The Clean: qualquer coisa pode acontecer quando a liberdade vem do despojamento
Por Heberton Barreira
Postado em 19 de junho de 2025
The Clean é uma daquelas bandas que, mesmo com uma trajetória breve, acabou definindo uma estética e um jeito de fazer música que atravessou gerações. Surgido no começo dos anos 1980, o grupo foi o responsável por inaugurar o catálogo da gravadora neozelandesa Flying Nun Records com o single "Tally-Ho!", lançado em 1981. Esse momento é considerado um marco na cena musical da Nova Zelândia, pois consolidou um estilo que ficou conhecido como "Dunedin Sound": uma sonoridade marcada por guitarras cruas, gravações lo-fi e melodias simples, porém absolutamente cativantes. O nome faz referência à cidade de Dunedin, no sul do país, berço desse movimento e de várias bandas associadas ao selo Flying Nun.


O The Clean existiu, oficialmente, por apenas cerca de dezoito meses antes de os integrantes se dispersarem para outros projetos. Mesmo assim, o impacto que causaram foi enorme, principalmente por meio de dois EPs fundamentais: Boodle Boodle Boodle e Great Sounds. As músicas eram curtas, feitas com poucos acordes e uma pegada quase desleixada, mas muito consciente disso — um exemplo clássico da ideia de que menos é mais.

Duas canções ajudam a exemplificar bem essa estética e o impacto do The Clean: "Anything Could Happen" e "Flowers". "Anything Could Happen" talvez seja a faixa mais icônica do grupo, uma espécie de hino informal do indie neozelandês. A música sintetiza como a banda conseguia transformar a simplicidade em força criativa: uma batida seca e repetitiva, linhas de guitarra hipnóticas e um refrão direto, quase ingênuo, mas cheio de energia e possibilidade. O título, aliás, resume bem a filosofia musical do The Clean: um som aberto, despretensioso, que parece sempre à beira de se transformar, de mudar de direção.
Já "Flowers" apresenta um lado mais melancólico e introspectivo da banda. Com um andamento mais lento e uma melodia que beira o etéreo, a faixa destaca a capacidade do grupo de trabalhar com atmosferas delicadas, sem perder sua identidade lo-fi e direta. É o tipo de música que revela a dimensão emocional do The Clean, muitas vezes ofuscada pela fama de banda desleixada ou "caseira". Essas duas canções mostram que, apesar do minimalismo estético, o The Clean sabia criar composições que ora provocavam um sorriso despretensioso, ora convidavam à contemplação silenciosa — uma dualidade que é parte fundamental de sua relevância até hoje.

O que tornava o som do The Clean tão peculiar era justamente essa mistura aparentemente improvável entre um minimalismo radical e uma forte capacidade de gerar impacto emocional. David Kilgour, guitarrista, não precisava de muitas notas para criar atmosferas que oscilavam entre o psicodélico, o melancólico e o divertido. As canções soavam caseiras, mas nunca desleixadas; frágeis, mas nunca banais. O trio também escrevia coletivamente e todos cantavam, criando um repertório variado, mas coeso.
Depois da separação, os integrantes se envolveram em diversos outros projetos — o mais notório foi o The Great Unwashed, formado pelos irmãos Kilgour quando Robert Scott saiu para criar o The Bats, outra banda essencial do indie neozelandês. No entanto, o The Clean nunca foi exatamente um projeto encerrado. Ao longo das décadas, eles se reuniram diversas vezes, sempre de maneira inesperada e meio descompromissada, mas com resultados marcantes. O exemplo mais emblemático foi o show de reunião em Londres, em 1988, que gerou o EP In-a-Live, com gravações que mostraram que, mesmo depois de anos afastados, a química entre eles continuava intacta.

Pouco tempo depois, lançaram o que é considerado seu primeiro álbum de estúdio propriamente dito: Vehicle. O disco manteve a essência do som que os consagrou, mas com uma produção um pouco mais elaborada, faixas vibrantes e melodias que gritam para serem ouvidas no volume máximo. Ainda assim, longe de parecerem "domesticados" pelo estúdio: continuavam soando como uma banda que se diverte criando músicas curtas, intensas e memoráveis.
Na sequência, cada integrante seguiu novamente seu caminho: David Kilgour investiu em uma carreira solo; Robert Scott consolidou sua trajetória com o The Bats; Hamish Kilgour se mudou para Nova York e formou a banda The Mad Scene. Em 1994, quase por acaso — quando os três estavam em Dunedin ao mesmo tempo —, gravaram mais um disco: Modern Rock. Esse álbum evidencia uma banda mais madura, com influências de nomes como Velvet Underground e Nick Drake, apostando em sonoridades mais atmosféricas, arranjos com instrumentos folk e texturas etéreas, sem abrir mão da simplicidade que sempre caracterizou o grupo.

Atualmente, os integrantes do The Clean seguiram caminhos diversos. David Kilgour segue na ativa, lançando discos com sua banda, David Kilgour & The Heavy Eights, e participando de festivais, como o Port Noise, em 2025. Robert Scott também continua firme, tanto com o The Bats quanto em carreira solo, fazendo shows e mantendo viva a tradição do indie neozelandês. Já Hamish Kilgour faleceu em dezembro de 2022, deixando um legado fundamental na música alternativa. Antes de sua morte, participou de diversas bandas importantes e ajudou a moldar a cena indie mundial. Peter Gutteridge, que também integrou a formação inicial do The Clean e foi membro de grupos como The Chills e Snapper, faleceu em 2014, sendo lembrado como uma das figuras mais influentes da música underground da Nova Zelândia.

O legado do The Clean vai muito além da sua discografia oficial. O grupo influenciou uma série de bandas que, direta ou indiretamente, beberam dessa estética despojada e criativa, como Pavement, Yo La Tengo e até Stereolab. O The Clean provou que não é preciso uma superprodução ou solos virtuosos para fazer música relevante: basta ter uma ideia boa, um riff marcante e coragem para manter a simplicidade.
A banda oceânica é, no fim das contas, um exemplo raro de como a liberdade criativa nasce justamente do despojamento estético, e não apenas convive com ele. O grupo sempre recusou o excesso, apostando no mínimo como potência expressiva, e nisso encontrou uma identidade que atravessou décadas. Não à toa, "Anything Could Happen" não é apenas um título marcante, mas quase um manifesto: a celebração da possibilidade, da abertura para o acaso e para os caminhos não planejados. O legado do The Clean é justamente esse — mostrar que, com poucos acordes, alguma distorção e uma boa dose de intuição, qualquer coisa pode mesmo acontecer e, quando se permite, essa liberdade vira arte, vira história.

Escutar The Clean hoje é mais do que fazer uma viagem no tempo — é perceber como o indie rock contemporâneo deve muito ao caminho que eles ajudaram a abrir, com poucos recursos, muita personalidade e uma abordagem que valoriza a espontaneidade acima de qualquer coisa. Em tempos de excesso de produção e filtros infinitos, o The Clean segue como um lembrete sonoro de que, às vezes, o mais honesto é também o mais impactante.

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