Joan Baez: da Marcha sobre Washington à Marcha da Família
Por Victor Oliveira Sartório
Postado em 11 de abril de 2014
Numa Nova Iorque de atmosfera enevoada pela obsessiva doutrina anticomunista do pós-guerra, uma geração contracultural representou resistência nas cercanias do Village e da Times Square, latíbulo para uma cena filosófica antimaterialista e liberal num país lobotomizado radicalmente pelos conceitos consumistas do crescente capitalismo. Da mesma forma que seus antecessores literários da Geração Perdida cunhada por Hemingway, que se radicaram na Europa após a Grande Guerra, os beatniks encontraram subterfúgio ao ardil político-econômico dos Estados Unidos num movimento sociocultural que abrangeu do ativismo político de esquerda até a literatura e a música folk – dando, com esta, a característica essência pré-industrial e tradicional desta vertente que buscava o afastamento daquela lógica econômica. Foi neste contexto, entre bares e cafés nova iorquinos, ninhos intelectuais universitários e festivais de folk, que surgiu a maior expoente feminina da contracultura: Joan Baez.
A cantora, que em janeiro deste ano completou 73 anos, continua na ativa após mais de 55 anos de carreira e 30 álbuns lançados, tendo apenas estreado em palcos brasileiros no último 19 de março, na cidade de Porto Alegre – antes de tocar em Rio de Janeiro e São Paulo, nos dias 21 e 23, respectivamente. Isto porque a cruzada imperialista que seu país natal protagonizava nos anos 60 pelo mundo chegou em terras tupiniquins antes dela: tendo instaurado aqui a Ditadura Militar há exatos 50 anos, gestão tirânica que dominava o país na ocasião em que a ex-namorada de Bob Dylan aqui visitou pela primeira vez, em 1981, quando foi impedida de tocar no Tuca (teatro da PUC-SP) pela maior representação institucional de censura do país, a famosa Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP).
A artista, naquele 23 de maio, acompanhada pelo até então deputado estadual Eduardo Suplicy (fã da cantora em seus tempos universitários nos anos 70 na Califórnia e eleito pela antiga legenda do Movimento Democrático Brasileiro, que fazia oposição ao ARENA em período de bipartidarismo no Brasil), denunciou sua mordaça à plateia de quase 2 mil pessoas no teatro, e ainda cantou, sem instrumentos, à capella de seu cristalino vocal soprano de três oitavas de alcance, as músicas "Blowin' in the Wind", de Bob Dylan, que coincidentemente fazia 40 anos naquela noite e a mais famosa música de protesto brasileira, "Para não dizer que falei das flores", de Geraldo Vandré. Alguns ainda dizem que, para uma plateia de 50 pessoas que se aglutinaram ante uma pequena janela nos arredores do Tuca mais tarde, a cantora os agraciou com "Gracias a la vida" – da folclórica cantora chilena Violeta Parra e já gravada em famosas versões de Elís Regina e da argentina Mercedes Sosa – e "Cálice", de Chico Buarque.
Tempos negros à parte, tanto em Porto Alegre, quanto no Rio de Janeiro, a cantora, desta vez com instrumentos e devidamente amplificada, entonou todas essas quatro músicas num setlist variado, sendo que, no palco carioca do Teatro Bradesco, a música de Chico teve a ajuda de Milton Nascimento e do ex-Ministro da Cultura e exilado político, Gilberto Gil. Provando ainda que seu conhecimento e valorização do folklore musical não se limita ao norte-americano, Baez prestigiou a história brasileira com os xaxados de "Mulher Rendeira" e "Acorda, Maria Bonita", músicas supostamente compostas pelo próprio Lampião ou por algum jovem cangaceiro de seu bando (Volta Seca) e usado de hino durante as ações dos grupos, totalmente extintos pelo Estado Novo de Getúlio Vargas. Outra canção que fez parte do balaio folclórico que a artista costuma enquadrar em suas apresentações foi a irlandesa tradicional, "Lily of the West", junto com o multi-instrumentista Dirk Powell e Gabriel Harris, filho que a cantora carregava no ventre de 6 meses durante sua performance no famoso festival de Wookstock de 1969 – o pai, ativista, David Harris, encontrava-se preso naquela ocasião por deserção à Guerra do Vietnã. A cantora esteve presente em outros importantes momentos da histórica da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, incluindo a Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade liderada por Martin Luther King Jr., ocasião em que cantou "We Shall Overcome" – de seu ídolo falecido neste ano aos 94 anos, Pete Seeger – junto de seu até então namorado, Bob Dylan.
Engajada, a compositora do clássico "Diamonds & Rust" (lançada em 1975 em álbum homônimo e cantada nos shows), declarou estar ciente das ondas de protestos e manifestações civis que circundam o Brasil atualmente; "mas nada comparado ao que houve nos anos 80", segundo a mesma. Em tom saudosista, em entrevista ao Correio do Povo em Porto Alegre, Baez diz que os anos 60 e sua atmosfera política ímpar nunca serão repetidos, mesmo nas tentativas de jovens que hoje tentam preencher a lacuna ativista e de consciência política do cenário musical atual. Ironicamente, no mesmo período em que a cantora se encontrava no Brasil, ocorreu, em algumas capitais do país, uma reedição da "Marcha da Família com Deus pela Liberdade", ocorrida há exatos 50 anos – data do Golpe no Brasil –, na qual, desta vez, ao invés de dar apoio civil ao Golpe, adeptos da intervenção militar no Brasil pedem a volta dos mesmos que censuraram a própria cantora há mais de 30 anos. Muito embora o movimento tenha apenas conseguido um número significante em São Paulo (quase 500 pessoas), não é necessário um exemplo tão radical de ignorância, alienação e retrocesso para demonstrar a imperiosidade do engajamento político e social na cultura brasileira que Joan Baez nos ajuda a lembrar em tantas décadas de carreira.
(Leitura: "O Som de Revolução: uma história cultural do rock 1965-1969", de Rodrigo Merheb, é talvez o mais refinado e completo resgate histórico-social da cena musical sessentista.)
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