Heavy Metal: cinco discos necessários dos anos setenta
Por Igor Matheus
Fonte: Blog Na Boca, Não
Postado em 17 de novembro de 2010
Eis o fino de uma safra relativamente ingênua - e talvez por isso mesmo peculiarmente genial. Mas não em relação à importância histórica. Nunca devemos tratar de importância histórica. Só devemos tratar do único atributo que interessa em um disco: sua capacidade de ser escutado como se fosse uma faixa só. E para sorte do Heavy Metal e dos sujeitos fantasiados de Kurgan (Highlander) com mais de 20 anos, ainda existe muita gente por aí que ainda sabe o que é isso.
Melhores e Maiores - Mais Listas
Paranoid - Black Sabbath (1970)
É possível escutar mais de um músico calejado lacrimejar de admiração pela genialidade contida de um Ximbinha. Só que não se vê por aí muita gente se lembrando de Tony Iommi como um dos três grandes gênios musicais do século XX. ‘Entendidos’ (?) de alguma coisa preferem dar esse título a Varése, Stockhausen, Schoenberg, a vira-latas da dodecafonice e a cupins do eruditismo doído que ninguém com o mínimo de filarmonia consegue, sequer, considerar audível. Mas quando o critério deixa de ser a quantidade de trilhas de vernissage futuristas e passa a ser, finalmente, Música, o caneco passa a gostar mais dos dedos pela metade do sujeito com o mais horrível bigode de taturana de Birmingham. Mas por que essa distribuição de santinhos mesmo? Porque Iommi inventou o Heavy Metal. E se foi com a estréia ‘Black Sabbath’ que o sujeito lançou o manual da estilística, foi com ‘Paranoid’ que provou-se que era possível fazer terríveis clássicos apenas com pedradas.
Ninguém aqui se esqueceu que o Black Sabbath, a quadrilha de Iommi, é formada por mais três bandidos. Mas é necessário hierarquizar algumas coisas. Enquanto ícone - e nessa o já ido Dio terá de me perdoar -, o Sabá Negro é nada mais que Ozzy Osbourne e sua inadmissível indumentária de franjas aos cotovelos. Mas enquanto desconstrutor do rock e manjar básico da dieta de qualquer projeto centrado em guitarras distorcidas, o Sabbath é, principalmente, o ‘diabolismo’ de Iommi – ainda que muito bem amparado pelas incrivelmente simples e surpreendentemente competentes linhas vocais do futuro morcegófago.
E ‘Paranoid’ é emblemático por duas razões e meia. A meia se refere ao fato de que ele é, definitivamente, o disco mais consistente do Black Sabbath. E isso aí vale meio porque todos os discos da era Ozzy são mais ou menos encantadores. Mas só esse aí tem cara de coletânea acidental. Só esse aí traz uma sequência de peças bem sucedidas que não se ouviria nos demais. Só esse aí traz um Sabbath solidamente escuro, sem progressivices controversas (para o metal) nem Rick Wakemans masturbatórios.
Segundo, por apresentar um esmaecimento mais dramático dos traços de blues que caracterizam quase todo o rock anterior ao metal pesado – que não chega a sentir nojo de sua filiação from New Orleans, mas que também não comparece nas festinhas de Natal. E isso apesar do baixista Geezer Butler, que não é mais do que um bluesman que aceitou o fardo de abaixar a afinação de seu brinquedo e sublinhar os riffs do amiguinho.
Terceiro, por soar como um tratado dessa estranha arte de transformar ruído em critério. ‘War Pigs’ e ‘Paranoid’, retas e com pouca base para os vocais, ensinam a importância da levada. ‘Iron Man’ e a inacreditável ‘Electric Funeral’ postulam que um riff não apenas pode ser praticamente tudo, como pode ser absolutamente tudo em uma faixa – nos dois casos em questão, sem sequer deixar ao vocalista nenhuma outra opção de construção vocal a não ser um oportunista uníssono. E ‘Hands of Doom’ e ‘Fairies Wear Boots’, mais complexas, exclamam que a estilística em construção é vedada a criancinhas: assim como se exige em qualquer estética elaborada, é necessário crescer como ouvinte para entender o Heavy Metal. Menos para entusiastas de Stockhausen e John Cage. Para esses, é mais recomendável que se comece por Ximbinha.
Machine Head - Deep Purple (1972)
Se existe alguma coisa que mela todo o meu projeto de dominar a zona de cá do sistema solar como um resenhista sobrehumano, superior e incorruptível – parente desses seres ‘ascéticos’ que se lembram de etiquetar cada uma de suas milhares de fitas obscuras ou LPs jamais digitalizados mas se esquecem da pilha de pratos imundos na pia – é citar ‘Paranoid’ e ‘Machine Head’ como grandes álbuns de Heavy Metal dos anos 70. Graças a isso, já posso largar mão de minhas pretensões totalitárias. Simplesmente porque não existe dobradinha mais pão com ovo do que essa. Se a miss Brasil ou o sujeito que fez as falas do médico de ‘Carandiru’ fossem perguntados sobre petardos setentistas do metal, as respostas seriam exatamente essas.
Mas aí é que está. A presença de ‘Paranoid’ e ‘Machine Head’ como arautos de uma estética só soa politicamente correta a iniciados. Não sei se a miss Brasil ou o sujeito que fez as falas do médico de ‘Carandiru’ o são. Mas quem se dá a esse luxo sabe o que Tony Iommi e Richie Blackmore foram, um dia, capazes de fazer. E também sabem que, pelo menos na década em questão, nem eles mesmos conseguiriam melhorar muito – a não ser o sempre escroto Blackmore, que tirou vitaminas e sais minerais do Purple para por no Rainbow.
Alguns textinhos de internet trazem Roger Glover, baixista do Deep Purple, apontando as sessões de gravação do ‘Machine Head’ como alguns dos melhores momentos do quinteto. O problema é saber que cacete Roger Glover entende por ‘melhores momentos’. Porque as sessões de ‘Exile Main Street’, o ‘Machine Head’ dos Rolling Stones, correspondiam a melhores momentos de inalação de cocaína equivalente aos da Colômbia em um ano, de práticas pansexuais equivalentes aos da noite holandesa em dois anos, de higiene pessoal nula e constantes inspeções policiais, sem falar em incontornáveis suspeitas de swing entre casais e até mesmo de sobriedade. E quando se verifica que o Deep Purple também gravou seus takes em um local pouco convencional – em um hotel suíço -, fugindo das taxas carnívoras do fisco britânico – assim como a turminha de Miguel Jagger Gimenez – e com o equipamento móvel dos próprios Stones, não é nada imprudente realizar uma interpretação menos ortodoxa da nostalgia de Glover. Mas não interessa quantos quilos de pó e quantas coincidências se identifiquem entre as duas obras-primas. Ninguém ainda poderá afirmar, com propriedade suficiente, que diabos é necessário para se fazer um clássico.
O que se sabe é que iniciar um disco com uma pedrada como ‘Highway Star’ ajuda. Está aí uma faixa que, de tão eficiente, poderia ser o molde de outras 15 canções semelhantes na mesma obra. Mas o Deep Purple achou que tinha mais o que fazer. Como potencializar cadências de blues, revestindo-as com a virilidade de riffs – de teclado inclusive – e ensinar a gurizada acerca da arte de entoar desgraçados e rasgadíssimos vocais agudos, o tipo de coisa que só não fez o vocalista Ian Gillan ser canonizado por sua santificada participação em um disco com aquela capa (‘Born Again’). Além dessas miudezas, ‘Machine Head’ se dá à regalia de ter algo como ‘Smoke On The Water’ entre suas faixas mais fracas. A elegância despojada de ‘Lazy’ e ‘Maybe I’m a Leo’ e as aulas de levada de ‘Never Before’ e ‘Pictures of Home’ fazem com que o riff mais célebre da história do Heavy Metal seja, no fim, o riff mais célebre da primeira metade do lado B dessa joça.
Overkill – Motörhead (1979) & Ace of Spades – Motörhead (1980)
Já que o manual dos estereótipos define que pagodeiro com ‘p’ maiúsculo precisa saber botar a mão na cabeça que já vai começar; que sertanejo de nascença precisa provar que não é vagabundo nem delinquente, só um cara carente; que regueiro precisa vender artesanato; que MPBeiro (?) precisa aceitar que Chico, Caetano e Gil não podem ser canonizados, também deve estar lá que metaleiro TRUE, daqueles que honram seus adereços para-nórdicos catados na feira da sulanca, precisa saber o que é Motörhead. Não é necessário sequer aprová-lo - ainda que isso já implique em 3 pontos na carteira de habilitação para a fila de stage diving.
O negócio é que esse grupinho, típica distração para motoqueiros, skinheads, veteranos de guerra e arruaceiros de bares de sinuca repletos de assassinos em série, corresponde à perfeita mediatriz entre o joie de vivre do rock n’ roll clássico e o mecanicismo violento e desencantado do Metal – isso fora ter um frontman que, além de parecer recém-saído da cadeia por porte de armas anti-aéreas, é quase que uma instituição viva. Dito isso, é justo que se acrescente que o Motörhead é mais que uma banda; é um rito de passagem. E se saber o que é ser metaleiro é conhecer o Motörhead, saber o que é o Motörhead é conhecer o ‘Overkill’ e o ‘Ace of Spades’.
São dois tijolos que correspondem ao fastígio de uma das mais regulares e consistentes discografias do Metal. E essa regularidade e essa consistência só são possíveis graças ao quase que completo domínio que a banda inglesa tem de sua estilística. Razoavelmente distante do traço sombrio e depressivo de um Black Sabbath, o Motörhead é harmonicamente mais econômico e previsível, sempre situado dentro das fronteiras do blues. Mas a velocidade, o vocal sem qualquer direcionamento melódico e a ração de hipopótamo que os sujeitos provavelmente empurraram para os pobres captadores de seus instrumentos também distancia o grupinho da pecha fácil de ‘banda de blues mais pesada do mundo’.
Blues? Que chamem Muddy Waters para solar em cima dos pedais duplos de ‘Overkill’ ou em cima de ‘Love me Like a Reptile’. Que chamem Eric Clapton para solar em cima de ‘No Class’ ou ‘Capricorn’. Que chamem Buddy Guy para mostrar o que sabe diante de ‘Damage Case’. Por que isso aí não vai dar certo? Porque Motörhead não é blues porra nenhuma. E cada uma dessas peças aí, que integram os dois clássicos citados, comprovam essa constatação com a sutil contundência de uma espingarda. É em ‘Overkill’ e ‘Ace of Spades’ que estão situadas as faixas mais classudas, mais melífluas e até mesmo mais formulaicas do que se seguiria. Sujeitos como James Hetfield, que tomavam Motorhead com leite no café-da-manhã, agradecem até hoje.
Long Live Rock’n Roll – Rainbow (1978)
A vida é tão linda que me fez nascer no Brasil e jamais ter que conhecer o guitarrista Ritchie Blackmore pessoalmente. Mas conheço sua trajetória dedicada ao exercício da simplicidade, da humildade e da acessibilidade. Entre eles está a solicitação, através de terceiros, é claro, de que em determinado baba entre músicos e jornalistas ninguém ousasse tomar a bola dele. Que é isso, pessoal. É o jeitinho britânico de mostrar aos outros que realeza é realeza; gentalha é gentalha; e protozoários cancerígenos são protozoários cancerígenos. E como sei que a autoestima de Blackmore vai muito bem, desisti de mandar o link desse post para que ele possa ver o quão realeza ele FORA nos anos 70. Lá em cima está o ‘Machine Head’, com sua hoje detestada e judicialmente judiada ex-banda Deep Purple. Aqui, um registro um tanto mais obscuro com seu melhor projeto solo – e um dos melhores de todos os tempos. E que me desculpem os entusiastas dos bons modos, mas Blackmore acaba de se consagrar como o Paulo Maluf do metal setentista: é um filho da puta, mas sabe o que faz.
‘Long Live Rock’n Roll’ prova que quando Ritchie Blackmore elevava sua medonha boçalidade às últimas consequências, era o público que ganhava. Basta saber que tudo o que o sujeito não quis fazer no Deep Purple agonizante do fim dos anos 70, guardou para um trabalho em que pudesse ser o senhor absoluto de composições, arranjos, guitarras, baixos, pitacos, menu do café e do almoço e da posição mais ao norte a cada vez que o grupo fosse retratado. Se o Deep Purple era sua esposa fedorenta, o Rainbow era sua amante curvilínea, para quem estava reservada toda sua energia e para onde era descontada toda sua frustração ‘caseira’. E é em ‘Long Live Rock’n Roll’ que Blackmore e sua trupe alcançam o nível que ainda não haviam atingido nos discos anteriores do projeto.
A faixa de abertura, homônima ao disco, é um hard rock grudentíssimo e pulsante, norte de praticamente tudo o que se fez comercialmente dentro desse nicho de rock. ‘Lady of the Lake’, com seu riff saltitante entre pausas e belo refrão, é outro convite definitivo obra adentro. Também não é pra qualquer álbum carregar coisas como ‘Gates of Babylon’, até hoje tocada por Blackmore em suas aparições senis por aí, e ‘Kill the King’, clássico que chegou a resvalar em algumas peças do próprio Deep Purple em termos de popularidade. Quando a obra caminha para sua finalização já soando absolutamente clássica, eis que surge ‘Rainbow Eyes’, balada destoante de todo o resto em relação à forma, mas profunda no conteúdo, desgraçadamente dolente desde os primeiros segundos e abrilhantada por uma das mais surpreendentes performances vocais de Ronnie James Dio. E esse foi o tiro de misericórdia: com seu ego capaz de inflar de volta o Hindenburg, o guitarrista enfezadinho levou à praça o clássico que nem o próprio Deep Purple conseguiu fazer na segunda metade dos anos 70. Vida longa pra esse filho da puta desse Blackmore.
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