Whiplash: o filme e a real busca pela perfeição
Resenha - Whiplash - Damien Chazelle
Por Flávio Rodrigues
Fonte: Delfos
Postado em 23 de fevereiro de 2015
Andrew era ainda bastante jovem. Não ostentava um grande carro na garagem e nem uma namorada capa de revista. Seu singelo passatempo era ir ao cinema com seu velho pai. No entanto, ele buscava a perfeição.
Matéria originalmente publicada no site DELFOS
http://www.delfos.jor.br
Do latim "perfectus", perfeição quer dizer completo, terminado. Buscamos todos nós esta perfeição, este sentimento de estarmos completos em um mundo tão cheio de lacunas. Alguns procuram num amor. Outros, num carro de luxo. Andrew procurava nas pontas de suas baquetas.
O filme de Damien Chazelle, Whiplash: Em Busca da Perfeição, tem conquistado a crítica não só pela música, mas pela sua mensagem forte e visceral por essa busca incessante, levada à tela com maestria nos papéis de Miles Teller e J. K. Simmons, que entregam a nós uma explosiva relação de aluno e mestre, ambos em busca do mesmo e inalcançável objetivo.
Como músico profissional, ver tudo aquilo retratado na tela trouxe mais do que uma simples catarse, mas um profundo pensamento sobre nossas escolhas e nossas buscas pessoais. E para quem acha que o filme tem uma imagem fantasiosa e com exageros, com minha experiência pessoal posso afirmar que, pasmem: o filme é mais realista do que você pode pensar.
IT`S A LONG WAY TO THE TOP IF YOU WANNA... JAZZ?
O jazz é, sem dúvidas, um dos estilos musicais mais fascinantes e herméticos do mundo da música. Aliás, você que diz "não gostar do estilo", saiba que existem diferentes ramificações que vão do Swing das big bands de Count Basie, o Bebop acelerado de Charlie Parker e o charmoso Cool Jazz de Chet Baker, para citar apenas alguns.
Minha imersão no mundo do jazz veio quando ingressei na faculdade de música, no ano de 2011, onde eu também tive a oportunidade de mergulhar de cabeça na convivência com os mais diferentes músicos.
Escalas, arpejos, domínio da linguagem. O jazz sem dúvidas não era para qualquer um. Era como aprender uma língua nova, totalmente diferente, e eu sofria para fazer a minha guitarra falar algumas frases.
A exigência técnica me pedia horas de estudo por dia. "Nos dias mais difíceis, estude no mínimo quatro horas", dizia meu professor. E não havia desculpa para falta de tempo. Qualquer tentativa nesse sentido seria rebatida com um "o que você faz da meia-noite às 6?". A resposta normal era dizer que dormia, e ele respondia: "pronto, arranjei seu tempo".
Ao ouvir cada disco, cada improviso, a impressão era de que nunca chegaria aos pés daqueles músicos. Nunca conseguiria tocar algo parecido. Mas eu continuava.
Em meus dedos não havia sangue como o drama de Hollywood, mas os calos eram cada vez mais grossos. As costas doíam pelas horas na cadeira sentados em frente de uma partitura muitas vezes indecifrável. Mas eu continuava, todos os dias, sem sábado ou domingo. "Se você ficar sem tocar um dia, seus músculos percebem a diferença. Se ficar sem tocar dois, você percebe a diferença. Se ficar sem tocar três, todo mundo percebe", dizia meu mestre.
O sangue e suor não são meros recursos estéticos da película, e são extremamente presentes na vida do músico. Thomas Edison já dizia que o talento é feito de 1% de inspiração e 99% de transpiração, e era preciso transpirar ainda muito mais.
HEY, SATAN! PAID MY DUES! PLAYIN` IN A JAZZ BAND
Quando era jovem e sonhava com o mundo da música sempre tinha em mente, assim como muitos jovens que talvez estejam lendo este texto, grandes estádios lotados, pessoas gritando meu nome, groupies por todas as partes e uma vida glamorosa. Aos poucos você entende que viver de música não tem a ver necessariamente com fama ou com o que as pessoas acham que é ser um bom músico.
A cena do jantar, onde Andrew se revolta vendo a pouca atenção que recebe pelo seu feito, ilustra bem essa situação. Desenhamos em nossas cabeças os ideais a serem alcançados, e não consideramos sucesso quando estas expectativas não são atendidas. Aos poucos, aprendemos que a arte nada tem a ver com fama, e que a busca por este momento completo é uma corrida muito mais cheia de obstáculos do que era previsto. Além disso, não há nenhuma garantia: ser músico é aprender que os seus melhores solos podem sair num quarto fechado, sem nenhuma gravação ou alguém para escutar, pois não há segunda chance. A música é viva.
Em busca de reconhecimento, muitas vezes passamos por detestáveis ou arrogantes, e em algumas outras tratamos a arte como uma competição. Não foram poucas as vezes que vi colegas torcendo para outros errarem, para que estes se sentissem mais seguros.
Quem toca mais rápido? Quem sabe mais músicas "by heart"? ("de cor" em português, mas, assim como meu mestre, sempre preferi o termo em inglês)? Criamos uma incessante competição para tentar mensurar o imensurável, e sofremos as consequências de nossas próprias decisões.
Em meio a tudo isso, mestres como Fletcher são mais do que reais. Homens apaixonados pela sua arte a ponto de serem desprezíveis são mais comuns do que se imagina em grandes conservatórios. Homens que não admitem um erro, não admitem que a sua arte seja manchada. Há de se compreender e respeitar as horas dedicadas que o tornaram mestre. Por trás das atitudes questionáveis há um profundo respeito pela música e pelas horas em busca de uma nota na hora certa.
LET THERE BE JAZZ
Em meio a todos os percalços, nós seguimos, buscamos a tão desejada perfeição. A música é uma das artes que mais incessantemente busca por ela. Há um apreço pelo virtuoso como não há em muitas outras. E isso acontece muito por conta de que é a arte em que a perfeição nunca será permanente.
A música é um momento no tempo. É fugaz, passageira. Um improviso é um respiro daquele momento único e presente, e não há como captá-lo. Você pode pensar que é possível gravar um solo perfeito, e eu te digo que não, pois a música só acontece ao vivo. Gravações não passam de meras tentativas de capturar o incapturável, até porque o solo perfeito pode ser perfeito para aquele e somente aquele momento, e não para depois. A música está ligada à passagem do tempo como nenhuma outra arte. Podemos olhar as telas de Da Vinci, tocar as esculturas de Michelangelo, mas nunca ouvir das mãos de Beethoven alguma de suas composições.
Andrew sabe disso, e é por isso que deixa tudo para trás, em busca dessa tão inalcançável perfeição na mais imperfeita das artes. Não há modelo na natureza para seguirmos, como em outras áreas. A música é uma criação genuinamente humana.
FOR THOSE ABOUT TO JAZZ... WE SALUTE YOU!
Muitos músicos fazem sucesso com pouco estudo, é verdade. Muitos levam a vida como uma grande festa, um grande luau de poucos acordes. Mas a música vai muito além disso. Não estou aqui falando de negócios, mas sim de arte.
O talento, algo que usamos incessantemente para descrever grandes feitos, não vem desacompanhado de muitas horas de estudo, dedicação e suor. O lado bom é que, como sempre digo aos meus alunos, "a música não é ingrata. Se você se dedicar a ela, ela vai te retribuir", mas essa retribuição nada tem a ver com sucesso ou dinheiro.
E, mesmo assim, inexplicavelmente, ficamos com a fama de preguiçosos, vagabundos, ociosos. Mal sabem eles. Na faculdade, brincávamos entre nós dizendo que "se você não quer estudar, que vá fazer medicina". A virtude mais desejável em um músico é a disciplina.
Todos nós, músicos ou não músicos, seguimos, em busca de nos sentirmos completos. E nessa incessante busca pelo inatingível, botamos à prova todos nossos limites. Como Andrew, não são poucos os momentos em que pensamos em desistir de tudo, largar mão e jogar tudo para o alto. Muitos, de fato, fazem isso. Mas é exatamente isso que separa os vencedores dos que apenas tentaram.
Andrew trouxe a nós um lindo solo no final da película. Ele alcançou, enfim, a perfeição? Nunca poderemos saber, mas eu prefiro acreditar que não. Como músico, creio que certamente ele deve ter pensado que ainda está longe, que ainda tem muito a evoluir, a aprender. Este é o maior carma do músico: a autocrítica. Creio que não importa quão bom for o improviso, sempre iremos procurar por mais. Aí está o grande paradoxo de nossa busca: a perfeição só será alcançada pelos outros, e nunca por nós mesmos.
Portanto, se você é músico, eu saúdo você por todos os desafios que enfrenta e enfrentará até o fim de seus dias nessa guerra invencível. E a você, que não é músico, creio que você não é diferente nessa busca. No fim, todos nós, cada um em sua área, buscamos a nossa maneira de estarmos perfectus, completos.
E, assim, caminhamos e evoluímos. Crescemos e nos desenvolvemos. No fim, não há nada mais docemente perfeito do que a amarga imperfeição.
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