O adeus de Buddy Guy com aula de blues no Best of Blues and Rock
Resenha - Buddy Guy (Best of Blues and Rock, São Paulo, 04/06/2023)
Por André Garcia
Postado em 07 de junho de 2023
Um dos maiores expoentes do eletrificado e contagiante blues de Chicago, Buddy Guy é uma das maiores lendas vivas do blues — se não estiver no mesmo patamar que B.B. King e Muddy Waters, passou perto. Mestre dos mestres, seu trabalho foi grande inspiração para os maiores de todos os tempos, nomes lendários do calibre de Eric Clapton, Jimi Hendrix, Jimmy Page e Keith Richards.
Aos 86 anos, veio ao Brasil em sua turnê de despedida para uma apresentação dupla no Best of Blues and Rock. Será que apesar da idade ele ainda faz jus a seu passado ou será que seu show se tornou um mero número saudosista? Confesso que tive essa dúvida. Ainda mais após sua participação na coletiva de imprensa ter sido cancelada para que ele pudesse preservar a voz.
Fotos: André Velozo
Seu primeiro show fechou a segunda noite, e começou com sua banda de apoio, a Nu Blu Band, tocando sozinha. Após ser apresentado pelo tecladista, Buddy entra vestindo um macacão, e caminhando em passos curtos empunhando sua guitarra. Como todo bluesman raiz, é um homem de poucas palavras. O que tem a dizer, ele o faz tocando e cantando. Bastou que ele começasse a cantar e tocar para as preocupações evaporarem, mostrando que diante do talento a idade é apenas um número.
Espirituoso, apresentou também seu timing cômico e arrancou risadas da plateia atrasando em segundos a próxima nota de seu solo. Com um sorriso sacana de um moleque travesso, ele arrancou sons arranhados da guitarra esfregando suas partes íntimas nas cordas.
Chega a ser engraçado o contraste entre a voz baixa e frágil com que fala e a voz passante com que canta — que segue poderosa como um instrumento de sopro. Sobre o palco, ele se mostrou bem-disposto e sorridente. Se eu chegar à idade dele, quero chegar fazendo o que amo e tão bem quanto ele.
Com a experiência de mais de meio século de estrada, Buddy Guy não gasta energia atoa, para ele menos é mais. Ele não toca muitas notas por segundo, mas as que toca são cheias de intenção e sentimento. Sempre que tocava uma sequência de notas, era uma sequência tão perfeita que parecia a única possível. Tudo era de uma sutileza palpável.
Comprovando o poder universal do blues, na plateia se via de crianças a avôs, da camisa do Iron Maiden ao terno, do universitário duro ao aposentado bem de vida. Tinha gente com o isqueiro aceso no ar, tinha gente sorrindo, gente chorando, gente de boca aberta… Sério, tinha um careca de óculos que todas às vezes que olhei para trás, o vi literalmente com o queixo caído. É o poder da música. Simples assim. Simples como o blues.
A iluminação, embora básica, serviu bem ao propósito minimalista da apresentação. No telão, uma imagem animada que remete aos bares e clubes de Chicago na era de ouro da guitarra elétrica.
Sorridente, Buddy parecia feliz de estar ali; parecia feliz de ter tido a oportunidade de perder as contas de quantas vezes rodou o mundo a fazer o que ama. Ele sorria o inconfundível sorriso que só tem quem ama o que faz. Embora seja o dono do show, ele não deseja monopolizar o holofote, e por vezes vai para o fundo do palco para dar aos colegas a oportunidade de serem o foco da atenção.
Um dos últimos remanescentes de uma espécie em extinção, deu uma verdadeira aula de blues. Blues que, sem suas mãos e sua voz, transcende a música, e se torna uma oração para os devotos da música. Em reconhecimento, a plateia gritou seu nome — algo que ali naquele festival nem Steve Vai, Tom Morello ou Nuno Bettencourt tiveram.
O que eu mais gostei no show foi como ele contou uma história sem dizer uma única palavra. Apenas cantando e tocando, ele contou a história do blues e a sua própria (duas histórias tão intimamente ligadas que se confundem).
Na coletiva de imprensa, eu o perguntei que década havia sido para ele o auge do blues, e a resposta foi os anos 60: "Quando os Rolling Stones mostraram ao mundo branco que blues era legal; e eles sempre deram créditos a caras como B.B. King e Muddy Waters." Aquele período esteve presente eu seu repertório com "Voodoo Child" (Jimi Hendrix) e "Strange Brew" (Cream). Certo momento, ele repousa a guitarra sobre o amplificador e a toca o riff de "Sunshine of Your Love" com uma baqueta de bateria. Será uma paródia de Jimmy Page com o arco de violino?
Nesse momento, músicas começaram a ser tocadas em trechos, mas Buddy garantiu que era por falta de tempo, não de energia: "Se fosse por mim, eu tocaria o dia todo, e a noite toda."
O final do show foi tocantemente simbólico, com seu filho na guitarra e sua filha no vocal se juntando à sua banda de apoio. Ele mesmo, vai pouco a pouco deixando que eles assumam até que larga a guitarra. A seguir, joga palhetas para a plateia, agradece e, com o sentimento de dever cumprido, sai do palco de fininho, enquanto o show continua sem ele.
Sem dizer uma única palavra sobre o assunto, Buddy Guy contou a sua história e a do blues, e ainda refletiu sobre o fim de sua carreira e seus últimos anos de vida. Quem viu, viu; quem não viu, agora só deve ver pela internet. Eu tenho pena de quem foi embora depois do show de Steve Vai e abriu mão de testemunhar o adeus de um verdadeiro gigante da guitarra.
Receba novidades do Whiplash.NetWhatsAppTelegramFacebookInstagramTwitterYouTubeGoogle NewsE-MailApps