Os Remanescentes: Bar Doce Lar, punk rock feito amor de boteco
Resenha - Bar Doce Lar - Remanescentes
Por Marco Aurélio de Souza
Postado em 29 de agosto de 2017
Lá pelos onze ou doze anos, meu desejo por liberdade era imperativo: um ferrão que despontava na alma sempre que minha reclusão se materializava num quarto escuro com seus inseparáveis decibéis, os discos de rock que se revezavam no aparelho de som e amenizavam a angústia da idade das espinhas. Era o tempo em que o mundo inteiro parecia prestes a se converter ao rock n’ roll. Só parecia. Logo, a desilusão. Aqueles foram os últimos suspiros da guitarra elétrica no mundo das FM’s, mais tarde dominadas – de modo totalitário, aliás – por outras modas e os mesmos jabás. Então chegou esse meu amigo e contou que, final de semana, estivera no ensaio de uma banda punk da cidade. Aquela turma do Crespo, saca? Eu já sacava. Eram OS REMANESCENTES. E eu queria ser igual a esses caras.
Da lembrança juvenil ao disco que agora seguro nas mãos, lá se vão uns quinze anos. Trata-se do último registro dos REMANESCENTES, o álbum Bar Doce Lar. Se o primeiro disco da banda – o antológico Nada mais que punk rock – enfatizava desde o título o purismo sonoro do trio, de lá pra cá, seu universo sonoro sofreu alguma inflação. Bom para nós, os ouvintes. Que a maturidade da mais recente roda punk remanescente é um deleite pra todo roqueiro que não sofre de inanição. Daí que os integrantes da banda definam hoje o seu som como um punk rock n’ roll. E alardeiem seus vínculos com a cultura gaúcha e caipira – afinal, como se imprimem as marcas autorais sem que se assumam as identidades culturais, sempre a meio termo entre eletivas e condicionadas? Em termos de som, OS REMANESCENTES cresceram. E muito. Só não largaram da cerveja. E nem dos drinks de costume, ainda bem.
Quem tiver ouvidos, que ouça. Dentre os elementos cultivados pelo punk remanescente, o clima efusivo de festa e festim é o que mais se encorpou ao longo dos anos. Bar Doce Lar se inicia assim: com música homônima, num astral de bebedeira em cabaré que, esteticamente, tem seu ápice na explosão dos metais que coroam a canção. Rapidamente, porém, a festa cede aos brios feridos do bebum e o tempo se fecha. Drinks de Costume é a consciência pesada de quem se deixou (e sempre se deixa) cair nas artimanhas duma chave de cadeia. E o nocaute vem de um soco só: em seus quase dois minutos, o desnorteamento comanda e a voz da canção vocifera acusações – ela me roubou!
Nada, a terceira faixa, desacelera. Mas não perde em qualidade. Sem ser balada, traz um clima pop que remete aos melhores momentos da fusão sessentista com um punk à lá Ramones. Refrão forte, repetição, simplicidade, energia. O punk rock mais raiz é quase sempre um ieieiê. 100 Amores, aliás, essa sim uma legítima balada rocker (e das boas!), é pura jovem guarda. Amor romântico e coração partido. Paixão juvenil e, por isso mesmo, deliciosa, cativante. "Seu coração blindado vai parar/E vai se sentir tão bem". E vem cá, chega mais: cê se lembra daquele tempo em que o rock tocava na rádio? Pois é. 100 Amores, essa ode aos prantos do coração, nasceu pra ser hit. Os tempos são outros, eu sei. Problema dos tempos. Que aqui como em todo o disco, não desfilam apenas um punhado de boas canções – a produção musical é, para dizer o mínimo, de uma qualidade surpreendente.
E por falar em FM, a curva pop no som da banda rendeu ótimos frutos. Etilismo Agudo ecoa um certo punk radiofônico dos anos noventa, lembrando os melhores momentos de Green Day e Offspring, com uma eficiência impressionante. Um dos pontos altos do disco, a música eleva o patamar da banda a outro nível, trazendo referências marcantes ao som da banda sem, contudo, sacrificar por um só momento a identidade construída ao longo da década e meia de trajetória. Ao lado de 100 Amores e de Não Existe Mais, perfaz o pico criativo do álbum. Esta última, a propósito, mostra muito da versatilidade conquistada pelo grupo, com dosagem fortíssima de um rock n’ roll mais clássico, mas também de sons mais experimentais – o que resgata à memória o caldeirão criativo do The Clash, ícone do estilo, que sempre primou pelo diálogo com a boa música, independente das igrejinhas estéticas e/ou comportamentais.
Seu All Star é outra balada remanescente típica. Usando e abusando das metáforas etílicas, a canção aprofunda o universo temático da banda: encontros e desencontros amorosos, bebedeiras de festa e fossa, olhares cruzados em mesa de bar. As metáforas botequeiras, aliás, de voltagem altamente popular (num sentido positivo, antropológico até), rendem bons momentos em Amor de Boteco. Aqui, o amor conflituoso do casal em foco se traduz pela docilidade e o azedume que caracterizam o balcão dos bares mais tradicionais. Ouso dizer, inclusive, que a música só alcança sua máxima potência se cantada e chorada entre doces de amendoim e rodadas de rollmops, num barecão qualquer da Vila Nova. Sim, isso também é um convite.
Disritmia e Baby fazem nova dobradinha de horizonte largo. A primeira, com excelente introdução marcada em contrabaixo, traz uma pegada ska ao som remanescente. Experimento já utilizado noutras ocasiões, aqui o ritmo compassado se alterna com um excelente refrão rocker, apresentando, no conjunto, velocidade e cadência, peso e melodia, tudo na exata medida. Baby, por sua vez, é um rock tradicional, velho conhecido do público da banda, que mostra, entre outras, a dívida confessa que OS REMANESCENTES possuem em relação ao gênio de Raul Seixas. O teor singelo de seus versos – "baby/sempre que eu passo/de bicicleta na sua rua" – corrobora a leveza dos arranjos, com destaque para os teclados de sabor sessentista/setentista.
Se o faixa a faixa de BAR DOCE LAR mostrou o quanto o trio riomafrense está, com o perdão do trocadilho, muito mais que punk rock, Escárnio é o desfecho perfeito para esse caminho de criatividade autoral que a banda inventa para si mesma. Se as baladas remanescentes fazem companhia ao punk do grupo desde seu primeiro álbum, desta vez, deparamo-nos com algo de completamente inédito: o som intimista do violão de Diogo Cubas é ambientado pelo veludo dos violinos que se completam com as delícias de um melancólico acordeom, forjando a deixa para, quem sabe, voos ainda mais altos num próximo disco. Por quais searas o punk rock n’ roll remanescente se enveredará nos próximos anos, talvez nem eles saibam. Importa apenas que a expectativa ficou lá em cima, onde deveria estar sempre.
Fechado o disco, enfim, voltemos um instante ao meu baú de memórias. Que esse meu amigo veio contar umas histórias daqueles ensaios. E senti uma ponta de inveja do trânsito livre que ele tinha nessa garagem meio mágica, de onde exalavam acordes estridentes e um cheiro forte de cerveja. Como não se inspirar na rebeldia do trio, uns caras que andavam cheios de pompa pelos corredores do colégio, com suas calças rasgadas e cabelos compridos? Livres o suficiente para tocarem bêbados na garagem de casa e, depois, partirem do ensaio para umas presepadas que, numa cidade pequena como a nossa, viravam causos exemplares na boca da piazada. Nesse tempo, eu já arranhava uma ou outra coisa no violão. Minha trajetória como músico, no entanto, durou pouco. De fato, sequer chegou a existir a trajetória. O que existiu – e como existiu – foi o sonho. Daí que a admiração continue a mesma. Vai pelos que, contra todas as evidências do tempo, continuam resistindo: alimentando as chamas que, um dia, também me puseram a arder. E o ardido não passa. Mas quem se mantém nesse fogo cruzado, fazendo seu rock e vivendo o seu sonho à revelia do mundo, só pode ser mesmo um remanescente. E eles são três. E são um patrimônio. E são uma afronta. São OS REMANESCENTES - um patrimônio riomafrense que evoca os sonhos mais verdadeiros, um monumento aos nossos delírios mais febris.
TRACK-LIST:
01. BAR DOCE LAR
02. DRINKS DE COSTUME
03. NADA
04. 100 AMORES
05. ETILISMO AGUDO
06. NÃO EXISTE MAIS
07. SEU ALL STAR
08. AMOR D EBOTECO
09. DISRITMIA
10. BABY
11. ESCÁRNIO
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