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Legião Urbana: Canções ótimas e ainda relevantes

Resenha - A Tempestade Ou O Livro dos Dias - Legião Urbana

Por Daniel Junior
Postado em 19 de março de 2016

Nota: 8 starstarstarstarstarstarstarstar

O ano de 1996 seria um ano traumático para os fãs de Legião Urbana ou de rock nacional em geral. Em 11 de outubro daquele ano, Renato Russo seria mais um a se despedir desta vida, vítima da Síndrome da Imune Deficiência Adquirida (como foi chamada no início dos anos 90) ou se você quiser, AIDS. Um dos maiores compositores do BRock perderia sua luta contra a doença. Sua ausência na divulgação do último disco – "A Tempestade Ou O Livro dos Dias" – era sentida pelos meios de comunicação por conta das peculiaridades que envolviam um novo álbum da Legião Urbana. A foto de Renato no encarte se refere ao seu trabalho no disco em que cantou alguns clássicos em italiano.

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Nem Renato e nem a banda curtiam todo o processo pós gravação, a saber: gravação de clipe, lançamento de single, entrevistas para rádio, jornal e televisão. O grande problema é que o verborrágico Renato Russo quando falava do seu trabalho, também falava de cinema, situação política do Brasil, literatura, mundo gay… Ele cansou de dizer que não tinha respostas pois não sabia quais eram as perguntas. O carioca, que teve identificação forte com a capital federal, estava recluso e os outros membros da banda não se pronunciavam sobre a ausência do músico. Burburinhos corriam à boca pequena que Renato estava doente, mas ninguém sabia se era crônico ou mais uma recaída do músico que tinha problemas de alcoolismo e dependência química.

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Consagrada, a banda vinha de uma turnê bem sucedida do bom disco "O Descobrimento do Brasil" (1993), que por onde passou levou multidões à ginásios e estádios. A Legião Urbana não gostava de shows, mas fazia questão de tornar os espetáculos inesquecíveis para o seu séquito de seguidores. Mesmo dizendo-se tímido, Renato e os músicos no palco faziam versões longas de clássicos como "Ainda É Cedo", "Perfeição" (com direito a citação de Nirvana), "Teatro dos Vampiros", pra citar alguns. A palavra "catarse" era usada aos borbulhões nas matérias cobrindo os shows da banda por todo o Brasil.

Nem a experiência traumática da banda em Brasília, durante a turnê do disco "Que País É Este" (1987), onde centenas de pessoas ficaram feridas, após uma confusão entre público e polícia, fazendo até com que surgisse uma pequena mas significativa campanha para que o grupo não retornasse à sua terra natal, fez com que seus fãs ao redor do país desistissem das parcas turnês. O tour do disco "V" (1991), por exemplo, foi interrompido abruptamente por Renato mergulhado em uma das suas crises. Renato era uma bomba relógio; pronto para fazer o que todo detonador está disposto a ser. Um dia puxaram o pino.

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Uma comoção tomou conta do Brasil, em mesma proporções como acontecera com Cazuza no ano de 1990. A diferença primordial é que Agenor de Miranda Araújo Neto dera uma entrevista histórica para revista Veja falando da sua condição de soropositivo e como estava enfrentando a doença. O co-autor de "Codinome Beija-Flor" e "Brasil" trabalhou durante a turnê de discos importantes do rock brasileiro feito naqueles dias. "Ideologia", "O Tempo Não Para" e "Burguesia", além de fotografias fiéis de um Brasil se colocando em um período decisivo de redemocratização, também apresentavam um letrista ácido, menos formal e em alguns momentos, muito mais visceral do que Russo. Renato escondeu a doença até o dia de sua morte e sua aflição só seria amplamente noticiada através dos especiais de TV e inúmeras entrevistas concedidas por sua mãe, além de Dado e Bonfá.

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Em um ambiente de muita dor e profunda tristeza pelo estado de saúde em que Renato Russo já estava, "A Tempestade Ou o Livro dos Dias" nasceu nos estúdios da casa do tecladista Carlos Trilha. A banda (e as pessoas que sabiam da situação de Renato) desconfiavam que aquele poderia ser o canto do cisne. Por isso, somando as canções deste álbum mais "Uma Outra Estação" (que na verdade são sobras das gravações de "A Tempestade"), temos 30 faixas. Entre canções em formato demo, homenagens ao período que os integrantes moravam em Brasília e canções nunca registradas pela banda, a Legião Urbana entregou um disco que "pouca gente quis ouvir".

Tal afirmação se dá pela quantidade de ótimas canções contidas neste disco e até hoje pouco reverenciadas pelo grande público. Não só isso. Em "A Tempestade…", dentro do estúdio, a banda finalmente achou um som mais contemporâneo e menos sujo do que os álbuns anteriores. Se a bateria de Marcelo Bonfá sempre pareceu sem peso e força, neste álbum vemos o músico fazendo o seu melhor trabalho, onde é clara sua participação na ideia dos arranjos e em um som mais "gordo" e encorpado à cama de teclados de Trilha e às delicadas (e belas) linhas de guitarra de Dado Villa-Lobos. Se o público tinha uma predileção pela banda como porta-voz de uma geração e convicções políticas, tendo Renato ganhado a alcunha de "Messias" em vários campos midiáticos, musicalmente o grupo fora pouco respeitado. Mesmo que todos soubessem que a maior inspiração da banda sempre fora o pós-punk dos anos 70 da Inglaterra.

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Em "A Tempestade Ou O Livro dos Dias" temos uma banda mais afiada logo na primeira canção. "Natália" é um rock sujo, de baixo marcante (tocado por Renato, um hábil baixista), com melodias que denunciam alguma semitonação em vários momentos. Russo está fraco e a voz debilitada. Percepções para qualquer um que tem uma boa audição e melhor percebida com um ótimo par de headphones. Teríamos uma nova sessões de catarse se a faixa abrisse a turnê deste álbum.

"L´Aventura" tem o lirismo como sua maior arma, além da harmonia pouco usual do trio. A banda se utiliza de inversões que notabilizam (e sublinham) muitas das boas tiradas textuais de Russo. Conforme falei, na faixa, o violão de Dado aparece com desenvoltura, acompanhado de um baixo modal (que parece ser programado) e a bateria seca e precisa de Bonfá. Além de cordas e os strings arranjados por Carlos Trilha, colaborador de Renato em seus trabalhos solos e tecladista da banda desde a turnê de "O Descobrimento do Brasil". O verso "Triste é coisa é querer bem a quem não saber perdoar, acho que sempre lhe amarei, só que não lhe quero mais. Não é desejo, nem é saudade. Sinceramente nem é verdade", é uma das grandes mostras que Renato, apesar de debilitado, ainda sabia trabalhar com poucos na musicalidade do seu próprio texto, medindo bem as antíteses e emprestando a melancolia necessária à canção.

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"Música de Trabalho" tem de interessante a ousadia pouco vista nos trabalhos de Dado Villa-Lobos nos discos da Legião Urbana. O músico belga se utiliza de outras linhas para trazer novas guitarras e encorpar a canção. Talvez por conta de ser responsável pela produção do disco (e apoiado pelo músico Tom Capone), ele sentira-se mais livre para dar sua personalidade ao arranjo.Depois de Renato Russo sussurrar seus reclamações sobre o trabalho, é Trilha quem entra com a cama de acordes sobre a cama de percussão de Bonfá. Um arranjo diferente, com acompanhamento marcial e melódico.

"Longe do Meu Lado", como dizia Renato, é "a sacarina que Bonfá compõe", músico também responsável por canções como "Teatro dos Vampiros" e "Vento No Litoral". Baseado numa frase melódica de teclado, a canção pode não ser a preferida entre as baladas da Legião, pois quase nunca é lembrada, mas traz um bom e simbólico arranjo de cordas para o fiapo de voz do cantor que canta versos como "A paixão quer sangue e corações arruinados e saudade é só mágoa por ter sido feito tanto estrago". Isso assim, de uma só vez, durante os acordes básicos da canção. Ótima para cortar os pulsos. Don´t try this at home.

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"A Via Láctea" foi a canção que dedurou que alguma coisa não ia bem com o músico. A faixa falava sobre "febre", "tristeza" e "quando tudo está perdido". Mesmo com este clima tão down, "A Via Láctea" (que era o single) tocou muito nas rádios (antigamente isso era importante). Parecia que a banda queria entregar através da canção o que eles mesmos não tinham coragem de dizer: nosso heroi está morrendo. A canção lembra a estrutura de "Streets of Philadelphia" (Bruce Springsteen), não em relação à harmonia, mas a maneira que privilegia teclados e a voz, que é o fator mais importante da canção, para que fique bem claro o que o cantor está dizendo. Termina com um teminha de violão. Se você quase usou lâminas de aço em "Longe do Meu Lado", "A Via Láctea" certamente é o epitáfio.

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Marcelo Bonfá experimentou muito em "A Tempestade Ou O Livro dos Dias". Da mesma forma como fizera em canções como "Perfeição" e "O Descobrimento do Brasil", o músico criou seus arranjos em cima de outros tracks de bateria. O resultado é satisfatório. Especialmente se pensarmos em como o músico toca nos primeiros discos. Em "Música Ambiente" temos uma guitarra wah wah fazendo uma ótima base, violão e uma outra linha de guitarra tocando pequenas frases. Destaque para o clima psicodélico da canção. A letra fala uma coisa ("Não chore por mim"), mas a base é de trance. Por fim mais uma guitarra minimalista de Dado Villa-Lobos.

"Aloha" traz o perfil pela qual Renato Russo ficou mais conhecido em suas letras: as críticas sociais associadas ao romantismo. A forma que o compositor faz referências a si mesmo (ou algum alter-ego) e faz apontamentos para algum grupo social, foi a maneira que fez com que uma geração se identificasse com suas dores e angústias. Em "Aloha" temos mudança de andamento, tom e muitas ironias em vários versos. A canção vai bonita até um fade out que faz com que ela renasça através da virada de Bonfá.

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"Soul Parsifal", uma parceria inédita de Renato Russo com Marisa Monte, não lembra as canções da Legião Urbana. Ela tem muito da estética musical do álbum "Equilíbrio Distante". A banda utiliza seu setup para executar uma canção que tem melodia que lembra clássicos da Broadway. Ela poderia receber um arranjo mais rico, que combinaria melhor com a harmonia que foge do padrão "Legião Urbana de fazer música" e por isso ser mais caprichada. Nela Renato ainda consegue uma interpretação melhor do que nas demais faixas do disco.

"Dezesseis" é aquela típica canção que acabou meio que uma característica da Legião Urbana. O Renato Russo cronista, contador de histórias quase sempre se fez presente em todos os discos. Embora a música tenha feito um relativo sucesso comercial, não é das grandes canções que a banda já fez. Os fãs mais ardorosos dizem que a faixa tem revelações sobre a própria relação do cantor com sua saúde debilitada, que assim como Johnny, teria se entregue nas curvas perigosas de alguma quadra de Brasília. Vale pela homenagem às bandas que Renato idolatrava: The Beatles, Rolling Stones e Led Zeppelin.

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Se "Soul Parsifal" não cabe esteticamente na maneira como a banda ficou conhecida, "Mil Pedaços" é aquele baladão com harmonia mais intrincada e também não muito recorrente na discografia da banda. Seria mais grandiosa se o cantor estivesse em seu melhor momento. Mesmo assim não decepciona, embora tirando o violão (do lado esquerdo do fone), todos os outros instrumentos estejam bastante discretos. Há um cello, um piano e outro violão, emprestando um ar classudo à canção. Merece uma conferida.

"Leila" é de longe uma das canções preferidas dos fãs legionários. A abordagem da Legião está ali. Teclados, baixo, guitarra e a voz de Renato, com uma excelente melodia, entre graves e poucos agudos. A belíssima canção é sensível e tem "ruído" mesmo entre tanta doçura. Diferente do que primava em suas canções, especialmente de início de carreira, aqui a banda se permite sair da "música de elevador" para entrar com uma guitarra rasgando a canção. Marcelo Bonfá que é tido como um baterista de limitada técnica, assim como Ringo Starr em suas contribuições junto ao Fab Four, aqui trabalha sublinhando com classe a canção que aborda "cachorro quente" e "baratas voadoras" num só texto.

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"1º de Julho" aparece aqui em sua versão demo. A canção foi feita para cantora Cássia Eller (e gravada em seu terceiro álbum) e o título se dá pela previsão de nascimento do seu filho, Chicão. O registro não parece ser da época da gravação. A voz de Renato está firme e o cantor carioca arrisca em vários momentos a voracidade de outras canções. Temos aqui uma típica canção de MPB, talvez uma das mais bonitas e singelas canções do intérprete. Não se sabe para qual projeto que Renato gravara a canção, mas aqui apenas Trilha e ele estão participando da faixa.

"Esperando Por Mim" é uma canção emblemática deste álbum. Se "A Via Láctea" dedurava a condição do cantor, "Esperando por Mim" é a despedida escrita para família, amigo e fãs. "Hoje eu não estava nada bem, mas a tempestade me distraia. Gosto dos pingos de chuva, dos relâmpagos e dos trovões". Com versos assim, Renato Russo emociona em uma canção – que teve execução nas rádios cariocas – que é a mais nítida e escrachada baliza de adeus do cantor. Um solo de guitarra baixo (como um grito escondido) é coberto por muitos violões tocados por Dado. É muito difícil não se comover com o clima do arranjo.

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"Quando Você Voltar" não é das melhores canções do disco, não pela música em si, mas pelo arranjo que chega ser preguiçoso. Talvez se ganhasse bateria incisiva e uma boa linha de baixo, teria um efeito melhor. É a chamada "dor de cotovelo" com muita dor e bastante cotovelo, não merece maiores comentários e recomendações.

E o disco encerra com "O Livro dos Dias", uma das melhores e mais bonitas canções do repertório legionário. Com versos quase enigmáticos como "Ausente o encanto antes cultivado, percebo o mecanismo indiferente, que teima em resgatar sem confiança, a essência do delito então sagrado", a faixa tem um bom arranjo de cordas, um acompanhamento belíssimo de Marcelo Bonfá e a categoria do Renato nas letras que "só" ele poderia escrever. A guitarra de Dado tem a doçura das suas intervenções e o disco fecha com um tremendo ar de despedida.

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Menos idolatrada como discos como "Dois" ou "As Quatro Estações", "A Tempestade ou O Livro dos Dias" traz uma banda vivendo um momento quase traumático pelas inúmeros momentos de nervosismo e tensão que o cantor trazia para o estúdio quando aparecia. Sem imagens oficiais das gravações e dito por seus integrantes como um trabalho difícil de ser feito, a aura do disco revela canções ótimas e ainda relevantes, mesmo que tenha sido em meio a doença que levaria o cantor meses depois. Para ouvir e pensar.

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Sobre Daniel Junior

Daniel Junior era blogueiro do Diário do Pierrot e do site The Crow (especializado em cinema). Colaborava com o site Seriemaníacos (sobre séries de TV) e com o blog Minuto HM. Começou seu amor pelo rock por causa do Kiss e do Black Sabbath até conhecer outras bandas pelas quais nutriria paixão e admiração como Metallica, Rush, Dream Theater, Faith No More e tantas outras. Daniel faleceu em 2017 e definitivamente fará falta.
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