Resenha - Truth - Jeff Beck
Por Denio Alves
Postado em 20 de julho de 2001
Atenção admiradores do velho e bom som dos sixties: esqueçam aquele magricela esquisito que veio no último Rock in Rio proclamando fazer o supra-sumo da coisa, embebido por doses garrafais de Mutantes e batuquezinhos dançantes, mas que na verdade nada mais fez além de uma gororoba maçante que rebaixou o "mistureba pop" à condição de sonífero das massas. Ora, a coisa ao vivo com o homônimo desde verdadeiro deus do rock sessentista simplesmente não funciona: em miúdos, por mais que tente, o Beck dos nossos dias atuais nunca conseguirá ofuscar o nome daquele, absoluto e único, que ainda reina nos corações e mentes de milhares de roqueiros inveterados como o porra-louca mor do rock psicodélico, pesado e fulminante, de dias d’outrora. Senhoras e senhores, eis ele: Jeff Beck!
É interessante notar como Jeff, um dos melhores e mais cultuados guitarristas do gênero (ele formou a tríade santa Clapton-Beck-Page do rock britânico, nos Yardbirds, além de se antecipar a Hendrix na guitarra alucinógena) perpetrou, em 1968, um vinilzão sem precedentes que funciona bem até hoje, coeso e intenso, como nenhum disco dos Yardbirds, sua ex-banda então, jamais foi. A isso tome como fato que, conforme declarações do próprio músico, ele vinha sendo sufocado a ponto de pirar o cabeção devido às incessantes e cada vez mais apocalípticas turnês dos Yardbirds – são lendárias as estórias acerca de sua neurose e ataques temperamentais durante a última semana de shows da banda nos EUA, em 67, quando ele definitivamente os abandonou após arremessar uma caixa de som durante um show, e foi transar e curtir todas com as groupies para só depois encontrá-los na sua última escala, em Los Angeles, quando foi definitivamente despedido pelo grupo. Mala? Não: antes de tudo, um perfeccionista.
Jeff elevou o rock de garagem, o rhythm n’ blues super amplificado, à condição de arte, ao recriá-lo sob a aura das novas e estupefacientes sonoridades que pairavam no ar dos anos sessenta. Inovador ao extremo, foi ele um dos primeiros a saber arrancar melodias fluídas e compatíveis das distorções de guitarra, e a trabalhar admiravelmente bem com efeitos primários, como os das primeiras caixinhas fuzz tone e de outros pedais que hoje são parte do ancestral museu do rock. Mestre em solos e tinturas psicodélicas arrojadas e cheias de noise para o seu tempo, o homem reuniu uma banda especialíssima (Ron Wood no baixo – hoje um notório Rolling Stone, o rouquérrimo Rod Stewart nos vocais, Mick Waller na bateria, e ainda intervenções mágicas dos ilustres Nicky Hopkins e John Paul Jones – ele mesmo, do futuro Led Zeppelin! – nos teclados) e pariu, para delírio de todos, este espetacular Truth!
Com sabor de vingança, o álbum era uma espécie de demonstração da verdade mesmo, como o próprio nome atesta, que daquele momento em diante ninguém mais segurava o guitarrista, pronto para deslanchar na sonzeira toda que ele tirava das seis cordas e explorar novos universos e tonalidades. Da atmosférica recriação, originalíssima, do clássico dos Yardbirds, "Shapes of Things", à soberba "I’m Superstitious" (envenenada por um wah-wah magistral), Jeff e sua banda all-stars desfilavam um ataque de peso e sonoridade viajante nunca visto até então, que iria preceder em muito o que se faria depois sob o nome de heavy metal. Tudo bem: revisto hoje, é ainda um disco de blues, mais próximo das raízes do gênero do que de cavalos de batalha de grupos como Iron Maiden ou Motorhead. Mas é, antes de tudo, uma aula de como cavar nas reminiscências para se fazer um disco de rock pesado e selvagem.
Momentos mais light, como "Greensleeves" (arranjo para uma tradicional canção americana), não deixam de molhar a pontinha da língua no blues encharcado de bourbon – cortesia de Rod Stewart – e a pseudo-ao vivo "Blues De Luxe" é um dos melhores momentos do slow blues sensual e sacana dos anos sessenta, prima daquela "Five Long Years" que os Yardbirds interpretavam tão bem – assim como esta, é uma música que dá vazão aos solos mais repletos de feeling já ouvidos. Em uma das mais clássicas faixas do disco, "Beck’s Bolero", é promovido, antes que qualquer progressivóide o fizesse, o mais perfeito casamento entre música clássica e rock pauleira – numa composição do amigão Jimmy Page (que inclusive tocou nela!), Beck e seus comparsas promovem uma marcha inebriante, uma valsa metálica que descamba em uma ensurdecedora jam alucinada. Motivo: nesta faixa quem toca a bateria é o saudoso Keith Moon (The Who), que, curiosidade, é o responsável por um audível e acidental barulho de baqueta espancando o microfone no momento da virada de ritmo (cheque em seus earphones!). É bom frisar, aliás, que Page roubou praticamente toda a idéia inicial desta canção para utilizá-la como o andamento final de sua "How Many More Times", na parte do solo, que está no primeiro LP do Led Zeppelin . . . E ainda, na já citada "I’m Supertitious", o hit single do disco, Jeff subverte o conceito de "rave-up" (longos crescendos sonoros com final arrebatador) que os Yardbirds usavam em suas canções, promovendo uma verdadeira orgia sonora após várias quebras de ritmo. Estonteante.
Quando saiu, no início de 1968, Truth arrancou elogios desmedidos de grande parte da crítica – também, para quem tinha conseguido superar o deus da guitarra Eric Clapton na difícil missão de substituí-lo nos Yardbirds, a vida na swingin’ London era bacana. Só para se ter uma idéia do impacto deste LP, grande parte da imprensa roqueira ainda o considera, até hoje, o marco inicial do rock pesado, ainda que o título soe meio duvidoso. Quando saiu o primeiro do Led Zep, em janeiro de 1969, o New Musical Express (que tinha na sua redação 99% de fãs de Jeff . . .) fez uma matéria sentando o pau no disco de Page & cia., alegando que era uma cópia descarada do som do Jeff Beck Group em Truth. Bem, ainda que o petardo inicial do zepelim de chumbo tenha seus maravilhosos méritos, tire as suas próprias conclusões . . . Tudo o que sei é que eu curto ambos, mas que Truth foi um momento mágico na história do rock, ah isso foi!
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