginavam os membros do Cream que, fora de toda a paranóia a que estavam submetidos em seu ambiente de convívio, do lado de fora, já eram vistos com uma reverência admirável, e só presente em bandas que tinham muito mais tempo de estrada do que eles. Chegava 1968, o ano das grandes revoluções e protestos – definitivamente, o ano que marcou, de forma política e contracultural, todo o espírito contestatório da década de sessenta, com o Maio de 68 e suas barricadas estudantis na França, as passeatas anti-ditadura no Brasil (e a conseqüente instituição do AI-5), a Primavera de Praga, e os inúmeros protestos, nos EUA, contra o envolvimento do Tio Sam no conflito armado da Coréia comunista – a Guerra do Vietnã. Curiosamente, no meio de toda a balbúrdia que se instaurava, os próprios soldados americanos dispostos a matar ou morrer viviam, do outro lado do mundo, em meio a bombas, disparos, ópio e muita saudade de seus familiares e namoradas, o som do rock que chegava alto e poderoso nas rádios americanas instaladas nas bases militares, para entreter os officers. É interessante como a lembrança de centenas de veteranos daquele sanatório a céu aberto, cuja insanidade foi retratada com brilhantismo por Francis Ford Coppola em seu filme Apocalypse Now, remete a "Break on Through", dos Doors, ou "Magical Mistery Tour", dos Beatles (cuja imagem de uma caravana pronta para "te levar daqui hoje", para muitos soldados, era ou a imagem dos comboios de salvação nos campos de batalha, ou dos esquadrões de desbravamento de território prontos a carregarem milhares de recrutas para a morte...) – uma música tão intensa e emblemática de sua época, que as imagens de psicodelia e sonho se dividem entre as mentes da juventude que pregava a paz e se ornava de flores, e a juventude que embarcava para a morte e pegava em armas. Ainda em janeiro de 1968, as palavras de amor desesperado contidas em "Sunshine of Your Love", e que refletiam a própria fugacidade que os soldados americanos sentiam, diante das incertezas de conseguirem, um dia, regressar vivos à América para rever suas garotas, faziam desta música a mais tocada no dial das estações de rádio militares norte-americanas instaladas em território vietnamita. Em sua fossa romântica, Clapton nem imaginava que sua guitarra embalava, também, a fossa de vários outros atormentados jovens em luta pelo seu país, que talvez nunca mais pudessem ver o rosto de suas amadas. Também do outro lado do Atlântico, nos EUA, a ovação ao Cream era geral, e o nível de adoração que eles haviam atingido beirava a histeria dos idos tempos da beatlemania, fazendo com que George Harrison seguidamente congratulasse seu colega de instrumento pelos novos êxitos. Diversas publicações, como New Musical Express, Disc & Music Echo, Beat Instrumental e Melody Maker, repetidamente deitavam desmedidos elogios às performances ao vivo do grupo, e elevavam o seu último LP, Disraeli Gears, à condição de "criação da mais pura energia musical, direto do topo" (nas palavras de um crítico da Melody Maker). Havia, no entanto, uma publicação só que, desde o início da carreira do Cream, nunca topou bem com banda: a célebre revista americana Rolling Stone. Já na época do primeiro LP, Fresh Cream, haviam lhe dedicado a pecha de "presunçoso e sem inspiração". Agora, para Disraeli Gears, apesar de toda a aclamação geral, escreviam: "Infelizmente, o álbum não se sustém em conjunto, prejudicado por material bem pobre". Nunca ficaram bem claros os motivos pelos quais os críticos desta publicação remavam contra a maré, mas todos sabemos que, assim como em qualquer outro ambiente profissional, e imprensa musical se move através de um certo jogo de interesses – ingressos, bebidas ou garotas não concedidas nos shows certos, e nos momentos certos, por promotores e managers do Cream, a certos jornalistas, podem muito bem ter determinado a danação total do grupo pela Rolling Stone. De qualquer forma, veremos, logo adiante, que este desgosto da Rolling Stone em relação ao Cream iria culminar em um acontecimento de dimensões bastante consideráveis.

A tour que se seguiria, conforme as previsões, não melhoraria nada as relações internas do grupo, mas serviria para que dessem ao público americano o que ele mais queria: muito rock pesado. Sonoramente, a banda estava melhor do que nunca – ainda que, em algumas noites, devido a certos exageros nas substâncias químicas por parte dos músicos, eles se perdessem totalmente em meio aos solos e improvisações, e quebrassem a barreira dos quarenta minutos em certas músicas! A platéia dos anos sessenta, no entanto, e sobretudo a platéia do Cream, era acostumada a estes virtuosismos – a maioria deles, a bem da verdade, desnecessários – e tinha pique para agüentar o exagero.

Entre as idas e vindas do grupo entre shows e sessões de gravação agendadas (para preparar o próximo álbum, que deveria se chamar Wheels of Fire), o clima agressivo entre Bruce e Baker só ficava cada vez mais acirrado: as velhas brigas e disputas voltavam à tona, o que só prejudicava o Cream, já que a sua seção rítmica, por idéias musicais divergentes, não se entendia. Clapton, entorpecido pelos óbvios motivos já citados, se sentia meio perdidão e, se antigamente, pelo menos, ele era um ponto conciliador entre Bruce e Baker, agora nada mais parecia fazer sentido. Wheels of Fire, no entanto, exigia a devida atenção por parte de todos os envolvidos – afinal, era uma superprodução para os padrões da época! Produzido como um verdadeiro tour de force do Cream, havia sido planejado para ser um álbum duplo (inspirado no tão comentado White Álbum dos Beatles), era a mais cara produção realizada pelo grupo, apelava para o novo sistema de 16 canais, e envolveu um sem número de instrumentos e músicos convidados (além do próprio amigo e produtor Pappalardi) que lembrava o Sgt. Pepper’s dos Beatles: cello, diversos tipos de órgão, glockenspiel, harpas, sinos de diferentes tons, viola, seção de metais, o escambau... tudo para dar um clima de experimentação sonora, idealizado por Clapton, Baker e Bruce para o disco, e gerar a sensação de uma verdadeira sinfonia hard rock nos ouvintes. E é isso exatamente o que eles conseguiram em faixas como a épica "Those Were the Days", pontuada por sinos angelicais, e a belíssima e cheia de soul "Desolated Cities of the Heart", que conta com um intermezzo de violinos que dá à música um clima todo especial.

Apesar de toda a inovação buscada pela banda em seus novos sons, entretanto, volta e meia as discussões recomeçavam, e muito do gás para se concluir parte dos trabalhos se perdia. Faces aborrecidas novamente irrompiam, por um motivo qualquer, e a atmosfera de bode tomava conta do estúdio mais uma vez. Soluções para o marasmo foram, então, buscadas, a fim de que o álbum pudesse ser concluído. Primeiro, houve o indispensável incentivo de Felix Pappalardi, que desempenhou quase que o papel de quarto membro do grupo naqueles dias (inclusive, muitas vezes, tocando vários instrumentos e compondo ativamente com a banda, para trazer novas idéias musicais que os animassem). Segundo: resolveram voltar a tocar alguns blues, como nos velhos tempos, tentando reacender aquela velha chama das primeiras jams. Talvez, por isso, grande parte do material de Wheels of Fire fosse sair tão permeada de blues, como Disraeli Gears não era. Prova disso são "Sittin’ on the Top of the World", de Howlin’ Wolf, revivida pelo grupo em uma versão repleta de solos estelares de Clapton, "Born Under a Bad Sign", de Albert King, e "Crossroads", um velho standard da lenda Robert Johnson, que nunca saíra da cabeça de Clapton, e para o qual estavam treinando constantemente agora, para os shows da turnê americana – acabaria entrando no novo álbum, inclusive, não como uma versão de estúdio, que nunca foi devidamente produzida, mas sim, como um take gravado de um show da banda no Fillmore West. Também havia "Politician", uma vigorosa composição nova e cheia de ironia, por cortesia de um Jack Bruce revoltado com os parlamentares britânicos: bebia diretamente na fonte do blues, conduzida por uma imponente linha de baixo que impressionava o ouvinte na primeira audição.

Em maio, dois importantes acontecimentos marcam o Cream. O primeiro seria a sua última aparição tocando juntos, como grupo, em um show de TV. Em virtude do grande sucesso alcançado por "Sunshine of Your Love", eles são convidados para tocar a música ao vivo, no prestigiado programa pop Smothers Brothers TV Show. O acordo, entretanto, era para que tocassem duas canções, e, não querendo voltar ao passado e apresentar outro hit qualquer, resolvem tocar algo novo, em um set bem acústico e calmo: Clapton no violão, Bruce no baixo e Baker com um simples atabaque – tentando, como na época de Wrapping Paper, mostrar ao público um outro lado do grupo, mais melódico. Assim, direto do material que estava sendo preparado para Wheels of Fire, trazem "Anyone for Tennis", uma bucólica e folky composição de Clapton da qual ele posteriormente iria se cansar, passando a detestá-la - apesar de ser uma contribuição sua para a trilha sonora do filme que um amigo seu estava rodando (depois lançado como The Savage Seven – um violento drama sobre uma gangue de motoqueiros e seus conflitos existenciais, estrelando o lendário guitarrista Duane Eddy, em um dos papéis principais). Apesar de ser uma canção menor na carreira do grupo, assim que foi lançado em compacto, após a performance no Smothers Brothers, subiu assustadoramente nas paradas, indicando como o cacife do Cream estava alto naqueles dias – "Anyone..." não tinha nada do estilo da banda. Entretanto, como levava seu nome, vendeu como água, como todos os seus outros singles.

O segundo acontecimento seria fatídico para o destino do grupo, terminando por ruir todas as estruturas internas que já estavam bastante abaladas.

No dia 11, a Rolling Stone publicou uma entrevista feita, algumas semanas antes, com Clapton, ao lado da crítica de um show recente da banda, feita pelo jornalista Jon Landau – nome que se tornaria odiado pelos fãs do grupo pelo resto de suas vidas. A entrevista, distorcida ou não pelos editores, mostrava um Clapton esnobe e convencido de sua alta posição dentro da banda, se entregando a todas as declarações caprichosas que uma estrela pode fazer: coisas que ele havia dito que indicavam um ego mais agudo haviam sido maximizadas ao cubo na matéria. E, em seu review do show, Landau colocou aquela declaração que ficaria para sempre registrada na memória do guitarrista: "O Cream já saturou, chegou ao limite, e parece não haver mais para onde ir (...) Todos percebemos que Clapton é um mestre dos clichês do blues de toda essa geração pós-guerra que resolveu passar a mão numa guitarra!". E, em sua fúria anti-Cream, ia além: "Clapton, assim como aqueles virtuosos que o acompanham, é ótimo em copiar idéias de outras pessoas".

Aquilo arrasou Clapton de uma maneira tal que, depois de ler aquela edição, ele nunca mais foi o mesmo. Amigos dizem que o guitarrista pegou um exemplar da revista enquanto estava tomando um drinque uma tarde, na mesa de um bar em Boston, após uma passagem de som, sentou-se lá, e pôs-se a ler o que era só destruição e depreciação de uma carreira solidamente construída. "Aquilo foi um evento em minha vida. Eu não consigo acreditar em tudo que estava escrito lá até hoje." Ele comentaria, algumas semanas depois da repercussão da reportagem, na revista Hit Parader: "Eu abri, li tudo aquilo, e a coisa toda era só ego. Ego, ego... e só ego... escorrendo pela entrevista, de uma maneira bem forte. E aí eu viro a página e dou de cara com a crítica do show. E aquilo, sabe... naquele momento em particular eu praticamente quebrei por dentro, tudo aquilo no que eu acreditava em termos de música ruiu e caiu em pedaços em poucos minutos. Eu entrei numa crise depressiva lá mesmo e passei o resto da tarde naquele bar. Eu estava estático. Tive que ser levado por amigos para casa depois... foi tipo uma cena de crise depressiva mesmo. E o pior é que toda a motivação por trás daquilo tudo parece ter sido realmente maléfica. Aquele cara (Landau) me chamou de ‘mestre do clichê de blues’. Isso foi o que ele falou de mim. E essa foi uma das razões pelas quais eu pensei ‘Chega disso. Estou caindo fora disso tudo.’ Eu só pensava em abandonar tudo, a partir de então." Como é publicamente notório, sabemos que depois do fim do Cream, Clapton passou a renegar a sua condição de guitarrista famoso e quis até mesmo voltar ao anonimato, passando a tocar em uma banda sob pseudônimo (Derek and the Dominoes, com quem lançou "Layla"), e tentando reafirmar a sua reputação e sua carreira de forma bem modesta, sem as luzes grandiosas e a megalomania roqueira do Cream, numa espécie de arrependimento e auto-flagelação por ter abandonado a sua condição de simples guitarrista de blues em Londres para se tornar uma mega-estrela do rock. Seja como for, a partir de então, após as bombásticas declarações de Clapton de como foi afetado pela matéria da Rolling Stone, vários semanários e publicações musicais, inglesas e americanas, passam a prever o fim da banda – que, se já não estava bem internamente, agora, com a desistência de Clapton, tinha tudo para acabar de vez mesmo.

Finalmente, com o final da turnê americana, após muito pega-pra-capar entre todos os componentes da banda e a crise vivida por Clapton, aparentemente, agora, teriam um descanso, e Wheels of Fire foi lançado em julho daquele ano. Não é nem preciso dizer que, com a imensa expectativa de público e imprensa pelo próximo trabalho do Cream, o álbum chegou ao topo do hit parade americano brincando. Também na Inglaterra, foi vendido a uma velocidade estonteante, rapidamente saindo da posição 54 nos charts britânicos para atingir a 3a. Como o pessoal da banda não havia ficado satisfeito com grande parte do material produzido em estúdio, apesar de toda a fanfarra musical lá organizada, decidiram fazer uma homenagem aos fãs das apresentações do grupo, e Wheels of Fire foi lançado como sendo um disco de estúdio e o outro ao vivo, contendo hits da banda tocados nos shows do Fillmore West e do Festival de Winterland, em San Francisco (dentre eles, a estupenda releitura de "Crossroads", até hoje considerada a mais perfeita gravação ao vivo de rock jamais feita), para o deleite dos ouvintes. O grande hit mesmo, entretanto, era a mágica "White Room", uma viagem de 5 minutos e tanto com vocais inspiradíssimos de Jack Bruce, bem ao estilo majestoso do Cream, que sabia como ninguém misturar sons pop, jazz, psicodelia e hard rock viajante em canções impagáveis.

Publicações como New Musical Express, Disc & Music Echo, Record Mirror e Melody Maker se curvaram diante do lançamento e o adoraram em suas páginas com um louvor até então inédito para revistas e jornais de rock. Era aclamado, definitivamente, como a obra-prima do Cream, que provava sua versatilidade tanto nas faixas ao vivo como nas pérolas de estúdio, cheias de criatividade e novas sonoridades incorporadas ao habitual peso de sua música. O britânico Beat Instrumental foi taxativo: "Comprem este álbum ou vivam miseravelmente o resto de suas vidas!". Mas a Rolling Stone, só para não fugir de sua nojenta tradição, estampou em letras bem visíveis, num artigo de Jan Wenner: "O Cream é bom numa série de coisas; infelizmente, composição e gravações não estão entre elas". Logo adiante, o mesmo jornalista lançava um disparate: "a sua ‘White Room’ é, praticamente, uma duplicata de ‘Tales of Brave Ulysses’", sendo que ambas as canções eram muito diferentes, apesar de, até certo ponto, seguirem uma mesma cadência. Shows, músicas, gravações... o que mais faltava para eles depreciarem?

Neste meio tempo, Clapton resolve esfriar um pouco a cabeça com o seu sofrimento, e, também pela ânsia de ver Patty novamente, nem que se seja ao lado do amigo, ele se aproxima novamente de Harrison. Este, quase que imediatamente, agradece a sua visita com um convite que entra para a história do rock: conversando sobre o novo álbum que os Beatles estavam produzindo, ele comenta como as coisas agora estão diferentes nos estúdios de Abbey Road, e que, como cada beatle anda produzindo o que quer, separadamente, ele delegaria o solo inteiro de uma composição nova sua, "While My Guitar Gently Weeps", a Clapton, por achar que seu estilo de solar casaria muito bem com o clima da canção. Um comovido Clapton, agradecido pela chance de participar de uma gravação dos Beatles, e roído por dentro por todo um sentimento brutal de culpa por estar amando a mulher de seu melhor amigo e ter que permanecer em silêncio, aparece em Abbey Road em 6 de setembro, e após gravar a sua parte para a música, desabafa com Harrison: o Cream definitivamente não tem como continuar, e ele acha que vai partir para outras empreitadas (Harrison também havia comentado com Clapton, tempos antes, sobre como andava desanimado com os Beatles ultimamente).

As incertezas, a partir de então, cresceram com a mesma intensidade de manchas nebulosas no céu durante o aproximar de uma grande chuva. Quando raramente localizados pela imprensa, nenhum dos membros da banda dava declaração alguma sobre qual era o destino do Cream ou o que iria acontecer. Apenas eram muito fortes os rumores de que o empresário Robert Stigwood vinha tentando, já havia várias semanas, reunir todos em uma sala só, acalmar os ânimos e conseguir persuadi-los a continuar o trabalho até ali realizado. Stigwood bem que tentou assim, de julho a setembro daquele ano – infrutiferamente.

Quando o Cream finalmente voltou à mídia, em outubro de 1968, já era para anunciar a sua eternamente célebre Farewell Tour, ou seja, a "Turnê de Despedida", que iria ser finalizada, em grande estilo, com um farewell concert, o concerto de adeus, eles ainda não sabiam bem aonde. Foram marcadas várias datas nos EUA, todas com lotação máxima e tickets instantaneamente esgotados – era a última oportunidade de ver o Cream! Oakland, Iowa, New York... na Big Apple, após um lendário concerto no Madison Square Garden, receberam o disco de platina pelas vendas recorde de Wheels of Fire. Jornalistas afoitos se acotovelavam para conversar com Jack Bruce, nos bastidores do show: "Vocês estão realmente acabando... ou poderíamos dizer que isso é um dos mais geniais golpes promocionais para conseguirem mais vendas de ingressos?" – comentava ironicamente um dos repórteres presentes. "Bem... eu simplesmente acho que o que basta... já basta.", respondia impacientemente o baixista.

O ato final, todos concordaram, seria encenado no grande Royal Albert Hall de Londres, em um dos mais disputados e emocionantes shows da história do rock: marcado para 26 de novembro de 1968, o concerto de adeus do Cream teve, como abertura, o grande Taste, de Rory Gallagher (e que todos imaginavam que, por ser também um power trio, seria o sucessor do Cream pelos anos seguinte – mas também logo se desmanchou), e uma banda que já indicava o futuro do rock, dali para os anos 70: o Yes, que, nas suas longas digressões, mostrava como o Cream havia inovado no rock ao vivo e abrido espaço para muita coisa antes não imaginada. Os ingressos se esgotaram em apenas duas horas de venda, e a platéia, querendo prestar a sua última homenagem aos seus heróis, aitrou 5.000 rosas aos pés de Clapton, Bruce e Baker ao final do show, aplaudindo compulsivamente e esperando pelo bis, em que eles detonaram "Sunshine of Your Love" e a velha "Steppin’ Out".

Ainda depois de terminado, o público continuava os ovacionando ruidosamente, mas ao perceberem que o fim do show realmente havia chegado, todos entoaram emocionadamente: "God Save the Cream!" (numa subversão criativa do tradicional "God Save the Queen" com que a Rainha Elizabeth era saudada). O sucesso foi tanto que um segundo show foi realizado, na mesma noite, poucas horas após o primeiro, e todas estas cenas se repetiram, transformando o concerto de adeus em dois, na verdade. Ambos os shows foram filmados por Tony Palmer e condensados em um filme histórico, chamado Goodbye Cream, posteriormente televisionado pela BBC, e lançado com grande sucesso no mundo inteiro. É mais um daqueles momentos, registrados em celulóide, da simbologia de uma época que não volta mais e de suas bandas lendárias, se despedindo – fez história, assim como os filmes Let it Be, dos Beatles, e Gimme Shelter, dos Rolling Stones.

Em vinil, no entanto, ainda havia a última despedida a ser feita. E com o mundo inteiro ainda respirando muito Cream após a chegada do ano novo de 1969, no final de fevereiro sai o álbum Goodbye Cream – que, ao contrário do que o título possa fazer pensar, não é uma trilha sonora do documentário do último show, mas sim, uma simpática coleção de faixas que haviam ficado de fora da edição final de Wheels of Fire e algumas coisinhas novas, dividido em três músicas ao vivo, retiradas de um show em 19 de outubro de 1968 no Fórum, de Los Angeles, e quatro registros de estúdio – dentre eles, a já famosa balada "Anyone for Tennis", remixada e lançada em uma versão um pouco diferente da do compacto. Inicialmente, o álbum havia sido planejado para ser uma continuação de Wheels of Fire: ou seja, da mesma forma, um disco de estúdio e outro só ao vivo – entretanto, diante do material considerado insatisfatório por Clapton e cia., logo o plano foi abandonado. O que chamava mesmo a atenção – e que seria o último grande sucesso e hit single do Cream – era uma outra balada, "Badge", que era uma excelente parceria de Clapton e George Harrison na composição, entretanto, creditado como "L’Angelo Misterioso", para não render problemas legais com a EMI, gravadora dos Beatles. Esta gravação, da qual Harrison participou, um clássico do rock, esconde uma estória engraçada: o seu curioso título saiu de um equívoco de Clapton, do qual Harrison deu boas gargalhadas. Estava previsto que Clapton não tocasse até que chegasse a parte da virada de ritmo da canção – o bridge, como dizem os ingleses. Entretanto, como Harrison escreveu em garranchos a palavra "bridge" no meio da letra da música, e Clapton, observando de longe o papel, não conseguia enxergar direito o que estava escrito, ele perguntou: "Que diabos é isso, Georgie? Badge?" – e assim ficou no nome da música. O som era tão bom pois, nas palavras de um crítico de música norte americano, "soava tanto a Cream quanto a Beatles"...

A produção de arte de Goodbye Cream também revela como os músicos estavam aliviados por estarem virando aquela página na história de suas vidas. Clapton, Baker e Bruce concordavam, entre si, que já haviam dado o melhor que podiam como um conjunto, e resolveram fazer uma capa para o disco bem-humorados e fazendo uma gozação com o próprio fim do grupo – num clima bem diferente do melancólico final dos Beatles, com os LPs Abbey Road e Let it Be. Concordavam, também, que agora não havia outro rumo a não ser partir para coisas novas, tentar parcerias e grupos diferentes – enfim, inovar, seguir adiante sem ficar olhando para trás, que é sempre o caminho que um verdadeiro músico deve seguir. Sem mágoas, rancores ou ressentimentos, mas com uma espécie de senso pelo dever cumprido, os três haviam se reunido nos estúdios do fotógrafo Michael Cooper no final de 1968, para a sessão de fotos simulando o gran finale de um show da Broadway, ou de um daqueles grandes musicais de Hollywood, da qual sairiam as divertidas capa e contracapa do último disco da banda: vestidos de roupas de gala prateadas, com cartola e tudo, os membros do Cream acenavam sorrindo para as câmeras, dando adeus aos seus admiradores e encerrando um capítulo de ouro na história do rock. No interior da capa dupla do LP, no entanto, uma brincadeira de humor negro: os nomes das músicas vinham inscritos em lápides de cemitério...

A verdade é que, até no momento de seu fim, o Cream foi único, insuperável, clássico... Terminaram com uma elegância e uma pompa invejáveis. Além de darem vazão, também, a homenagens inesquecíveis.

Desde o final de 1968, o Jimi Hendrix Experience, negando a rivalidade sugerida por mídia e órgãos da imprensa entre eles e o Cream (o que sempre foi feito, também, como uma campanha de marketing entre Beatles e Rolling Stones), vinha tocando, em alguns de seus shows, "Sunshine of Your Love", numa espécie de resposta de Hendrix aos jornalistas, aborrecido com as comparações que vinham fazendo dele com o seu amigo Clapton. Era a reverência do Experience ao Cream, mostrando a todos como eles também se sentiam influenciados pelo trabalho da banda e de como eles a admiravam. O grande tributo, entretanto, aconteceu mesmo no comecinho de 1969, no dia 4 de janeiro, e não poderia ter sido em melhor estilo.

Já plenamente conhecido dos teenagers da época, o programa The Lulu Show trazia a apresentadora Lulu, – aquela mesma que, anos antes, havia desmerecido o trabalho de Clapton diante de Jimi Hendrix numa crítica publicada na Disc & Music Echo – e que era famosa no meio pop londrino por "babar ovo" em cima de novos talentos, num clima de pretensa bajulação e falsidade bem típico de certos apresentadores e apresentadoras de TV de hoje em dia. Como sempre aconteceu com o mainstream, que se apropria de aproveitadores que embalam seus produtos no afã de explorar financeiramente o mercado consumidor jovem, todos sabiam que o negócio de Lulu não era bem o verdadeiro rock – mas ela estava nessa, assim como vários outros, mais pelos interesses lucrativos que o show business já tinha, enxergando o grande potencial econômico do rock, a partir da década de 60. E o convidado especial do Lulu Show naquele janeiro de 1969 era, justamente, o Jimi Hendrix Experience, por quem Lulu dizia ter "a maior admiração", apesar de Hendrix e todos saberem que, no minuto seguinte, com o aparecimento de um novo artista ou alguma armaçãozinha pop paga por alguma gravadora, eles seriam detratados.

Pois bem, Hendrix se lembrava muito bem das críticas que Lulu havia feito, comparando Clapton a ele na Disc & Music Echo, e como isto havia deixado o guitarrista do Cream magoado. Ele sabia, também, que o acordo para aparecer no Lulu Show previa que o Experience tocasse apenas duas músicas – mesmo assim, em um formato menor, mais pop, e sem muita enrolação, por causa do timing do programa, transmitido ao vivo para toda a Inglaterra. Assim, Hendrix falou com o baixista Noel Redding e o baterista Mitch Mitchell, seus colegas de banda, e urdiu sua doce vingança. Abriram o programa tocando a já célebre "Voodoo Child", hit de seu último álbum, o fenomenal Electric Ladyland. Logo depois, após uma introdução de Lulu os exaltando e dizendo como ela adorava a próxima música que eles iriam tocar – prevista para ser o seu primeiro sucesso, a balada "Hey Joe" – Hendrix entrou na música com os seus companheiros. Primeiro, iniciaram com uma introdução pesadíssima, que lembrava muito os finais dos shows do Cream, dando o máximo volume de seus instrumentos – o que já deixou os produtores do programa atônitos com aquela barulheira, não prevista no schedule. Após quase um minuto, então, entraram nos acordes da música, finalmente, e começaram a tocar o que era conhecido como "Hey Joe": Hendrix cantava a letra com desleixo, enquanto Redding e Mitchell conduziam o ritmo calmamente, no compasso lento do blues.

De repente, pânico na produção do programa: algo saía fora do previsto! Numa súbita parada, Hendrix calmamente parou de tocar e se dirigiu à platéia, pasmada, nos seguintes termos: "Vamos parar de tocar esta musiquinha de merda para prestar uma homenagem a uma das maiores bandas de todos os tempos: o Cream!". E emendaram com os primeiros acordes de uma versão instrumental de "Sunshine of Your Love", que levaram a platéia ao mais absoluto delírio! Saiu tudo ao vivo, levado ao ar para o alarde dos produtores: o palavrão de Hendrix, a cara de constrangimento de Lulu, o público aplaudindo... e tudo isso no canal de TV da sisuda BBC de Londres! Um daqueles incautos momentos históricos em que o rock, moleque e rebelde, cuspiu na cara do sistema diante de todos. O caos, infelizmente, durou alguns poucos minutos: a transmissão foi cortada, e podia-se ouvir Hendrix falando ao microfone, enquanto um sorriso maroto resplandecia em sua face: "Acho que fomos tirados do ar...". Está tudo registrado no CD do Jimi Hendrix Experience BBC Sessions, que inclui a apresentação completa da banda no programa daquele dia. Foi, sem dúvida, uma das melhores homenagens que poderiam ser rendidas ao Cream...


Prólogo

Hoje em dia, as peripécias do Cream e o que o grupo fez para desbravar os limites do rock e da música pop já são bem conhecidos de todos, e muitas destas estórias já entraram para o terreno da lenda. Muitos já sabem, também, do que aconteceu depois com os seus integrantes: as diversas formações das quais Clapton, Bruce e Baker participaram depois, as inúmeras parcerias e gravações, suas carreiras solo, e o que aconteceu depois com estes hoje grisalhos senhores britânicos (talvez nem todos: Baker é o mais acabado, resquícios de seu passado de exageros: um vovô magricela, de cabelos branquíssimos). Isto, no entanto, não é assunto que abordaremos – o nosso propósito sempre foi o de contar uma estória completa, detalhada, e, de certa forma, curiosa do Cream.

Portanto, por outro lado, ficaria incompleto o nosso registro caso não mencionássemos, aqui, a honrosa incursão da banda no prestigioso Rock n’Roll Hall of Fame, e que se deu com uma impagável cerimônia realizada em 23 de janeiro de 1993, no Central Plaza Hotel de Los Angeles onde, por alguns minutos, uma platéia de 700 felizardos e alguns poucos convidados pôde presenciar uma jam de retorno do grupo, em agradecimento pelo título concedido de lendas do rock.

Naqueles mágicos 13 minutos, em que eles tocaram "Born Under a Bad Sign", "Sunshine of Your Love" e "Crossroads", os presentes puderam respirar um pouco mais do ar de uma era em que o espírito do verdadeiro hard rock e sua criatividade eram algo mais do que pôsteres de revista e clipes na MTV.

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Sobre Denio Alves

Denio Alves, natural de Valença-RJ, é crítico, escritor, ensaísta, diletante de poesia, ouvinte e praticante, nas horas vagas, de rock e todas as demais formas de música popular ou de vanguarda que do gênero advenham. Além de técnico em computação, professor de inglês e estudante de Direito, é também pesquisador cultural e artístico das demais mídias de expressão e comunicação, já havendo atuado como colaborador de diversos fanzines na década de 90 do século passado e fundador do célebre veículo alternativo Eram os Deuses Zineastas?. Participou ativamente, em Ituiutaba-MG, onde reside, do processo de formação e criação das bandas de garagem Bloody Garden e Essence, ao lado de Edgar Franco, Gazy Andraus e demais personalidades do underground do Triângulo Mineiro, como guitarrista, vocalista e compositor. Atualmente, participa da concepção de um novo projeto de expressão do RPB - Rock Popular Brasileiro, o Mondo Cane, além de colaborar periodicamente com artigos no site WHIPLASH.
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