Slaves of Time - Um estoque de ideias insaturáveis.
Resenha - Miserable Souls - Slaves of Time
Por Marcelo R.
Postado em 07 de dezembro de 2025
Definir-se é limitar-se. Enxuta na extensão, profunda em significado, essa sábia reflexão vitaliza-se, com especial tônica, no universo artístico-musical.
Justamente por isso, questiono-me, com certa frequência, da real necessidade de etiquetagem de conjuntos, a partir de rótulos e estilos predefinidos. A categorização, com base em elementos comuns, talvez até auxilie na imediata identificação de grupos a partir das afinidades musicais buscadas. Essa tarefa é especialmente importante em meio ao amplo mosaico de opções, hoje tão prontamente à disposição.
De todo modo, repito: definir-se é limitar-se. Classificar serve como norte, mas jamais substitui a audição propriamente dita, essa íntima experiência de contemplação que pertence exclusivamente ao ouvinte. A generalização por etiquetas não observa as singularidades. Desconhece o tempero dos detalhes, que, ao final, é o que, de fato, dá sabor e textura ao resultado de um trabalho intelectual, tornando-o singular e distinto.
Para além disso, há, ainda, aqueles conjuntos que se rebelam contra a ideia de homogeneidade ou de compartimentação. Agem, assim, com um arrojo inclassificável, que rompe expectativas, convertendo a experiência de audição numa montanha-russa de profusas e imprevisíveis alternâncias. Num momento em que a estratificação é, tão frequentemente, lugar-comum, a inventividade e a experimentação devem ser valorizadas. A constante revisitação ao saturado é, por vezes, tediosa.
Essa introdução, nesse ponto já não tão breve, talvez caracterize, suficientemente, a proposta musical do fertilíssimo projeto brasileiro Slaves of Time. Esgota, quiçá, a necessidade de rabiscar, em acréscimo, qualquer linha adicional. O mais pertence ao ouvinte.
Apenas, porém, para não me tornar refém da sensação de insuficiência, incursionarei em alguns aspectos mais específicos de Miserable Souls, seu excelente trabalho de estreia.
Slaves of Time é um projeto formado por Klaus Monteiro (vocal, violão, baixo e guitarra) e Tony Cayres (vocal, teclados, piano e programação de bateria). Em seu álbum inaugural, Miserable Souls, lançado em 2025, os músicos esticaram ao máximo a corda da experimentação musical. Percorreram todo um arco diametral, explorando, ainda, diversos recursos nos intermédios desse trajeto.

A dupla executa multitarefas. Performa diversos instrumentos (vide abaixo). Ainda, ambos assumem o comando dos vocais, em faixas alternadas (ao final deste texto, deixarei uma relação de cada canção, com menção ao respectivo vocalista protagonista).
Klaus Monteiro titula um timbre limpo, mas não tão agudo. Capitaneia, assim, linhas vocais com contornos essencialmente mais obscuros e introspectivos, conferindo, no aspecto geral de suas faixas, uma aura mais imersiva, soturna e, por vezes, melancólica.
Tony Cayres lhe é contraponto, na positiva acepção do termo. Detentor de voz igualmente limpa, mas direcionada a uma elevação mais aguda, as canções por ele capitaneadas seguem, assim, verves e matizes normalmente mais vivazes e vibrantes.
Com esse salutar contraste, a audição de Miserable Souls figura-se em um caleidoscópio multicolorido, ora irradiando brilhos lustrosos, ora imanando tintas frio-obscuras.
A faixa-título, Miserable Souls, que abre o material, capturou-me na primeira audição. E logo às primeiras notas. Com um tema lírico que aborda as consequências da pandemia sobre a sociedade, a canção possui um clima meditativo-melancólico moldado a intensa carga sentimental.
Fugindo ao padrão, relativamente comum, de iniciação da audição com uma canção vivaz e grudenta, os artistas inauguraram Miserable Souls de maneira sombria e introspectiva, opção que, por si só, já demonstra certa dose de arrojo experimental.
A atmosfera dessa composição remeteu-me, em alguma proporção, ao estilo dos suecos do Tiamat, em sua sombrio-melancólica fase gótica menos extremada (especialmente nos álbuns mais contemporâneos com vocais limpos).
Em sequência, porém, o repentino "choque térmico": Stuck in my Life. A faixa, uma reflexão sobre a subserviência humana a rotinas e obrigações, inicia-se em frenesi, com uma explosão sonora ritmada numa ambiência que mescla heavy metal tradicional e direto com algumas influências, ainda que sutis, de punk.
Essas alternâncias perdurarão, por vezes, ao longo da audição. Aos desavisados, a ruptura pode impressionar pela imprevisibilidade. Confortado o ouvido, porém, à proposta musical de Slaves of Time (uma vez cessado o choque inicial), o estranhamento é rapidamente dissipado.
Como notará, assim, o ouvinte, o projeto musical de Klaus e Tony é completamente avesso e rebelde a estratos rígidos e predefinidos de estilos compartimentados. O céu, ou além, lhes é o limite.
Para não tornar insossa e desinteressante esta resenha, não avançarei em análise individual das faixas. Essa é, inclusive, uma forma de delegar ao leitor aquela camada de curiosidade e surpresa que apenas a audição proporciona (o que, em certa medida, poderia ser prejudicado caso esmiuçados e esgotados todos os detalhes, canção a canção).
De todo modo, mesmo que por ilustrativa pincelagem, algumas menções e destaques pontuais ainda comportam espaço.
Abyss of the Ego possui um andamento rítmico cadenciado, numa espécie de movimento "em marcha". Com um solo de guitarra criativo e melodioso, a canção conserva, em parte, a verve mais tradicional do heavy metal, panorama que borda, predominantemente, a tela do fértil quadro musical de Miserable Souls. A inserção de arranjos de teclado/piano, porém, incluíram uma sutil camada hard rock à composição, componente que lhe incrementou o aspecto multifacetado.
Entre os destaques, cita-se, ainda, The Fury. Abordando, em sua temática lírica, as contradições humanas – entre o que se é e o que se expõe externamente –, a faixa inicia-se de maneira amainada e lenta, rompendo-se, porém, num ritmo veloz e frenético. Essa espiral de movimentos, construída numa espécie de crescendo, lembrou-me o estilo de Murders in the Rue Morgue (Iron Maiden).
After the End e The Love I Gave To You também merecem registro. Representam não apenas momentos de desaceleração de Miserable Souls, mas o apogeu do seu emocional sentimentalismo. Ambas contando com a participação, em dueto, da vocalista Letícia Alcântara – titular de um afinadíssimo timbre doce, cristalino e angelical –, After the End e The Love I Gave To You possuem contornos de música pop (e, talvez, algo também de new age), ao estilo de teclado e vozes.
Dessa combinação emana-se um atmosférico clima gélido-romântico emoldurado por alta carga de dramaticidade. Esses sentimentos, no domínio da arte, alcançam contornos de elevada apreciação e deslumbramento, nada, porém, desoladores ao ouvinte, apesar do seu clima sorumbático.
Cast Away também merece especial destaque, sendo, talvez, o ponto mais alto desse trabalho. Abordando, em seu conteúdo lírico, temas fantásticos, essa é a faixa mais longa e complexa de Miserable Souls.
Com diversas alternâncias rítmicas, protagonismo de múltiplos instrumentos (especialmente das guitarras e dos teclados), caídas de tempo e um longo trecho instrumental (que permitiu o crescimento, a maturação e a sadia evolução da faixa), Cast Away impressiona, alcançando o clímax da audição. Ela é a faixa mais completa e técnica de Miserable Souls, resgatando, pela sua intrincada estrutura e pelo seu mix criativo, inegáveis elementos de música progressiva.
Por fim, o álbum encerra-se com o mesmo tom lacrimoso com que se iniciou, mas, aqui, numa ambiência predominantemente belo-romântica.
Last Breath, derradeiro suspiro de Miserable Souls, é uma faixa instrumental regida sob a aura de um emocionante arranjo de guitarra. Potente em sentimentalismo, mas equilibradamente comedida em seus recursos e instrumentações, Last Breath despede-se do ouvinte com refinada elegância e sofisticação, deixando um quê de aconchego, acolhedor e agradável.
Last Breath lembrou-me, em seu componente emocional, de duas outras canções, que cito para ilustrar e para referenciar: Mourn (Sentenced) e Brothers (Malmsteen). Caso não as conheça o leitor, deixo o enfático convite à respectiva audição-contemplação.
Cerradas, assim, as cortinas, finda-se a peregrinação sonora, prostrado o ouvinte após essa espiralada viagem.
Classificar o estilo de Slaves of Time é tarefa árdua. Meta impossível, talvez. Abstenho-me, portanto, de buscar enquadramento.
A música do projeto é marcada, na sua identidade, exatamente pela variabilidade. Pela experimentação e, sobretudo, pelo arrojo. Compartimentar o projeto em gêneros é limitar, pela insuficiência das definições léxicas, a fertilidade que apenas o processo de audição alcança.
Em Miserable Souls, Slaves of Time parece ter experimentado todas as suas habilidades e dons, abrindo um arco diametral de influências. Os músicos transitaram por múltiplos estilos, citados ao longo do texto. Desenvolveram composições que, distintas estilisticamente entre si, conservaram, cada qual, coesão e direcionamento. E tudo isso num caldeirão que agregou os ingredientes da técnica, do sentimento, da criatividade e das experimentações.
Slaves of Time ainda está insaturado de ideias. É o que se percebe a partir do que ricamente performaram os músicos já no seu trabalho de estreia.
O projeto ainda possui, portanto, ao que parece, extensa reserva de combustível. Se assim o for, que esse estoque tome, muito em breve, a forma e a feição de novas músicas.
Boa audição.
Faixas:
1. Miserable Souls (Klaus Monteiro – Vocais)
2. Stuck in my Life (Tony Cayres – Vocais)
3. Abyss of the Ego (Klaus Monteiro – Vocais)
4. No Conditions (Tony Cayres – Vocais)
5. The World Has No Future (Tony Cayres – Vocais)
6. The Fury (Klaus Monteiro – Vocais)
7. After the End (Klaus Monteiro e Letícia Alcântara – Vocais)
8. Dark Streets (Klaus Monteiro – Vocais)
9. The Love I Gave To You (Tony Cayres e Letícia Alcântara – Vocais)
10. Cast Away (Klaus Monteiro – Vocais)
11. Last Breath (Instrumental)
Formação:
Klaus Monteiro – vocal, violão, baixo e guitarra.
Tony Cayres – vocal, teclados, piano e programação de bateria.
Convidados:
Wagner Nascimento – bateria (faixas 2, 8 e 10).
Letícia Alcântara – vocal (faixas 7 e 9).
Resenha originalmente publicada no Rock Show.
Receba novidades do Whiplash.NetWhatsAppTelegramFacebookInstagramTwitterYouTubeGoogle NewsE-MailApps



O primeiro supergrupo de rock da história, segundo jornalista Sérgio Martins
O álbum que define o heavy metal, segundo Andreas Kisser
O "Big 4" do rock e do heavy metal em 2025, segundo a Loudwire
A música que Lars Ulrich disse ter "o riff mais clássico de todos os tempos"
O lendário guitarrista que é o "Beethoven do rock", segundo Paul Stanley do Kiss
A canção dos Rolling Stones que, para George Harrison, era impossível superar
Iron Maiden vem ao Brasil em outubro de 2026, diz jornalista
Dio elege a melhor música de sua banda preferida; "tive que sair da estrada"
Guns N' Roses teve o maior público do ano em shows no Allianz Parque
Como foi lidar com viúvas de Ritchie Blackmore no Deep Purple, segundo Steve Morse
O músico que fez o lendário Carlos Santana se sentir musicalmente analfabeto
Os shows que podem transformar 2026 em um dos maiores anos da história do rock no Brasil
O clássico do Anthrax que influenciou "Schizophrenia", do Sepultura
Bloodbath anuncia primeira vinda ao Brasil em 2026
Os onze maiores álbums conceituais de prog rock da história, conforme a Loudwire


"Fuck The System", último disco de inéditas do Exploited relançado no Brasil
Giant - A reafirmação grandiosa de um nome histórico do melodic rock
"Live And Electric", do veterano Diamond Head, é um discaço ao vivo
Slaves of Time - Um estoque de ideias insaturáveis.
Com seu segundo disco, The Damnnation vira nome referência do metal feminino nacional
"Rebirth", o maior sucesso da carreira do Angra, que será homenageado em show de reunião
Metallica: "72 Seasons" é tão empolgante quanto uma partida de beach tennis
Pink Floyd: The Wall, análise e curiosidades sobre o filme


