Whitesnake: Álbum gerado do embrião de uma serpente lasciva
Resenha - Lovehunter - Whitesnake
Por Ronaldo Celoto
Postado em 21 de dezembro de 2013
Nem todo "blue" é azul. Se conjugada no plural, a palavra então ganha muitos vertentes mágicos, puros, e, sentimentos ébrios transformados em notas musicais. PAUL OLIVER costumava dizer que "o blues é um estado de espírito e a música que dá voz a ele. O blues é o lamento dos oprimidos, o grito de independência, a paixão dos lascivos, a raiva dos frustrados e a gargalhada do fatalista. É a agonia da indecisão,o desespero dos desempregados, a angústia dos destituídos e o humor seco do cínico. O blues é a emoção pessoal do indivíduo que encontra na música um veículo para se expressar. É a canção casual do guitarrista na varanda do quintal,a música do pianista no bar. É o último número de uma estrela dos discos. O blues é todas estas coisas e todas estas pessoas".
Nada mais justo então, do que trafegar por estradas onde ROBERT JOHNSON perdeu-se em encruzilhadas, onde WILLE DIXON disse pura e simplesmente a uma mulher: "You Need Love". Onde, anos mais tarde, o LED ZEPPELIN não pediu licença e plagiou sua canção sem pudor algum, trocando o título e as frases para "Whole Lotta Love". Onde B. B. KING apaixonou-se perdidamente por sua LUCILLE, que era uma guitarra, e, não uma mulher. Onde DAVID COVERDALE ousou dizer, ferozmente aos quatro cantos do mundo: "I'm walking in the shadow of the blues".
E assim o belo disco "Lovehunter" foi gerado do embrião de uma serpente lasciva, a mesma que penetra a alma de uma mulher contorcida e apaixonada pela voz do ídolo, a mesma que transforma o homem de tentado a tentador, de oferenda a ofertor, de tímido britânico a caminhar pelas ruas, a um dos maiores vocalistas da história da música. E o início é em ritmo de volta para casa. "Long Way From Home" é uma linda e direta canção, um belo hard rock com início, meio e fim a declamar a saudade da casa, a difícil arte de, todos os dias, esforçar-se de todas as maneiras para chegar até sua amada. O vocalista assume a culpa, e, dispara: "Eu faria qualquer coisa que eu pudesse para estar perto de você...(...) Eu te beberei até secar". E, depois do início eroticamente conduzido pela saudade física, a alma também fala, quando diz: "I see your face in the night/I hear you calling my name". E a noites faz as pazes em forma de desejo, e, a saudade unifica-se ao alimento, afinal, ainda existe um longo, longo caminho para casa.
O segundo ato do disco é simplesmente matador. A música que, para mim, define em forma de confissão, a paixão de um homem por um movimento que é mais do musical, é espiritual: "Walking In The Shadow Of The Blues" tem o começo perfeito, dançante como que a ensinar uma serpente a abocanhar sua vítima, e, engendra em guitarras, baterias pulsantes de DAVE DOWLE, órgãos energéticos de JOHN LORD, e, a apoteose primeira do então ainda jovem DAVID a dizer: "I love the blues/They tell my story/If you don´t feel it you can never understand".
É, se me permitem os leitores, a música que define o WHITESNAKE em toda a sua excelência. Hinos posteriores, como "Crying in the Rain", "Here I Go Again", "Love Ain't No Stranger" tem uma emoção e uma requinte saborosa e acessível, mas, algo nesta primeira canção do disco que agora resenho, tem feeling, atmosfera e tensão transformada em sublimação. É o COVERDALE puro, confessando: "´Cos I love the life I live/I´m gonna live the life I choose". É a ressonância de todos os mestres negros do passado boêmio de todas as guitarras e violões que enfeitiçaram o mundo com tantos monumentais blues, sendo homenageada de uma maneira que mais parece uma psicografia.
"Help Me Thro' The Day", composta inicialmente por LEON RUSSELL, continua as honras da pegada blues presente no disco, mas de uma forma mais melancólica, densa, com a sensação de estarmos a ouvi-la e a beber copos e copos do melhor whisky do mundo, um GLEMORANGIE, por exemplo, envelhecido 25 anos e 5 vezes destilado. Gosto muito da tonalidade suave que COVERDALE e toda a banda imprimem à canção, propositalmente, fazendo com que o "blue" que não é azul, transforme-se em nuvens de fumaça. A guitarra de MICKY MOODY e BERNIE MARSDEN dão o toque cortante, e, o baixo de NEIL MURRAY está ótimo e, muito bem encaixado.
Mantendo a temática sensual do disco e tentando trazer também, sexualidade às letras, COVERDALE fez de "Medicine Man" uma brincadeira hard muito séria, trazendo energia nova e permitindo que o trabalho soe mais direto aos fãs tradicionais, de modo que a canção seguinte, chamada de "You And Me", em parceria com MARSDEN, avance para a sonoridade direta, gostosa e agradabilíssima para qualquer ambiente. É o blues tentando fazer os ouvintes dançarem, ao menos por um instante, e, com sucesso.
"Mean Business" é quase que um rockabilly glam, que parece ter composto pelos sempre fantásticos britânicos do SWEET, tem um refrão pegajoso, uma batida ótima para se reverberar desde um quase-twist até um chacoalhar de corações e corpos. É a canção que toda a banda resolveu compor, e, o resultado é um rock genuíno, com influências de JERRY LEE LEWIS a SLADE, passando pelos já citados SWEET.
Neste momento, o blues inicialmente aquecedor já abriu asas e flertou com o legítimo e genuíno rock'n'roll. Estranhamente, estas canções acabam por passar despercebidas aos olhos dos ouvintes mais exigentes, que consagram os famosos hits da banda, mas esquecem de louvar outros trabalhos que trazem em si, muito, mas muito mesmo, da alma de COVERDALE e sua trupe.
E então chegamos à canção título, para o retorno do blues em seu estado cavalgar, similar ao que foi feito com "Walking in The Shadow of The Blues", mas de forma mais simples, menos apoteótica, mas nem por isto, a canção deixa de ser boa. Ao contrário, "Lovehunter" reafirma a sempre direta e explícita autoafirmação de COVERDALE quando ele decide escrever e cantar sobre amor e sexo: "I need a woman to treat me good/And give me everything a good woman should (...) I'm a lovehunter, baby (...) I'm gonna give you all my loving". Afinal, as letras que percorrem o universo do rock jamais profetizaram o amor em forma de "fogo que arde sem se ver", com a exceção da magnífica homenagem de RENATO RUSSO ao poema épico de CAMÕES. Mas o rock, em si, é direto, apaixonante, delirante, e, é na simplicidade e pureza de suas letras que se constroem as grandes homenagens ao amor. E "Lovehunter" é mais safada, menos épica. Afinal, estamos dentro de um disco que namora totalmente com o blues de uma maneira mágica e certeira, e, com êxito. E todo bluesman que se preze, não pede...ele rouba um beijo, ou algo mais.
Novamente, o disco tenta flertar com o tradicional rock setentista, com harmonias fundidas entre órgão e bateria, que nos fazem lembrar já termos ouvido aquilo em algum lugar. Eis a canção "Outlaw", que repassa de uma maneira positiva uma sonoridade que me fez lembrar algo já feito por URIAH HEEP em, por exemplo, "Blind Eye" (guardadas evidentemente, as proporções de cada banda e seu estilo próprio). Não é uma super-música, mas cumpre a sua função no álbum.
"Rock'n'Roll Women" é a faixa seguinte, um delicioso rock ao estilo dos bons e velhos hitmakers dos anos 50. Novamente, a presença de MOODY na coautoria com COVERDALE, pianos, riffs rasgados e refrões açucarados muito sensacionais de serem ouvidos.
E por fim, a mágica e curta canção de encerramento, até hoje utilizado pela banda em todos os últimos momentos em que todos se despedem do público. A mais do que maravilhosa "We Wish You Well". Ao ouvi-la, tem-se a impressão de estar a assistir um comercial de televisão de motivação pessoal, onde todas as pessoas do mundo resolvem se abraçar e oferecer amizade e alegria simultaneamente. É uma mensagem de COVERDALE mais do que genuína a todos que, de alguma forma, o acompanham até hoje: músicos, ex-mulheres, fãs, e, todo o aparato que cerca o mainstream do estrelato. É triste dizer, como disse COVERDALE nesta letra, mas "é hora de ir... até que nos encontremos novamente ao longo da estrada".
O álbum ainda saiu com alguns extras em sua reedição no ano de 2006 para o formato CD, que tratam-se de canções pertencentes ao ótimo "Trouble" (disco anterior), além da pérola "Ain't No Love In The Heart Of The City", uma das mais belas canções da banda, integrante do EP "Snakebite".
E assim, entre nuvens de fumaça, goles de whisky e uma sonora e explícita declaração ao corpo, ao sexo, ao desejo e ao feeling de cantar e compor músicas, encerra-se este belo disco, lançado em 1979. Não o vejo como superior a "READY AN´ WILLING" ou "SLIDE IT IN", mas é um disco ainda assim, fantástico, carregado de um feeling envolvente, e, porque não, diferente. A formação musical, para não deixar dúvidas, é a da foto abaixo.
A nós, eternos admiradores desta que é (para mim e, tenho certeza, para muitos) uma das melhores bandas de todos os tempos, resta dizer aos seus músicos: "We wish you well... we wish you well"
E, para não dizer que não falei das flores, resolvi fechar com uma frase do próprio COVERDALE, que resume tudo que ele já fez e por tudo o que passou, e, ainda continua em campo, batalhando, para mostrar a si mesmo (antes dos demais), que ama o que faz: "Acho que temos duas missões muito importantes na vida. Uma delas é descobrir quem realmente somos e a outra é a gostar tanto da vida quanto pudermos".
Belas palavras. E, aproveitando-as, comento com todos vocês, que, assim como eu, orgulhamo-nos do rótulo de humildes fãs da banda: - uma das agradáveis sensações de viver e sentir-se vivo é realmente descobrir e poder ouvir o bom e velho rock. E, entre as descobertas, poder escolher bons e velhos discos do WHITESNAKE !!!
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