Resenha - Fresh Cream - Cream
Por Denio Alves
Postado em 18 de setembro de 2002
Naquele cinzento outono de 65 em Londres (e por acaso já houve alguma época não cinzenta na capital inglesa?), John Mayall acabava de congratular aquele jovem talentoso guitarrista que, escorado em um dos seus enormes "cubos" Marshall, alisava carinhosamente o braço de sua Gibson, como se de uma manhosa British pussycat se tratasse. Em poucas horas estava finalizada mais uma gravação dos legendários Bluesbreakers, e a primeira em que aquele franzino garoto de Ripley, elevado à condição de "deus" por inúmeros jovens fãs ingleses de blues, se arriscava nos vocais – a música era uma versão de "Rambling On My Mind", e o guitar man em questão, então com apenas 20 anos de idade, era Eric Clapton, o popular "Slowhand", desde a época em que havia causado frisson tocando com os Yardbirds no Crawdaddy Club.
Naquela mesma semana, no entanto, surgiam os boatos de que Clapton estaria ensaiando com uma rapaziada diferente no meio musical, e logo ele tornou claro a Mayall, apesar do apreço que ambos sempre tiveram um pelo outro, que a parceria de ambos nos Bluesbreakers, um dos mais bem sucedidos combos de blues britânico até hoje lembrados, estava por chegar a uma conclusão. Logo, jornalistas das principais revistas e fanzines de blues, intelectuais, dândis, existencialistas e admiradores de longa data estariam se informando em Covent Garden para ver quem conseguia saber primeiro um boato, um rumor sequer, sobre com quem estaria Clapton tocando agora, que banda era essa, e onde estariam ensaiando naquele exato momento. Meses depois, ainda no finalzinho de 1965, sai uma nova coletânea de bandas de blues inglês chamada What’s Shakin’, um dos primeiros grandes sucessos da gravadora Elektra em sua filial britânica (a Elektra é americana, e celebrizou-se com bandas clássicas do rock ianque – Love, The Doors, The Stooges etc.). Tal disco trazia, para os mais afoitos, finalmente, uma pista do que estaria por vir do "deus": três faixas de um grupo chamado The Powerhouse, do qual constavam, além de Clapton, Jack Bruce (baixista, integrante da Graham Bond Organization), Ben Palmer (pianista), Paul Jones (sim, aquele do velho Manfred Mann), e o duo Steve Winwood e Pete York (teclados e batera de outro grupo de grande sucesso, o Spencer Davis Group). Era, sem dúvida, o nascimento de uma vertente do rock que ainda daria muito o que falar: o supergrupo, a banda composta por integrantes de outras bandas célebres, às vezes instantânea, formada para durar só uma noite, ou apenas alguns discos, mas capaz de arrebatar todos os fãs daquelas bandas e outros mais, contagiados pela novidade do som. Sim, foi o que aconteceu com o Powerhouse – duraram só aquele disco, naquelas três faixas (recriações de velhos clássicos do blues americano com sabor de chá das cinco), mas foi o que bastou para que Clapton e Bruce, não satisfeitos com apenas aquilo, usassem a proposta como ponto de partida para algo que nenhum de seus fãs londrinos imaginariam. Sem saberem, haviam acabado de germinar o Cream, uma das mais inventivas e brilhantes bandas da história do rock.
A grande surpresa, para a New Musical Express e outras vedetes da mídia inglesa, veio com uma inesperada participação no Festival de Windsor. Era julho de 1966, e Windsor era uma exposição musical variada aos moldes dos grandes concertos de jazz que já começavam a se celebrizar com outra forma de música também, o rock, e que desembocariam em Monterey, Isle of Wight, e aquele que eu nem preciso citar o nome: um período de dias repletos de shows com uma seleção eclética de vários artistas, venda esgotada de ingressos para jovens drop-outs e enlouquecidos de rock e erva, e muito happening no palco e na platéia. De repente, no último dia do festival, chega aquele trio inusitado, vestido em indumentárias militares (a grande piração do Cream naqueles primeiros tempos de sua fulminante carreira), e manda ver uns blues americanos clássicos, revisitados com poder total de improviso e energia, aquecendo a platéia. Os solos de Clapton estão mais cristalinos do que nunca – ladeado por uma cozinha excelente e autônoma como nunca se vira antes na música pop, ele tem liberdade para disparar fraseados de blues cada vez mais matadores, um após o outro. Os responsáveis por tal magia não ficam atrás: o já conhecido Jack Bruce, e na batera, o exímio Ginger Baker, outro egresso da Graham Bond Organization.
Naquela histórica apresentação de estréia, apesar de mostrarem que algo novo estava surgindo, com o ineditismo de um som que mesclava entrelaçamentos jazzísticos entre os intrumentos, marteladas tribais de percussão e uma firme imposição de guitarra/baixo, quase que num duelo consistente, o Cream ainda não tinha tido a chance de apresentar material próprio (pois nem o tinham), e haviam se detido ao velho esquema de "algumas canções de blues". A partir de então, cantados pelas gravadoras, – excitadas pelo alarde que a imprensa musical fizera sobre o show de Windsor - restava ao Cream a assinatura de um belo contrato e a transposição, para o ambiente dos estúdios, de sua recém-chegada porra-louquice musical. O selo Reaction foi o felizardo.
O primeiro single, "Wraping Paper", lançado quatro meses depois, no entanto, causou um susto. Não estava ali nada do impacto esperado em virtude da apresentação ao vivo do grupo – no lugar daquele blues mega amplificado e virtuoso, semi-jazzístico, estava uma simpática canção vaudeville, conduzida com leveza ao piano de Bruce e seus vocais calmos. Hoje, revista com os detalhes da era da música digital e sob um outro ângulo, é uma excelente canção, mas, naqueles tempos, o ouvinte que esperava solos acachapantes de Clapton tinha que se contentar com intermezzos escalonados de sua guitarra, só audíveis pela adição de um insistente efeito de eco que gerava uma estranha sensação nostálgica, enquanto Baker se comportava como se um velho músico de jazz fosse, timidamente marcando o ritmo. Aquele definitivamente não era o Cream do Festival de Windsor, e uma pálida sombra dele só poderia ser encontrada na tradicional "Cat’s Squirrel", faixa instrumental, no lado B do compacto. Ali, diante de um aflitivo loop de gaitas e guitarras, se sobressaía algo do Cream arrebatador de semanas antes. Mas nada da massa de som incrível imposta por pérolas como "Stepping Out" e "Hideaway", integrantes do repertório ao vivo do grupo. Como estréia em vinil, foi decepcionante. O trio ainda estava devendo uma apresentação fonográfica considerável.
Até hoje, não se sabe ao certo se pela fria recepção do compacto de estréia ou se pelas críticas de jornalistas da época que não apostavam nada no primeiro LP do grupo – ou, ainda, se simplesmente por um toque de curiosidade... mas a verdade é que o Cream se enfiou no Rayvic Studio (em Chalk Farm, Londres), e estudou com afinco técnicas de gravação, utilização de efeitos em estéreo, justaposição de sons, solos, se esmerando em exaustivas jams, e testando distanciamento de microfones, distorções, reverberação, etc. etc. e o diabo-a-quatro, e de lá saíram, nos últimos dias de novembro de 1966, com um registro sonoro de deixar bobo qualquer fã de Revolver, dos Beatles, ou de A Quick One, do The Who, os outros sucessos em LP daquele ano. Saía, afinal, Fresh Cream.
Na capa, a foto com a velha primeira imagem comercial da banda, vestidos de militares da Força Aérea Inglesa (um ano depois, seria trocada por aquela outra, mais famosa, de cabelos eriçados black power e roupas psicodélicas multi-coloridas). E na bolacha preta, uma coleção de petardos que, ainda hoje, nos maravilham e nos confundem por fundirem a mágica iridescente e colorida do som ácido da Swingin’ London com o nascente hard rock. Pela primeira vez, se ouvia um verdadeiro blues pesado. Estavam ali, nos esporros primais de "NSU", os acordes crus e agressivos do gênero; no andamento calcado em riffs de "Sweet Wine", e no solo viajante, ancorado por um massacre de baixo e bateria, a fórmula seguida, anos depois, por Black Sabbath e outros roqueiros; e, na reinterpretação para "I’m So Glad", de Skip James, o momento em que o rythim n’ blues deu luz ao rock pauleira. Para acabar de completar, Mr. Baker, que ensina a meio mundo, no disco inteiro, como se deve tocar uma bateria no rock, arrasa tudo o que pode de seu instrumento com a impagável "Toad".
Duas faixas de Fresh Cream , além de tudo, merecem menção honrosa: a primeira é o hit que os elevou à condição de new darlings do rock britânico, e os lançou para as paradas de sucesso européias em grande estilo. "I Feel Free" apresenta uma estrutura rítmica de soul e um refrão tão bem feito, com uma pegada e um corinho vocal tão contagiantes, que permanecerá, sempre, como um dos mais ilustrativos exemplos do bom rock inglês da década de sessenta – além de tudo, há aquele solo hipnótico de Clapton que conquista o ouvinte de cara e fez muita gente furar o disco de tanto repeti-lo. E a segunda é "Spoonful", um blues monumental de Willie Dixon que, se já era mortal na voz gutural do autor, com o peso do Cream (leia-se: Ginger Baker), os vocais, baixo e gaitas brilhantes de Jack Bruce, mais a viagem guitarreira de Clapton, se transforma num monstro blues de quase sete minutos!
E ali então, para ninguém reclamar, estava enfim o som ao vivo do Cream, o primeiro supergrupo a durar, o primeiro power trio, os primeiros a fazer um hard rock de qualidade, os primeiros a... bem, e o melhor de tudo, excelentemente gravado em estúdio.
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