Venda seus discos e venda a alma?: desapegue, pro seu próprio bem
Por Nacho Belgrande
Fonte: Playa Del Nacho
Postado em 14 de maio de 2015
Por ANNIE ZALESKI para o site estadunidense SALON
Em março passado, o site CUEPOINT publicou um artigo interessante chamado "Vender seus discos irá arruinar sua vida". O título meio que não representava o texto, porque o ensaio abordava a psicologia de colecionar, e não se absteve de falar dos aspectos positivos de se esbaldar comprando música. "Parte de colecionar é saber quando se desfazer", escrevera o autor da matéria, Bethelem Shoals. "Se você não está disposto a admitir que algo não lhe anima, você é um acumulador. Curadoria é uma palavra sobreusada, mas se você não zela pela sua coleção, você é pouco mais do que um acumulador. "
Esse último trecho me desconcertou um pouco, por razões puramente pessoais. Minha coleção física de música está, para pegar leve nas palavras, bagunçada e completamente fora de controle. Nem sempre foi assim: quando eu comecei a comprar CDs na metade dos anos 90, eu estava limitada pela minha mesada e pela disposição dos meus pais a me levar de carro até lojas de discos. Mas quando eu comecei a escrever sobre música profissionalmente, mais para o fim da década, as edições promocionais começaram a chover. Enquanto essa avalanche incluiu muitos discos com a arte final, também continha cópias personalizadas, CD-Rs e cópias inacabadas dos discos, que ficavam se empilhando porque jogá-las no lixo parecia ser um desperdício [e me livrar delas não parecia ser uma boa ideia por razões de segurança]. Mesmo com esse fluxo contínuo de música em minha direção, eu ainda comprava muitos CDs, tantos de lançamentos novos como de catálogo.
Em pouco tempo, eu ficava sem espaço nas prateleiras dos meus apartamentos; mesmo vendendo CDs constantemente e me mudando de Boston para St. Louis para Cleveland não causaram nem um arranhão à minha coleção. As coisas finalmente ultrapassaram um limite cerca de 4 anos atrás, quando eu me mudei para a casa que eu divido com o meu agora marido. Não havia espaço para toda a minha coleção ali – acabou que eu me casei com alguém cuja obsessão por mídias físicas rivalizava com a minha – e então, a maioria de minha coleção cuidadosamente construída acabou no porão dos meus pais, onde ainda permanece até hoje, pegando poeira. Os CDs que vieram de fato para a minha residência estão nas prateleiras e empilhados em meu escritório doméstico, organizados em ordem não-discernível. Como resultado, eu raramente consigo achar um disco se tiver vontade de ouvi-lo, e nunca tenho certeza se a música que quero ouvir está sequer ao meu alcance. Eu não faço real ideia de quantos álbuns eu tenho de verdade, apesar de minha estimativa estar na casa dos cinco dígitos.
E aí que essa situação frustrante é completamente culpa minha. Eu sou sentimental e nostálgica por natureza, então me livrar das coisas é difícil. Eu tenho ligações emocionais com certas bandas e discos, e ouvi-los de pronto traz uma enchente de alegrias e arrependimentos passados, amizades e relacionamentos que eu mantive [ou deixei que falhassem], ou momentos de conexão que significaram muito para mim. É meio bobo, mas as ideias de me livrar dessas músicas dão a sensação que eu também estou abrindo mão dessas experiências, como se os objetos tangíveis fossem o que estivesse mantendo minhas memórias costuradas em meu subconsciente. Por outro lado, me desfazer de CDs também dá a sensação de uma conscientização de que estou me desapegando de versões passadas de mim mesma, admitindo que tenho permissão para me livrar de todos os desvios, boas intenções, arrependimentos românticos e más decisões ligadas à música que eu acumulei pelo caminho. Isso não é necessariamente fácil: para alguém que vê a música como uma trilha sonora contínua para a vida, chegar a um estado onde esse acompanhamento possa ser desligado é um grande passo.
Mas eu cheguei ao ponto onde ter essa coleção enorme e maravilhosa de música simplesmente parece ser um fardo. Outrora eu dava valor a possuir muitos discos raros ou relíquias escondidas; agora, parece um empecilho para seguir em frente, um elemento imobilizador. Eu não amo música menos por isso, e eu ainda dou valor a segurar um CD físico em minhas mãos [na verdade, eu prefiro sentir o peso de um álbum nas mãos se estiver ouvindo música]. Eu simplesmente tenho um problema com o espaço físico – e por consequência, mental – que ela ocupa na minha vida. Eu não estou sozinha nessa sensação de me sentir engolida por minhas posses: a ideia de ‘vida minimalista’ explodiu nos últimos anos, apoiada pela tecnologia que torna o streaming mais fácil de acessar do que nunca, e as pessoas se dando conta de que o que parece essencial é na verdade catrevagem. Enquanto a mudança rumo o minimalismo é frequentemente etiquetado como um hábito da geração desse milênio, eu já a vi em pessoas de todas as idades a meu redor nos últimos meses: o desejo de levar uma vida mais simples e desapegada parece transcender o bairrismo de gerações.
Outro aspecto ingrato é o quão desafiador é bolar como ou onde se livrar desses CDs. Infelizmente, ao contrário da coleção do jornalista do Cuepoint, que parece incluir vinil, que tem algum valor de revenda, meu acervo é composto por milhares de CDs. Tal como qualquer colecionador do eBay [ou rato de loja de discos] irá lhe dizer, o mercado para a revenda de CDs chegou ao fundo do poço. Conseguir 50 centavos de dólar por um CD usado é um bom negócio hoje em dia. Muitas lojas sequer os aceitam mais, já que estão enterradas por excesso de estoque. Talvez os CDs tenham um renascimento no futuro, do mesmo modo que o vinil e as fitas cassete – mais uma razão que eu sempre dou para justificar mantê-los – mas há tanto produto por aí, que isso parece duvidoso, na melhor das hipóteses. Eu provavelmente vou acabar fazendo uma combinação de doação para o Exército da Boa Vontade e tentar achar quem recicle CDs para pegar o grosso do meu arquivo, de modo a não poluir o meio-ambiente com plástico.
Antes de eu despachar todos esses discos, a questão permanece sendo se eu quero passar pelo sacrifício de converter tudo para MP3 e estocar em algum tipo de HD externo. A ideia de ripar repetitivamente por dias [ok, semanas] a fio não tem apelo algum, sem contar sua ineficiência. O mais perturbador é que, depois de todo esse tempo nas caixas, eu não senti a falta de nenhum desses discos. Quando eu tenho eles na minha frente, eu até os toco, mas de outro modo, quando fora do meu campo de visão, estão fora do meu pensamento também. Esse estado mental é a razão pela qual eu fico frustrada pela falta de opções profundas de descoberta de muitos serviços de streaming de músicas. Eu gosto de achar tesouros escondidos, como se fosse redescobrir joias empoeiradas que catapultem um disco de volta ao meu consumo. Essa é a vantagem das lojas independentes de discos, e de se ter uma enorme coleção – você nunca sabe o que vai achar. Ao mesmo tempo, é tão sedutor quanto ter toda a sua música disponível em um lugar na nuvem. Há algo deliciosamente econômico e limpo em ter acesso instantâneo a uma coleção inteira, deslizar o dedo por uma vasta relação de nomes de bandas e discos para escolher a música certa para um estado de espírito específico.
Claro, mesmo essa situação não é perfeita: em mim, isso por muitas vezes cria o que os acadêmicos chamam de ‘a ansiedade da escolha’, quando muitas opções levam à paralisia da decisão. Ao invés de achar a música perfeita, eu não opto por nenhuma [chame isso de o equivalente a ter 500 canais de TV por assinatura e dizer que ‘não tem nada de bom passando’]. Logicamente, isso mais uma vez é um absurdo – por mais CDs que eu tenha recebido de graça, eu comprei centenas mais porque eu gostava da banda [ou pelo menos de uma música]. Como é que eu não vou achar nada perfeito para a ocasião?
No fim das contas, uma busca interminável pela perfeição talvez seja o maior problema que eu esteja tendo com a redução de minha coleção. Para os fanáticos, colecionar música é muitas vezes intrinsecamente ligado a tentar recapturar o primeiro momento em que eles ouviram um disco ou uma banda que mudou suas vidas. A emoção não está construída somente na arte em si, trata-se de procurar e emular o êxtase, a alegria ou as lágrimas de um momento transformador. Eu não quero inadvertidamente sentir falta dessa experiência porque eu joguei fora um disco para o qual não tinha espaço, então eu me apego às coisas para o futuro. Claro, não é como se o número de bandas seja finito. No mais, parece que todo ano traz mais e mais música para se experimentar, tanto que é fácil deixar passar batidos lançamentos até de bandas que eu goste. Planejar-me para um futuro nebuloso onde eu terei tempo à vontade para ouvir a meus CDs até então subestimados está ficando cada vez menos viável.
Então eu meio que escolho e dedilho pela minha coleção, tentando manter outra coisa que Shoals disse no artigo do Cuepoint em consideração quando chega a hora ruminar sobre os motivos para vender discos:
"No sentido mais altruísta, estamos retribuindo à comunidade de colecionadores. Eu não quero isso, talvez outra pessoa queira. Um amigo meu certa vez descreveu o conceito de ‘karma dos discos’ para mim – quando você se desfaz de uma boa pilha de vinis, você deixa algo para o próximo encontrar. Qualquer outra hipótese seria totalmente egoísta e negaria o fato de que o colecionismo é um pouco maior do que você. Todos nós nos beneficiamos do trabalho um do outro, muitas vezes um ‘trabalho por amor’. Talvez eu nunca tenha me dado ao trabalho de ter ouvido certa banda em 2009 – mas outra pessoa irá achar meu CD descartado dela e descobrir sua nova banda favorita.
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