Música: Um organismo vivo
Por Marcus Lopes
Fonte: Desossando a musica
Postado em 02 de dezembro de 2016
Assim como o ser humano, música é um organismo vivo.
Ainda que de forma abstrata, uma música possui características semelhantes às de uma pessoa, como por exemplo, estética e sentimento. Quando falo sobre essas duas características, prefiro nomeá-las de "beleza exterior" e "beleza interior". Como seres humanos, costumamos utilizar esses conceitos a respeito daqueles que conhecemos. "Ele pode ser esquisito por fora, mas tem um coração tão bom que acaba sendo uma pessoa bonita por dentro". Quantas vezes não nos pegamos elogiando ou depreciando alguém com base nestes conceitos?
Para uma boa compreensão de como estes dois conceitos de beleza influenciam na criação de uma musica, acho interessante fazermos uma analogia com a concepção de um ser humano em laboratório. Devido ao avanço da ciência, e dadas às devidas proporções, é possível de se gerar uma vida com características físicas previamente determinadas. Se um cientista deseja gerar um embrião com a intenção de que ao atingir a idade adulta ele tenha características específicas, como pele clara, cabelos loiros, olhos azuis e alta estatura, tudo que o profissional precisará fazer será apenas seguir os procedimentos necessários para realizar este feito - a começar por buscar óvulos e espermatozoides de pessoas que possuam essas características. Porém, até aqui falamos de características físicas. O que passar disso – ou seja, traços de personalidade – dependerão de inúmeros fatores que não mais se encaixam em procedimentos ou fórmulas utilizadas em um laboratório. Em outras palavras, pode até ser possível manipular a beleza exterior de um adulto que um dia passou por um tubo de ensaio, mas não a sua "beleza interior". Se ele será uma boa pessoa, isso dependerá de outros fatores que não cabem mais às técnicas da medicina.
Da mesma forma, penso que basta seguir os procedimentos corretos para se criar uma música ou um álbum do ponto de vista estético. Nesta visão da concepção, podemos definir, por exemplo, se vai ser Rock ou R&B, como serão os arranjos na introdução, qual será a quantidade de refrões e tonalidade utilizada. Efeitos de guitarra e teclados a serem usados. E mais uma série de aspectos técnicos que envolvem conceitos teóricos de harmonização, bem como técnicas de mixagem e masterização. Todos os exemplos até então citados resultariam nas "características físicas" da musica. Mas quando falamos de "características de personalidade", saem de cena os moldes ou formatos limitados por conceitos lógicos. A importância que uma canção terá no subconsciente de quem ouvi-la, bem como as diversas sensações que ela gerará no ouvinte demandará algo muito maior do que técnica, teoria e procedimentos. É preciso entender que uma canção possui uma beleza interior, gerada por diversos aspectos que na maioria das vezes não possuem nenhum sentido lógico.
O que tenho percebido é que a boa música possui uma característica singular e complexa que também encontramos em uma pessoa: ela tem alma. Os mais céticos poderão dizer que isto não tem fundamento, e respeito esse tipo de opinião. Mas ainda assim gostaria que os mais descrentes sobre esse assunto pensassem com carinho na analogia que fiz da música com o ser humano no parágrafo anterior, e que continuarei a explorar nos próximos parágrafos com outros exemplos.
À medida que evoluímos nossas habilidades como compositores, torna-se maior o risco de adquirirmos o hábito de criar música com padrões pré-estabelecidos, como se fosse possível compor qualquer coisa através de fórmulas matemáticas. De fato, é possível de se construir uma canção apenas utilizando conceitos teóricos de harmonia. Todavia, a frustração toma conta do músico quando sua obra não atinge um patamar mínimo de sucesso esperado. Sua música não cativa. Não emociona. Não inspira. Existem músicos que estudaram por anos e anos, praticando oito horas por dia. Adquiriram uma habilidade acima da média. Tornaram-se capazes de executar os mais complexos arranjos. Como se já não fosse o bastante, ainda investiram muito em equipamento. Procuraram os melhores estúdios de gravação pra registrarem suas obras. Gravaram musicas que exibem toda a sofisticação que absorveram com os anos de aprendizado. E mesmo com um alto investimento em marketing, ao lançarem um álbum, não alcançaram nem 1% do sucesso esperado. Em contrapartida, sabemos da existência de outros artistas sem muita instrução musical e que ainda assim colheram excelentes frutos. Suas musicas são aparentemente simples, sem nenhuma sofisticação. Músicos que não possuem conhecimento de teoria musical e quando muito, sabem apenas três ou quatro acordes. E de repente, qualquer coisa que esse pessoal resolve lançar revoluciona a indústria musical.
Qual a explicação pra esse paradoxo?
Acredito que a resposta pode ser encontrada em algo que citei há pouco: alma.
Antes de explorar este conceito tão complexo, é importante esclarecer um ponto: não estou afirmando que um artista cujo estilo musical praticado faça parte do que se conhece como "música sofisticada" não seja capaz de criar música com alma. Artistas de vertentes totalmente elitizadas provaram que é possível compor obras tão cheias de vida que suas musicas tornaram-se atemporais. Virtuosos da música erudita como BACH, MOZART e BEETHOVEN até hoje são reverenciados pelo legado artístico que deixaram. E o que dizer dos representantes da bossa nova, como TOM JOBIM e JOÃO GILBERTO? Quando ouço qualquer música destes artistas, imediatamente minha mente é transportada para a praia do Leblon e aberturas de novelas do Manoel Carlos, devido ao sentimento contido nestas canções. E ao mesmo tempo, consigo ver (de forma abstrata) e sentir toda a riqueza de alma que estas obras possuem. Portanto, quando se trata de uma música que tenha alma, com certeza é possível que os mais variados estilos musicais contenham esse ingrediente tão necessário em qualquer tipo de arte, e que existe no íntimo de todo ser humano.
Voltemos ao conceito do que podemos entender como sendo a alma existente na musica. Existem pelo menos onze definições de alma no dicionário Aurélio. Todavia, vou tentar focar somente naquelas que melhor se encaixam nas similaridades essenciais entre música e ser humano. São elas: Princípio de vida; sede dos afetos, sentimentos e paixões; condição primacial; essência.
Quando pensamos em princípio de vida, podemos entender que uma música sem vida é como um robô – ou seja, algo que pode ter habilidades e características similares as de um ser humano, porém sem alma. Ainda que um robô possa ter habilidades extraordinárias – mecanicamente falando -, ele seria incapaz de transmitir afetos, sentimentos e paixões a uma pessoa qualquer. Note que usei o termo "transmitir" porque ainda que esta máquina seja programada para ter atitudes que demonstram sentimentos, tais atitudes seriam totalmente desprovidas de qualquer conteúdo vivo. Assim funciona uma música sem vida. Você a ouve várias vezes, se impressiona com a qualidade técnica nela contida, mas sente que falta alguma coisa – e você não consegue definir o que é essa "coisa" que falta. Às vezes, se trata de uma música composta por um artista de renome, gravada no famoso estúdio Abbey Road, com violinos raros produzidos no século XIX. Características que agregam uma série de pontos positivos na canção, mas ainda assim, ela simplesmente não expressa nada demais. Sua condição primacial é nula. Sua essência é vazia, mesmo com toda a grandiosidade do contexto em que foi gravada.
Já vi muitos músicos lamentando o fato de não alcançarem sucesso mesmo após terem investido pesado em seus álbuns, gravando nos melhores estúdios, com os melhores equipamentos, e até mesmo valendo-se de uma roupagem musical moderna. Em outras palavras, eu diria que esses músicos produziram os mais modernos robôs. Ainda nesta analogia, talvez se eles tivessem produzido seres humanos ao invés de máquinas, o resultado certamente seria muito mais impactante.
Possivelmente neste ponto você esteja se questionando: E como se cria uma música com alma? Responder esta questão exigirá um conhecimento que talvez o ser humano jamais consiga discernir em sua totalidade. Conhecimento este que transcende o limite do intelecto. Desta forma, e diante do que cabe à minha pequenez diante do universo infinito da musica, os próximos artigos que postarei aqui serão dedicados a uma explanação deste assunto.
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