A música do Rush que Neil Peart preferia não ter em seu currículo
Por Bruce William
Postado em 20 de outubro de 2025
Quem se aproximava de Rush com um mínimo de curiosidade já sabia: era preciso fazer a lição de casa para decifrar as letras. O debut até parecia um rock de manual; mas bastou Neil Peart assumir a caneta para o trio despejar, em pleno prog, algumas das letras mais cerebrais do rock. Ainda assim, nem tudo ali nasceu para ser levado a ferro e fogo.
Pegue "2112": a faixa-título é uma das epopeias definitivas do progressivo - começo, meio, fim e um mundo inteiro inventado no caminho. Agora vire o disco e lá está "A Passage to Bangkok", uma odisseia maconheira, souvenir de turnê, provando que a mesma banda que ergue templos sci-fi também sabe rir no backstage.


Na época, o clima era "se for o último álbum, que seja se divertindo". Só que o público mordeu a isca, Rush virou instituição prog, e veio o passe livre criativo: nada de reunião com gravadora, nada de compositor externo, apenas "façam o que quiserem". Maravilhoso - e perigosíssimo. Quando a trava cai, a imaginação acelera sem cinto.

Resultado? Entre pepitas como "Closer to the Heart", apareciam imagens dignas de banquete mitológico - "honey-dew" e "milk of Paradise", termos que o Peart pescou do poema Kubla Khan (Coleridge) e que funcionam como atalhos para falar de néctares divinos, um êxtase quase celestial. Se esse tipo de metáfora grandiosa passou incólume, "Hemispheres" mostrou o trio brincando no limite do próprio labirinto, levando o prog ao ponto em que a imaginação corre solta e o excesso vira método.
É um disco autocentrado? É. Mas também é daqueles raros casos em que o excesso funciona: a suíte do lado A é monstruosa, e "La Villa Strangiato" parece impossível até o Rush tocá-la. O problema, para o próprio Peart, surgia nas faixas curtas, especialmente "The Trees". A canção é um devaneio mais leve, quase fábula. E foi justamente aí que Neil pegou implicância. Nas palavras dele, conforme resgate da Far Out: "Liricamente, é uma rima pobre. Não me orgulho da habilidade de escrita nisso. O que me orgulha é ter pegado uma ideia pura e criado uma imagem. Nesse sentido, fui bem. Em termos de técnica, é zero. Escrevi 'The Trees' em cinco minutos". Tradução livre: a metáfora até funciona, mas ele não queria ser lembrado por esse cartão-postal.

Visto assim, há até algo impressionante: montar uma alegoria inteira em minutos e fazê-la grudar no repertório de shows. Que o "tema oligárquico" da letra seja discutível, tudo bem - Peart não era estátua; reviu crenças, redirecionou o norte e, anos depois, escreveu discos como "Vapor Trails" com outra bússola.
Musicalmente, "The Trees" ainda flagra o Rush tinindo: dinâmica, arranjos espertoides, aquela engenharia rítmica que só eles. Mas, se a ideia é entender a pena de Peart em potência máxima, melhor apontar a agulha para as peças grandes, os épicos onde o baterista-letrista vira arquiteto de mundos e não apenas narrador de parábolas.
No fim, Neil foi o raro baterista-poeta que conseguiu botar estofo filosófico no rock sem perder o pulso. Até os melhores, porém, têm seus momentos "floridos demais". "The Trees" ficou como peça querida do repertório, mas, se dependesse do autor, não seria essa a frase gravada na lápide.

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