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Esquizo Heavy Afetivo: um conto sobre mascotes imaginários do metal

Por Nino Lee
Postado em 03 de agosto de 2022

O conto que vocês lerão agora faz parte do projeto de Livro e Blog de Nino Lee Rocker, antigo colaborador aqui do Whiplash.Net.

Voce pode acessar o blog pelo link:
https://amorloucoblog.wordpress.com/

Durante o isolamento no período de pandemia, Nino começou a se aventurar em uma antiga ideia engavetada, arriscar-se na literatura dos contos de ficção flertando com vários segmentos da cultura pop da qual possui conhecimento.

"Esquizo Heavy Afetivo" conta a vida de um garoto atormentado por problemas psicológicos graves que transformam seus amigos imaginários, clássicos mascotes das bandas de Heavy Metal em seres reais e sanguinários, vale a lida.

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O livro ainda em fase de produção levará o título de "Antologia Dos Ki-Sucos Elétricos", enquanto ele não vem, confira uma boa parte dele no que tem sido publicado pelo blog.

ESQUIZO HEAVY AFETIVA

Até hoje ninguém conseguiu explicar ou entender direito a sucessão de fatos bizarros e sinistros que aconteceram durante um período da década de 80, mais precisamente na cidade de Santo Antônio de Alcântara, no interior de Santa Catarina. Até então uma pequena e pacata localidade rural, distante 32 quilômetros da capital daquele estado. Tudo que se sabe é que após a chegada daquele garoto nada mais foi o mesmo naquele lugar.

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Pedro Aguiar tinha 16 anos na época e por decisão da família saiu de São Paulo para morar com os avós, em função do péssimo desempenho escolar e o envolvimento com amigos suspeitos. O quê, segundo sua mãe e seu pai, estaria colocando o garoto em uma situação de risco e possível envolvimento com drogas. Pedrinho, como era chamado, relutou muito contra a ideia e manifestou uma agressividade até então nunca presenciada pelos pais, embora eles já tivessem percebido haver algo diferente no comportamento do jovem, incomum para os garotos da sua idade. O isolamento do jovem preocupava a todos e algumas atitudes muito estranhas também.

O fascínio do garoto era por desenho e música. Uma música, aliás, que seus pais não compreendiam e os deixava nervosos. Dentro do seu quarto, Pedrinho desenhava monstros, mas não monstros imaginários. Os dele, de certa forma, existiam. Mas, vinham das capas de seus discos favoritos. Criava histórias nas folhas dos cadernos, muitas vezes conversava com aquilo que desenhava e ninguém via nisso anormalidade. Para todos em sua volta parecia ser algo natural da idade, pois ele recém havia saído da infância. Uma infância onde sempre conversou com seus bonecos, como qualquer criança. E quem nunca fez isso? Os bonecos tinham nomes como Eddie, Not man, Korgull, Man With the Iron Mask, Sargent D, A Bruxa, Murray, Snaggletooth, Vic Rattlehead, Fiend Skull, entre outros.

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Uma certa noite, Rafael Aguiar, pai de Pedrinho, resolveu bater na porta do quarto do filho. Estava trancada e lá dentro, mais uma vez, ouviu o que parecia ser o filho conversando euforicamente com alguém. E resolveu intervir.

– Pedro, desce pra jantar. Espero que já tenha feito seus deveres da escola, não nos faça esperar novamente. O que há com você garoto? – gritou o pai.

– Não, não, não façam nada com ele, não o machuquem, não precisa, tenho tudo sob controle. – respondeu Pedro.

Intrigado, o pai perguntava a si mesmo se o garoto estava batendo bem das bolas, se devia ou não preocupar-se um pouco mais com isso. Porém, deixou passar. Uma semana depois receberam uma ligação da escola de Pedro. O informe era de que precisavam conversar sobre o filho deles.

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O encontro com a diretora desnudou a total falta de interesse do garoto pelas aulas e seu distanciamento dos colegas. Segundo a diretora, muitas vezes Pedrinho era pego falando sozinho. Não apenas falando sozinho, mas trocando olhares com um alguém invisível em sua companhia. Suas conversas transpareciam não apenas um diálogo com um alguém especifico, mas com muitos amigos invisíveis. E tinha sempre seu caderno na mão, onde não haviam anotações das aulas, mas apenas desenhos e mais desenhos de tudo lhe vinha a mente. E eram rabiscos sombrios.

-Senhor e Senhora Aguiar, já pensaram em levar seu filho a um profissional? Ele pode estar precisando de ajuda nesse momento. Já presenciei muitos casos de alunos que tiveram problemas psicológicos sérios por não conseguirem se adaptar a essa nova etapa de suas vidas, à transição do mundo infantil para o começo da adolescência, a porta de entrada do mundo adulto, quando as coisas começam a ficar bem mais sérias. – ponderou a diretora.

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– Vamos ficar de olho, dona Elisabeth, mas não queremos nos precipitar. Ainda achamos que o comportamento de nosso filho é natural para a idade dele. Ele sempre foi um menino sozinho, nunca teve amigos. Pode ser apenas uma forma dele lidar com o seu isolamento, mas vamos ficar atentos e tomar a devida providência se isso se agravar. – rebateram os pais de Pedro.

– Ele tem faltado as aulas, vocês sabiam? – observou a professora.

– Não, isso é novidade para nós. Eu e minha esposa vamos conversar sobre isso e ter uma boa conversa com ele. – respondeu Rafael, apreensivo.

Ao invés de terem uma conversa séria com o filho, os pais optaram por uma tática diferente: começariam a seguir os passos do filho. Se o que a diretora disse fosse verdade e o comportamento persistisse, eles queriam pegá-lo em fragrante, saber o quê e com quem poderia estar saindo. Nos dias seguintes Pedrinho foi seguido pelos pais. Na primeira semana, por dois dias, tudo transcorreu normalmente, com o garoto seguindo direto de casa para a escola. Entretanto, no terceiro dia, Pedrinho tomou outra direção e entrou em uma casa, de um bairro periférico, não muito longe de onde moravam. O alerta vermelho soou na cabeça dos pais, mas precisavam agir com calma.

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Tomando cuidado para não serem vistos, rodearam a casa e se aproximaram de uma das janelas. Estavam quase invisíveis pelo fato de haver uma grande roseira na frente da janela, o que permitiu espiarem dentro do local. Lá, estavam Pedro e mais três garotos. Um deles enrolava um baseado e os outros dois pediam para colocar um som.

– Vamos ouvir um Venom gurizada, que tal "Black Metal"? – perguntou um deles.

– Acho que "Don’t break the oath"? – sugeriu o outro.

– "Kill em’all" e "Show no Mercy"!!!!. Quando vocês vão entender que o Venom não vai conseguir superá-los? – gritou o que tentava fechar o baseado, mas todo atrapalhado. Porém, o Venom venceu naquele momento. Não com "Black Metal", mas com "At War With The Satan".

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Olhando da rua e desavisados com o que viria em alto volume os pais de Pedro tiveram os tímpanos quase estourados diante de tanto ruído. Nunca haviam escutado nada parecido. – Meu bem, que tipo de música é essa? Aliás, isso sequer pode ser chamado de música, bradou Rafael à esposa. – Isso mais parece coisa do demônio. – respondeu a esposa.

O casal aguardava que a música acabasse nos normais 3 minutos e pouco de sempre, no formato de tempo que eles estavam acostumados por tudo que ouviram em suas vidas tocando no rádio. Assim, no intervalo entre uma canção e outra, poderiam anunciar sua chegada. Mas aquela música não tinha fim. Percebendo que não haveria outra forma de poderem interromper, bateram forte na porta, tentando fazer com que o estrondo fosse mais alto que o barulho ensurdecedor lá de dentro. E conseguiram.

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O som foi desligado, o baseado escondido e o bom ar acionado, impregnando o ambiente com um cheiro de flor de jasmim, o suficiente para causar náuseas em Pedrinho e os amigos. Logo que a porta se abriu e os dois entraram como a Polícia em local de ocorrência, os garotos sequer tiveram tempo para pensar, eram ingênuos. Se fosse a polícia os três estariam agora em uma cela, aguardando a presença dos pais.

– Pedro, o que você está fazendo nesse lugar, quem são essas pessoas? – indagaram nervosamente os pais.

– Mãe? Pai? O que vocês estão fazendo aqui – questionou Pedro, tremendo como vara curta.

– Saia daqui já, vamos ter uma conversa. – frisou a mãe.

Os outros três meninos estavam mudos e não esboçavam reação alguma.

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– Mãe, eles são os únicos amigos que tenho, são os únicos que me entendem. A coisa do baseado eu nunca faço, mas não quero discriminá-los, a vida deles é uma merda, qual é o problema?- justificou Pedro, com um pouco mais de coragem e dando início a uma conversa que mudaria o rumo de sua vida. Mas pra pior.

– Você não quer mais estudar, passa suas horas vagas trancado no quarto com seus amiguinhos imaginários, com suas músicas horrorosas. Você por acaso não pensa que tem um futuro pra buscar? Você acha que o mundo não vai cobrar de você uma posição diante dele? Você sabe o quanto a vida é difícil lá fora! – esbravejou seu Pai.

– Snaggletooth, não, não machuque meus pais, te acalma que eu resolvo! – suplicoui Pedro, falando ao vazio e diante da total incredulidade de seus pais.

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Afinal, com quem ele estava falando? Os pais se olharam preocupados, aquilo não podia ser normal. Já em casa, Rafael e a esposa conversaram e concluíram por uma decisão. Ligou para seus pais, que moravam no interior de Santa Catarina. Contou sobre problemas que o neto enfrentava e que via na troca de ares uma chance de melhorar a situação. Os avós foram compreensivos, pois amavam o neto e acabaram aceitando que ele passasse um tempo com eles.

– Fique tranquilo filho, aqui nós colocamos ele nos eixos. Nada como uma boa temporada com um galinheiro, um curral, uma plantação de batatas, aipins, milhos, a boa e velha charrete e a companhia dos avós caipiras. – disse o avô, procurando ser bem humorado para tranquilizar o filho. Porém, eles não sabiam o que estava por vir.

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Pedro não aceitou a ideia de jeito nenhum. Seus tempos de brincar de Sitio do Pica Pau Amarelo na imensa fazendo dos avós era coisa do passado. Agora seus interesses eram outros. Ele agora era um headbanger, um alter ego que se revelava aos poucos, escondido de seus pais. Nas idas à Galeria do Rock com seus amigos, nas revistas especializadas em heavy metal, na roda de pessoas diferentes do mundo normal, naquelas descobertas que despertavam nele uma adrenalina que nunca havia sentido antes. Nos riffs e no peso das músicas, na selvageria das batidas, no manusear dos discos, nas capas assustadoras, porém geniais aos seus olhos. Era um mundo novo que se descortinava e ele estava entregue a toda aquela sensação.

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Junto daquela turma ele não se sentia excluído, ele era alguém. O complicado era ter a coragem de assumir seu novo eu diante dos pais, diante dos colegas de aula e dos vizinhos. Diante de todos esses ele ainda mantinha a aparência do garoto pacato, quieto, obediente e solitário. Mas, tudo isso ia mudar. E o momento dessa mudança estava bem perto, pela chegada da incontrolável rebeldia e a insatisfação.

Entretanto, algo pior também seria acionado. Pedro, sem saber e sem compreender, começava a manifestar uma difícil e irreversível patologia: a esquizofrenia paranoide. Situação a qual conviveria por toda a sua vida, agravada por um outro aspecto: o sobrenatural, ao menos dentro de sua mente. As conversas que tinha com os seres imaginários que desenhava e curtia não eram pura imaginação fértil juvenil. As vozes eram reais e muito além do normal. No princípio, o que via nos desenhos que criava ganhava vida diante de seus olhos. Os traços que construía no formato de histórias em quadrinhos se movimentavam, se comunicavam. Era o criador de todos eles nas situações que inventava no papel. Era como um Deus para eles. Estavam ali por ele e lhe deviam obediência e proteção total. E não entendiam o conceito de pai, mãe, avós, família. Não. Apenas compreendiam uma coisa: defendê-lo de tudo que o aborrecesse.

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A natureza pessoal de cada um dos personagens, seus perfis psicológicos, suas índoles, suas agressividades estéticas, suas condutas, eram oriundas de históricos violentos. Eles representavam a agressividade contida em cada disco que representavam como um símbolo, como uma marca. Era o que seus criadores tinham em mente quando os materializaram, para figurarem em capas de discos de bandas agressivas que os tornariam mascotes e, em seguida, repassados para a mente de milhares e milhares de outras pessoas. Que os usariam como servos se tivessem imaginação suficiente para levá-los a outras dimensões que não fossem as de sempre. Presos e estáticos nas capas, eles queriam ganhar e provar a vida e a e escuridão.

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Pedro não teve alternativas para contrapor os pais. Ele não tinha estrutura e argumentos sólidos para fugir de uma decisão que entendia precipitada. Deveria ter sido encaminhado a um especialista, havia indícios de que algo pudesse estar perturbando sua mente. Contudo, isso não foi levado tão a sério pelos pais perante a suposição de que uma vida mais calma na presença dos avós fosse ajudá-lo com o que quer que estivesse passando. E não poderiam estar mais enganados. Eddie, Not man, Korgull, Man With the Iron Mask, Sargent D, A Bruxa, Murray, Snaggletooth, Vic Rattlehead, Fiend Skull se tornariam o pesadelo de Santo Antonio de Alcântara, aquela pacata cidade nunca mais seria a mesma depois que Pedro e seus monstros desembarcaram por lá.

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Vô Rudi e Vó Mila foram buscá-lo na rodoviária de Florianópolis. Não viam o neto há 7 anos e todas as lembranças que tinham era de uma criança feliz em meio as coisas da fazenda, principalmente nos passeios de charrete, sua diversão predileta. O menino havia crescido e quase não o reconheceram. Pedrinho ainda se lembrava dos avós. Abraçaram-se, mas a emoção dos avós não era a mesma do neto. O menino reagiu friamente com um simples olá vovô, olá vovó, como arisco a carinhos e intimidade. Sentindo-se angustiado, Pedrinho viu a camionete dos avós rodar e um tempo depois entrar nas ruas de Santo Antônio de Alcântara. O desligar do motor o tirou da solidão mental e o colocou diante do casarão principal do sítio. Nada parecia ser mais entediante que aquilo. Havia sido condenado e chegado a prisão onde logo mais seria encarcerado, restando a latrina podre e uma cama fria de pedra. "Não precisa ser tanto assim, você vai se acostumar e se sentir bem", dizia a si mesmo, tentando amenizar o baque em sua mente.

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Era como se alguma outra voz tentasse falar dentro dele, uma voz que queria salvá-lo. Uma voz que ainda parecia ser racional e lúcida, um dos últimos momentos em que ela se manifestaria antes que a esquizofrenia o atropelasse. Seu Rudimar, avô de Pedro, pediu para que Miguel, um dos ajudantes da fazenda, levasse as malas do garoto para dento e que a partir daquele momento ficasse a disposição do menino para o que ele precisasse. Eles confiavam em Miguel, mas Miguel, muito além de sua aparência amistosa, não era alguém em que se pudesse confiar. E logo pagaria muito caro por sua maldade interior. Quando Pedro saiu de São Paulo, suas férias estavam prestes a começar e ao chegar na casa dos avós o fim do ano letivo já havia liberado todos os garotos de seus compromissos com a educação. Todos estavam de férias.

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O quarto de Pedro era bem rústico, adornado por móveis antigos, um crucifixo acima da cama. Sem seus pôsteres nas paredes, sem bagunça. Nada similar ao de seu próprio lar – "Acalme-se, vamos dar um jeito nisso", falaram as vozes em sua cabeça, num tom mais alto, real e gutural. Pedro assustou-se, pareciam as vozes de seus velhos amigos. Mas pensou como isso era possível se nem estava desenhando? Colocou seu toca discos em formato de maletinha da Phillips e alguns de seus discos prediletos sobre uma cômoda e resolveu arrumar os cadernos de desenhos no dia seguinte. Estava exausto. Dormiu tranquilo na primeira noite, estava realmente exausto da longa viagem de ônibus e de toda a situação que o levou até ali. Mal sabia que seria uma das últimas noites em que poderia desfrutar do privilégio de um belo e calmo sono.

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No dia seguinte levantou cedo e tomou café com os avós numa mesa enorme, cheia de coisas que em sua infância ele adorava, quando a vó fazia a mesa farta, com rosquinhas, geleias de todos os tipos, os pães de casa, as cucas, os frios, o leite recém tirado da vaca… mas nada naquele momento o animava. Não tinha fome, não tinha vontade de comer, não sentia desejo por nada, tinha náuseas. Não era mais o mesmo. Tentava pensar em alguma forma de não desapontar os avós, que ainda o viam como aquela criança tão feliz do passado. Mas a verdade é que aquela criança não existia mais, era um sentimento confuso e difícil de lidar diante de pessoas tão amáveis, que tentavam fazer de tudo o possível para deixá-lo a vontade e feliz. E o amor parecia ter se ausentado de dentro dele.

Seu Rudimar e dona Camila o observavam com calma e cuidado, sem deixar que traços de preocupação fossem revelados. Aos poucos teriam de encontrar palavras para criar uma comunicação saudável e aberta com o menino.

-Pedrinho, vá dar uma caminhada pela fazenda. Eu e sua vó temos um problema para resolver na cidade, fique à vontade meu querido, a fazenda mudou muito desde que você a viu pela última vez. Agora temos até um lago com uma ponte de madeira que leva a um belo quiosque, eu e sua vó sempre vamos até lá para apreciarmos a paisagem, é um lugar lindo meu filho. O Miguel irá acompanhá-lo, voltamos logo. – disse o avô.

Pedro aceitou a sugestão. Precisava mesmo arejar a cabeça, estava se sentindo esquisito, como um peixe fora d’agua. – "Esse lugar é horrível", sussurrou uma voz enquanto caminhava ao quarto para vestir algo mais confortável do que aquele pijama de bolinha. No trajeto, sentiu o cheiro forte de algo podre, um odor de carniça. E percebeu que havia alguém nas suas costas. Quase caiu para trás quando se deparou com uma sinistra e conhecida figura em seu quarto, perto dele. Aquilo não podia ser verdade, Eddie não podia estar ali. Estava ainda dormindo, estava num pesadelo. Mas como poderia ser um pesadelo se ele adorava aquele monstro?

Um misto de sensações confusas passou por sua cabeça. Por mais que nunca o tivesse visto de verdade, já havia apreciado aquela imagem milhares de vezes nas capas dos discos do Iron Maiden. Já havia criado centenas de histórias com aquele monstro, um monstro que em seus contos imaginários nunca significou medo a ele, pelo contrário. Eddie servia para amedrontar os outros, qualquer um que lhe fizesse mal, como ele poderia agora temer algo que nunca o havia prejudicado? O cavernoso Eddie também era parte de sua própria criação, como um Frankenstein. O pertencia, fora feito pra ele. Com certeza estava enlouquecendo, mas isso era ruim? O Eddie que estava ali era o Eddie de "Killers", com aquele cabelo gigante, arrepiado, penteado no meio, aquelas roupas de couro apertadas, aquela pele horripilante como a decomposição da morte, um sorriso maluco no rosto fétido e uma machadinha nas mãos.

– Não se preocupe Pedro, estou aqui para te proteger, eu e os outros. – disse Eddie.

– Mas me proteger do quê? Não tem nada perigoso aqui. – argumentou Pedro.

-Tem sim, agora que escute porque vou te falar um pouco de nós, de quem está aqui contigo, disse Eddie, num timbre de voz soturno e cavernoso que fez o garoto sentir um calafrio na espinha.

– Vic Rattlehead tem um dom e você não nos conhece tanto quanto pensa. Ele foi gerado a partir de um provérbio japonês: "Não olhe para o mal, não escute o mal, não pronuncie o mal". No início ele fez todas essas coisas e foi punido eternamente, por isso tem os olhos blindados, tampões nos ouvidos e a boca costurada, mas ele não fará mal a quem não exalar o mal. Vic pressentiu que o mal está muito perto de você agora e todos agiremos no momento certo, ninguém a não ser você poderá nos ver, você sempre quis isso e seu desejo lhe foi concedido.

– Snaggletooth nasceu de um javali. Diante de sua presa não há o que possamos fazer, seu instinto é primitivo, ele sofreu uma mutação genética, suas origens não eram carnívoras, eram como porcos com verrugas enormes vivendo em tocas. Mas foram caçados a vida toda, perfurados e mortos por flechas cruéis e Snaggletooth é o símbolo da vingança de sua antiga raça. Sugiro que não tente falar com ele pois não o entenderá, sua voz é um grunhido. Pedro, não somos os seus desenhos aqui, somos feras, nós estamos aqui porque você pensa em nós, nós somos o reflexo do que você pensa.

-A Bruxa é a representação do medo humano, quem a ver jamais esquecerá, ela também não falará com você, ela nem precisa disso para cumprir o que foi criada para fazer. Ela traz em si toda a história de seus ancestrais que cultuavam a figura obscena em todos aqueles antigos rituais pagãos em meio as mais escuras florestas amaldiçoadas por invocações blasfemas. O poder que ela tem é o da escuridão, ela está aqui por aqueles que mereçam vê-la.

-Murray Maor também provém de uma antiga lenda: – Muito antes do alvorecer do homem, o mundo estava habitado por dois grupos: os Malcovians e os Cyclops. Quando o governante Malcovian tentou assassinar seus filhos, com medo de uma falsa profecia, um deles escapou: Murralsee. Sua mãe lhe deu uma poção adormecida para aguardar tudo e ele acordou quase um trilhão de anos depois. O sono o transformou no ‘monstro’ que o conhecemos hoje.

-Murray é uma fera selvagem com feições de um cavalo, cujo olhar é faminto de sangue. Ele é assustador, uma criatura mitológica, mas guarda muitas histórias que as vezes divide com todos nós. Pedro, vou voltar a repetir, nós não somos mais os seus desenhos, mas você nos trouxe aqui, estamos na sua mente e estamos aqui por você. Você não está sozinho e espero que isso lhe conforte, por mais estranho e surreal que pareça.

-Violent Mind é um demônio que fugiu do inferno e se você não o tivesse criado em sua imaginação, jamais gostaria de tê-lo em seu encalce. Mas agora, aqui, ele serve a você, espero que não se assuste demais, afinal você o conhece muito bem, sabe que ele tem seu cérebro exposto, sabe que ele é apenas uma cabeça flutuante e isso apavora. Creia-me, dentro de seu cérebro exposto há um verdadeiro inferno de Dante, uma sucessão ininterrupta de imagens apavorantes, mas, ele também está aqui por você, há motivos.

-Também devo alertá-lo sobre Not Man. Ele possui distúrbios mentais, pois têm forma humana. É o legítimo caso de filho de lar destroçado, pai abusivo, mãe imoral. Viveu toda a sua vida nas ruas entre gangues e mau elementos, tem transtornos de humor. A violência é sua natureza, não queira vê-lo comprar uma briga, pois alguém sairá seriamente ferido. Estou alertando você para que tenha estômago forte.

-Já o Mad Butcher não é muito diferente do Not Man. Possui graves transtornos mentais, é um psicopata assassino e cruel, um açougueiro que adora destroçar carne humana. Um gordo escroto e perverso. A verdade é que ninguém, exceto você, pode confiar em nós. Se você nos dá vida damos a vida por você.

-Falar do Korgul é falar de uma alma torturada pelas atrocidades das guerras. No começo de sua mutação era um soldado forjado em ferro e fogo, sua face era uma máscara de aço cavernosa que ocultava o que antes pareceu ser um humano. Um selvagem de cabelos longos amaldiçoado pelo tempo de violência. Sempre com uma poderosa metralhadora nas mãos, ele costumava ser chamado de exterminador, mas com o passar do tempo acabou sendo transformado em algo mais mecânico do que sua forma anterior. E suas formas modificam-se a cada nova aparição, por vezes como uma criatura em uma experiência científica ou por outras como um colossal tanque de guerra assassino. Nossa roda de amigos não é nada comum meu rapaz, a sua também não era.

-Man With the Iron Mask é a representação da própria loucura humana, ele é o que mais se aproxima de sua vida real. A raça humana pode aparentar uma aparência que nós não possuímos, mas isso não os impede de que sejam ainda mais cruéis, insanos e perversos do que nós.

– Quanto ao Sargent D, é outro cruel veterano de guerra. Sempre com seu inseparável charuto na boca, mas é um morto vivo que nunca retornou dos horrores de seu inferno. Sua mente é povoada pelas consequências de suas ordens impiedosas e nunca se arrependerá disso, é a mais pura manifestação da neurose de guerra. Entre nós é ele quem dá as ordens quando somos obrigados a entrarmos juntos em um confronto. E, te afirmo, isso pode acontecer aqui nessa cidade, por que exatamente aqui, nesse lugar pacato, é onde algo realmente sinistro pode acontecer sem que ninguém desconfie. E eu peço para que você fique de olhos bem abertos e atentos aos sinais, porque nós já vimos esses sinais.

-O Chaly é um demônio alado, um crânio do inferno com asas. Ele é basicamente isso e é muito difícil atacá-lo. É como um morcego veloz. Acho que você possa imaginar como ele seja, mas nunca conseguiu ter uma real ideia disso através de seus desenhos, pois ele é muito pior.

-Fiend Skull é um ser mascarado, é impossível saber o que se esconde por trás de sua vestimenta, sua maquiagem e sua máscara. Sua aparição foi inspirada no misterioso vilão de Crimson Ghost, um filme de muitos e muitos anos atrás. É como uma recriação bizarra do ceifador.

-Painkiller também está entre nós. Um trecho de uma canção é o suficiente para descrevê-lo: "Mais rápido do que uma bala, um grito apavorante, enfurecido e cheio de raiva, ele é metade homem, metade máquina", nem é preciso dizer mais.

E os bodes aparecerão e ficarão sempre a espreita, por perto. Quando os sacrifícios acontecerem eles se levantarão, creio que você sabe quem sejam. E Pedro, fique alerta. Algo vai acontecer – reforçou Eddie, após explicar tudo sobre eles.

Pedro estava entre atônito e eufórico, não sabendo descrever exatamente o que se passava em sua mente e no coração, que batia acelerado.

– Você está falando do quê Eddie the Head? Vocês não são um sonho? Uma alucinação? O que está acontecendo com a minha cabeça? – perguntou o garoto.

– Não, não somos alucinações, nós estamos vivos. VocÊ nos trouxe aqui, você nos libertou. – respondeu o monstro maideano. – Você está começando a sofrer de uma doença invisível, está em um choque de realidade, está entre o bem e o mal. A vida nos faz assim, os outros nos fazem assim, carregamos uma maldade milenar como se tivéssemos sido contaminados por algo que foi colocado pela humanidade e pela distorção da verdade. É o nascimento e o império brutal e devastador do desamor, mas você não é a doença, você ainda é você, o Pedro que conhecemos, o Pedro que você conhece. E nós estamos aqui para ajudá-lo com algo que será real e não uma alucinação, algo que já existe nessa cidade há anos. Nós não podemos mostrar os sinais a você, isso é você quem precisa encontrar. E se descobrir estará em perigo e então faremos nossa parte. – completou Eddie.

Na sua inocência, Pedro não havia percebido os olhares furtivos de Miguel, o empregado dos avós, ao acompanhá-lo depois em direção ao deck do lago. Eram impuros, suspeitos, denotando uma anormalidade naquela pessoa, alguém em quem não se podia confiar. Aos 50 anos, ele aparentava austeridade e rispidez. Era um homem corpulento e de poucas palavras, trabalhava de forma fixa com os avós do garoto há pouco tempo, mas ganhou sua confiança pelos serviços que fez de forma esporádico e ao longo de anos na velha fazenda, a tal ponto de ser contratado. Miguel conhecia de suas funções, mas o profissional prestativo guardava em seu íntimo desejos sombrios, segredos de sua criação familiar que ele lutava para não expôr. Ocultava demônios e tentava lutar para não o dominarem, pois um acontecimento do passado o seguia assombrando. Um fato adormecido, mas tatuado nele.

Pedro e Miguel caminharam até o deck e depois a uma plantação. Reinava entre eles um silêncio, que só foi rompido quando Pedro fez uma observação. – Gosto de milharais, me lembram alienígenas.

-Tem muito por aqui, você quer entrar para ver? perguntou Miguel.

Pedro sentiu algo de ruim na entonação de voz do homem e no ato pensou sobre os avisos e alertas de seus amigos nem tão imaginários.

Decidido, Miguel tomou a direção do interior da vasta plantação, sem esperar o consentimento de Pedro. Era como se um portal tivesse sido aberto e Miguel, diante de uma porta gigantesca, pergunta-se se queria entrar. E algo perturbava o garoto naquele gesto.

-Ele quer machucá-lo, rosnou Eddie imediatamente em seu ouvido, à espreita com todos os seus amigos ao redor. Se você morrer, Pedro, nós também morreremos e não podemos deixar isso acontecer.

Os receios de Pedro e dos monstros tinham razão. Num ato de descontrole, Miguel correu em direção ao menino e o segurou de forme insana pelas mãos, puxando-o para dentro da plantação.

-Venha cá seu mimadinho do papai, vou te mostrar onde o teu disco voador caiu, eu vi, sei onde tá, vai gostar – esbravejou Miguel.

– Me solta seu verme, gritou Pedro angustiado.

Com toda força possível o menino soltou-se das garras do seu predador e correu para fora da plantação, adentrando o mato e seguindo seu instinto de sobrevivência, rasgando sua camiseta ao enroscar-se em alguns galhos. E era seguido de perto por Miguel, que havia escorregado e caído na tentativa de agarrá-lo, mas logo havia se recuperado e corrido atrás do garoto.

-Desculpe, não quero fazer mal a você menino, espera. Eu tenho problemas, eu tenho problemas … perdi o controle, por favor volte, vamos conversar, por favor, não conte a seus avós – gritava um esbaforido Miguel, em tom de súplica.

Pedro permaneceu escondido e quieto, segurando a respiração, enquanto Miguel afastou-se em direção a saída da fazenda. Somente ao anoitecer voltou para a casa, deparando-se com seus avós desesperados.

-Onde você estava Pedrinho, pelo amor de Deus! Você nos assustou, já estávamos a ponto de chamar socorro. E onde está o Miguel?

-Eu não sei, respondeu o menino, correndo para dentro da casa e trancafiando-se em seu quarto. Angustiado e ainda muito nervoso, explodiu o verbo contra os monstros.

-Onde vocês estavam? Vocês por acaso não juraram me proteger? berrou Pedro, falando sozinho.

Um silêncio sufocante permaneceu no ar por alguns minutos, até ser rompido por batidas em sua porta.

-Pedrinho, meu amor, queremos conversar com você.

-Depois, me dêem um tempo – pediu o garoto, ainda assustado. Nisso, uma voz ressoou ao fundo do quarto, como se houvessem muitas falando ao mesmo tempo.

-Nós daremos um jeito nisso!

Um pouco mais calmo, Pedro decidiu abrir a porta, mas sem saber direito o que dizer aos avós. Sentou-se à mesa com eles, calado. Ainda tremia, o coração acelerado, e não sabia por onde começar.

– Ele fez algo com você meu filho, o Miguel? perguntou o avô, com nítida ansiedade.

A VERDADE DE RAMON

Há cerca de dois quilômetros da fazenda Miguel estava trancado em seu casebre, atordoado pelo que havia feito. Havia lutado muito contra seus demônios durantes os últimos anos, contra fantasmas de seu passado. E pensava ter se livrado de tudo o que cometeu há muito tempo. Todo o mal que causou e ocultou. Mas, tudo havia voltado contra ele novamente. Cometeu um erro, um erro grave, escolheu a vítima e a ocasião errada em cedeu a um impulso primitivo, como se toda sua violência estivesse represada em uma barragem que estupidamente estourou a toa.

Seus patrões o conheciam e sabiam que só ele estivera com o menino. Sua presença na cidade era livre de suspeitas desde que havia chegado, fugindo de uma prisão a milhares de quilômetros dali. E finalmente sentia-se livre, tentando recomeçar sua vida sem cometer o indizível de seus atos passados. Fugir agora era a única alternativa, pois ser chamado a um depoimento na delegacia certamente levantaria suspeitas que revelariam sua verdadeira identidade: Miguel era na verdade Ramon Almeida, um condenado a prisão perpétua por estupro, assassinato e ocultação de cadáver. Um homem que teve a sorte ou a infelicidade de escapar durante um motim em um presídio no norte do país, pouco antes de ser transferido para a segurança máxima.

Quando Ramon desembarcou em Santo Antônio de Alcântara decidiu ficar por ali. A cidade pacata parecia um bom lugar para recomeçar. Procurou bicos para fazer e como um andarilho contador de histórias tristes sobre sua vida, logo ganhou a solidariedade dos moradores e o apoio da igreja local. Na igreja sofreu uma transformação radical. Estava irreconhecível a quem um dia o conheceu, afundou-se nas escrituras e desenvolveu um fascínio obsessivo pelo livro de Genesis, a queda do homem, a expulsão do Jardim do Éden e toda trajetória da humanidade caída em pecado. Passou a buscar por sua salvação ou acreditava que pudesse ter uma, apesar de tudo. Sempre que seus impulsos de carne o visitavam, chicoteava as costas no escuro do quarto ou prostrava-se de joelhos clamando como Davi. Jurava a si mesmo jamais ter de passar novamente por tudo que passou no cárcere.

Mas ali estava ele novamente, diante de sua queda. A aflição que o consumia sequer o fazia ter coragem de clamar a Deus por piedade. Nervoso, começou a arrumar a mochila para abandonar o local. Foi interrompido por um barulho ensurdecedor, que retumbou pela casa e fez as luzes se apagarem. Lá fora e dentro, vozes começaram a ressoar por todos os cantos. E eram vozes assustadoras, que não pareciam ser desse mundo.

– É melhor correr para as montanhas, está com medo do escuro? -Você nasceu para perder, Deus nunca esteve do seu lado, que tal ser assassinado pela morte? – Bem vindo ao inferno, era o que diziam a ele. E as vozes cresciam em altura. -Pergunte o que é isso a sua frente, todos esses vultos negros que agora apontam para você? -Bem vindo a casa da loucura.

Ramon estava em desespero diante do que ouvia no escuro. Subitamente, uma luz se acendeu, iluminando os traços de algo que estava ali à sua frente. Eram mãos esqueléticas cobertas por uma pele escurecida. Um facho de luz tornou visível a figura monstruosa de Eddie, uma espécie de esqueleto vivo com cabelos longos desgrenhados e com algo brilhando dentro da cavidade dos olhos.

-Seja rápido ou morra! Dizia a assustadora presença a Ramon, escancarando os dentes como em um sorriso demencial.

-Eu não fiz nada, o que querem de mim? O que são vocês? – Exclamou o homem.

-Somos o seu pesadelo, a sua maldição! Foi a reposta que obteve.

Agora eram várias as vozes sinistras falando ao mesmo tempo e uma sucessão de situações começou a acontecer diante dele, mas não podia ser real. O monstro se apagou e o vislumbre de um vulto próximo a ele fez sua espinha arrepiar-se. Era uma bruxa, o que o estremeceu de pavor. A imagem sumiu e logo outra surgiu. Esquelética, com olhos blindados, dentes que pareciam estar costurados por fios de aço e com algo preso por correntes aos seus ouvidos.

-Me deixem em paz por favor, eu sou inocente. –suplicou um apavorado Ramon.

-Você sabe as sombras que esconde. Aceite a nossa tortura de bom grado que a morte te será rápida. – vociferou Eddie.

Sem saber para onde ir e sentindo seu próprio mijo escorrer pelas pernas, Ramon virou-se para o lado esquerdo. O suficiente para uma cabeça de porco selvagem e metálica, com longos dentes e presas alojadas num capacete, rosnar para ele. O som emitido pela criatura era rouco e animalesco, mas também logo desapareceu. Deu lugar a aparição de uma espécie de cabeça de um boi com chifres e olhos vermelhos, mãos que possuíam apenas dois dedos. Pensou se seria aquilo o próprio diabo em carne e osso? No chão, roçava-se nele e mexia-se freneticamente uma figura acuada, presa em uma camisa de força, com uma máscara de ferro em sua cabeça.

O rol de horrores não parava e Ramon começou a gritar desesperado. Dessa vez, surgiu a sua frente uma figura com a forma de um militar, capacete de guerra, esquelética e de sorriso sarcástico. Era um homem gordo e escroto que vinha em sua direção, algo que ele só poderia descrever como a própria insanidade.

-Certo pessoal, não mostrem misericórdia, disse o gordo, decretando o veredito, o começo do ato final para Ramon. Que começou a ser esfolado vivo ali, aos berros, chamando por socorro, mas sem ninguém para ajudá-lo.

Na escuridão, o ex-fugitivo sentia a carne sendo dilacerada, seu sangue quente escorrendo por mãos, braços, pernas e boca. E não tinha mais forças, mais voz para que pudesse gritar. Machadadas amputaram seus membros, numa dor lancinante. A última coisa que seus olhos viram foi a presença de dois bodes erguendo-se apoiados apenas nas duas patas traseiras. Depois, apenas a escuridão aconteceu. Não havia sobrado nada de Ramon Almeida.

Já passava da meia-noite quando Pedro decidiu falar com os avós. Tomou coragem e contou a verdade, que Miguel o havia tentado arrastar para o milharal, mas ele conseguiu escapar e se escondeu, até se sentir seguro para voltar. Em choque, os avós pegaram o telefone e ligaram para a delegacia de Polícia, relatando o episódio e ouvindo que uma ordem de busca e apreensão de Miguel seria decretada. Pedro havia voltado ao quarto, a tempo de deparar-se com algo surreal. As capas dos discos que havia trazido estavam espalhadas pelo chão, sem os mascotes. Os olhos do garoto escureceram-se por breves instantes, tempo que permitiu que olhasse novamente para elas, mas dessa vez vendo os personagens sinistros.

Alguns minutos depois o carro da Polícia estacionou na porta do casarão antigo da fazenda. Tinha as sirenes ligadas e dois policiais se dirigiram aos avós de Pedro, que já os esperavam na porta.

-Boa noite seu Rudi. Não trazemos boas notícias. Encontramos o Miguel brutalmente assassinado e esquartejado em sua casa. Tá uma sanguera absurda lá, nunca vimos nada igual nessa vida. – relatou um dos policiais.

Um pensamento ruim passou pela cabeça de Rudi. Teria o neto algo a ver com aquilo?Num segundo, lembrou dos fatos que haviam feito o menino vir para a casa deles. Havia problemas, problemas comportamentais e possivelmente mentais com o garoto. Mas não, Pedro jamais seria capaz de algo tão brutal e o avô culpou-se por pensar no neto como um assassino.

– E seu Rudi, descobrimos algo do qual jamais imaginaríamos. Pouco antes de recebermos sua ligação um sujeito muito bizarro, gordo e que parecia sofrer de algum retardo mental deixou na porta da delegacia um envelope contendo informações graves. Depois saiu correndo. Miguel, diziam os papéis, na verdade se chamava Ramon Almeida. Um fugitivo da lei condenado a prisão perpétua por estupro e assassinato. Ele tinha fugido da prisão há 4 anos e desde então estava na lista dos criminosos mais procurados do norte do Pais. Fomos então a casa dele para prendê-lo, encontramos a porta da frente aberta e encontramos a cena assustadora. Tinha uma mala sendo feito, o que nos dá a entender que ele estava prestes a fugir. A gente supõe que esse crime possa ser uma queima de arquivo, uma vingança ou acerto de contas. A tendência, já lhe adianto, é dar o caso como encerrado. Até porque não parecem ter outras pistas.

Embora chocado, Rudi aliviou-se com a notícia. Não escondia o atordoamento, por saber que alguém de tamanho perigo era de sua total confiança, o que lhe trouxe um sentimento de difícil assimilação. Mas, agindo de forma racional, sentiu-se aliviado ao perceber que seu neto podia ter sido a próxima vítima e a situação poderia ser bem pior do que acabou ocorrendo. Por uns dias, a brutalidade do crime e seus requintes tomou conta da cidade, até depois ser gradativamente esquecida e a vida na pacata Santo Antônio de Alcântara recuperar a normalidade. Pedro acabou voltando a São Paulo e voluntariamente decidiu iniciar um tratamento psiquiátrico e nunca mais encontrou seus amigos imaginários.

Longe dali, em Porto Alegre, José Augusto, de 14 anos, entrava em sua loja de discos predileta. Vinha atrás de seus álbuns e bandas favoritass. O garoto recém havia descoberto o heavy metal que começava a sacudir o mundo do rock na década de 80. Naquele momento, eufórico, colocava embaixo do braço o novo lançamento do Iron Maiden, o disco chamado ‘Piece of mind’, e partia em disparada para sua casa. Com o quarto forrado por pôsters do Iron e desenhos de Eddie por todos os cantos, o adolescente segurou o braço do toca discos e colocou com leveza a agulha do aparelho a deslizar sob os sulcos do seu fascínio. Nisso, o temo pareceu parar e uma voz disforme soou por trás dele.

ESQUIZO HEAVY AFETIVA

Até hoje ninguém conseguiu explicar ou entender direito a sucessão de fatos bizarros e sinistros que aconteceram durante um período da década de 80, mais precisamente na cidade de Santo Antônio de Alcântara, no interior de Santa Catarina. Até então uma pequena e pacata localidade rural, distante 32 quilômetros da capital daquele estado. Tudo que se sabe é que após a chegada daquele garoto nada mais foi o mesmo naquele lugar.

Pedro Aguiar tinha 16 anos na época e por decisão da família saiu de São Paulo para morar com os avós, em função do péssimo desempenho escolar e o envolvimento com amigos suspeitos. O quê, segundo sua mãe e seu pai, estaria colocando o garoto em uma situação de risco e possível envolvimento com drogas. Pedrinho, como era chamado, relutou muito contra a ideia e manifestou uma agressividade até então nunca presenciada pelos pais, embora eles já tivessem percebido haver algo diferente no comportamento do jovem, incomum para os garotos da sua idade. O isolamento do jovem preocupava a todos e algumas atitudes muito estranhas também.

O fascínio do garoto era por desenho e música. Uma música, aliás, que seus pais não compreendiam e os deixava nervosos. Dentro do seu quarto, Pedrinho desenhava monstros, mas não monstros imaginários. Os dele, de certa forma, existiam. Mas, vinham das capas de seus discos favoritos. Criava histórias nas folhas dos cadernos, muitas vezes conversava com aquilo que desenhava e ninguém via nisso anormalidade. Para todos em sua volta parecia ser algo natural da idade, pois ele recém havia saído da infância. Uma infância onde sempre conversou com seus bonecos, como qualquer criança. E quem nunca fez isso? Os bonecos tinham nomes como Eddie, Not man, Korgull, Man With the Iron Mask, Sargent D, A Bruxa, Murray, Snaggletooth, Vic Rattlehead, Fiend Skull, entre outros.

Uma certa noite, Rafael Aguiar, pai de Pedrinho, resolveu bater na porta do quarto do filho. Estava trancada e lá dentro, mais uma vez, ouviu o que parecia ser o filho conversando euforicamente com alguém. E resolveu intervir.

– Pedro, desce pra jantar. Espero que já tenha feito seus deveres da escola, não nos faça esperar novamente. O que há com você garoto? – gritou o pai.

– Não, não, não façam nada com ele, não o machuquem, não precisa, tenho tudo sob controle. – respondeu Pedro.

Intrigado, o pai perguntava a si mesmo se o garoto estava batendo bem das bolas, se devia ou não preocupar-se um pouco mais com isso. Porém, deixou passar. Uma semana depois receberam uma ligação da escola de Pedro. O informe era de que precisavam conversar sobre o filho deles.

O encontro com a diretora desnudou a total falta de interesse do garoto pelas aulas e seu distanciamento dos colegas. Segundo a diretora, muitas vezes Pedrinho era pego falando sozinho. Não apenas falando sozinho, mas trocando olhares com um alguém invisível em sua companhia. Suas conversas transpareciam não apenas um diálogo com um alguém especifico, mas com muitos amigos invisíveis. E tinha sempre seu caderno na mão, onde não haviam anotações das aulas, mas apenas desenhos e mais desenhos de tudo lhe vinha a mente. E eram rabiscos sombrios.

-Senhor e Senhora Aguiar, já pensaram em levar seu filho a um profissional? Ele pode estar precisando de ajuda nesse momento. Já presenciei muitos casos de alunos que tiveram problemas psicológicos sérios por não conseguirem se adaptar a essa nova etapa de suas vidas, à transição do mundo infantil para o começo da adolescência, a porta de entrada do mundo adulto, quando as coisas começam a ficar bem mais sérias. – ponderou a diretora.

– Vamos ficar de olho, dona Elisabeth, mas não queremos nos precipitar. Ainda achamos que o comportamento de nosso filho é natural para a idade dele. Ele sempre foi um menino sozinho, nunca teve amigos. Pode ser apenas uma forma dele lidar com o seu isolamento, mas vamos ficar atentos e tomar a devida providência se isso se agravar. – rebateram os pais de Pedro.

– Ele tem faltado as aulas, vocês sabiam? – observou a professora.

– Não, isso é novidade para nós. Eu e minha esposa vamos conversar sobre isso e ter uma boa conversa com ele. – respondeu Rafael, apreensivo.

Ao invés de terem uma conversa séria com o filho, os pais optaram por uma tática diferente: começariam a seguir os passos do filho. Se o que a diretora disse fosse verdade e o comportamento persistisse, eles queriam pegá-lo em fragrante, saber o quê e com quem poderia estar saindo. Nos dias seguintes Pedrinho foi seguido pelos pais. Na primeira semana, por dois dias, tudo transcorreu normalmente, com o garoto seguindo direto de casa para a escola. Entretanto, no terceiro dia, Pedrinho tomou outra direção e entrou em uma casa, de um bairro periférico, não muito longe de onde moravam. O alerta vermelho soou na cabeça dos pais, mas precisavam agir com calma.

Tomando cuidado para não serem vistos, rodearam a casa e se aproximaram de uma das janelas. Estavam quase invisíveis pelo fato de haver uma grande roseira na frente da janela, o que permitiu espiarem dentro do local. Lá, estavam Pedro e mais três garotos. Um deles enrolava um baseado e os outros dois pediam para colocar um som.

– Vamos ouvir um Venom gurizada, que tal "Black Metal"? – perguntou um deles.

– Acho que "Don’t break the oath"? – sugeriu o outro.

– "Kill em’all" e "Show no Mercy"!!!!. Quando vocês vão entender que o Venom não vai conseguir superá-los? – gritou o que tentava fechar o baseado, mas todo atrapalhado. Porém, o Venom venceu naquele momento. Não com "Black Metal", mas com "At War With The Satan".

Olhando da rua e desavisados com o que viria em alto volume os pais de Pedro tiveram os tímpanos quase estourados diante de tanto ruído. Nunca haviam escutado nada parecido. – Meu bem, que tipo de música é essa? Aliás, isso sequer pode ser chamado de música, bradou Rafael à esposa. – Isso mais parece coisa do demônio. – respondeu a esposa.

O casal aguardava que a música acabasse nos normais 3 minutos e pouco de sempre, no formato de tempo que eles estavam acostumados por tudo que ouviram em suas vidas tocando no rádio. Assim, no intervalo entre uma canção e outra, poderiam anunciar sua chegada. Mas aquela música não tinha fim. Percebendo que não haveria outra forma de poderem interromper, bateram forte na porta, tentando fazer com que o estrondo fosse mais alto que o barulho ensurdecedor lá de dentro. E conseguiram.

O som foi desligado, o baseado escondido e o bom ar acionado, impregnando o ambiente com um cheiro de flor de jasmim, o suficiente para causar náuseas em Pedrinho e os amigos. Logo que a porta se abriu e os dois entraram como a Polícia em local de ocorrência, os garotos sequer tiveram tempo para pensar, eram ingênuos. Se fosse a polícia os três estariam agora em uma cela, aguardando a presença dos pais.

– Pedro, o que você está fazendo nesse lugar, quem são essas pessoas? – indagaram nervosamente os pais.

– Mãe? Pai? O que vocês estão fazendo aqui – questionou Pedro, tremendo como vara curta.

– Saia daqui já, vamos ter uma conversa. – frisou a mãe.

Os outros três meninos estavam mudos e não esboçavam reação alguma.

– Mãe, eles são os únicos amigos que tenho, são os únicos que me entendem. A coisa do baseado eu nunca faço, mas não quero discriminá-los, a vida deles é uma merda, qual é o problema?- justificou Pedro, com um pouco mais de coragem e dando início a uma conversa que mudaria o rumo de sua vida. Mas pra pior.

– Você não quer mais estudar, passa suas horas vagas trancado no quarto com seus amiguinhos imaginários, com suas músicas horrorosas. Você por acaso não pensa que tem um futuro pra buscar? Você acha que o mundo não vai cobrar de você uma posição diante dele? Você sabe o quanto a vida é difícil lá fora! – esbravejou seu Pai.

– Snaggletooth, não, não machuque meus pais, te acalma que eu resolvo! – suplicoui Pedro, falando ao vazio e diante da total incredulidade de seus pais.

Afinal, com quem ele estava falando? Os pais se olharam preocupados, aquilo não podia ser normal. Já em casa, Rafael e a esposa conversaram e concluíram por uma decisão. Ligou para seus pais, que moravam no interior de Santa Catarina. Contou sobre problemas que o neto enfrentava e que via na troca de ares uma chance de melhorar a situação. Os avós foram compreensivos, pois amavam o neto e acabaram aceitando que ele passasse um tempo com eles.

– Fique tranquilo filho, aqui nós colocamos ele nos eixos. Nada como uma boa temporada com um galinheiro, um curral, uma plantação de batatas, aipins, milhos, a boa e velha charrete e a companhia dos avós caipiras. – disse o avô, procurando ser bem humorado para tranquilizar o filho. Porém, eles não sabiam o que estava por vir.

Pedro não aceitou a ideia de jeito nenhum. Seus tempos de brincar de Sitio do Pica Pau Amarelo na imensa fazendo dos avós era coisa do passado. Agora seus interesses eram outros. Ele agora era um headbanger, um alter ego que se revelava aos poucos, escondido de seus pais. Nas idas à Galeria do Rock com seus amigos, nas revistas especializadas em heavy metal, na roda de pessoas diferentes do mundo normal, naquelas descobertas que despertavam nele uma adrenalina que nunca havia sentido antes. Nos riffs e no peso das músicas, na selvageria das batidas, no manusear dos discos, nas capas assustadoras, porém geniais aos seus olhos. Era um mundo novo que se descortinava e ele estava entregue a toda aquela sensação.

Junto daquela turma ele não se sentia excluído, ele era alguém. O complicado era ter a coragem de assumir seu novo eu diante dos pais, diante dos colegas de aula e dos vizinhos. Diante de todos esses ele ainda mantinha a aparência do garoto pacato, quieto, obediente e solitário. Mas, tudo isso ia mudar. E o momento dessa mudança estava bem perto, pela chegada da incontrolável rebeldia e a insatisfação.

Entretanto, algo pior também seria acionado. Pedro, sem saber e sem compreender, começava a manifestar uma difícil e irreversível patologia: a esquizofrenia paranoide. Situação a qual conviveria por toda a sua vida, agravada por um outro aspecto: o sobrenatural, ao menos dentro de sua mente. As conversas que tinha com os seres imaginários que desenhava e curtia não eram pura imaginação fértil juvenil. As vozes eram reais e muito além do normal. No princípio, o que via nos desenhos que criava ganhava vida diante de seus olhos. Os traços que construía no formato de histórias em quadrinhos se movimentavam, se comunicavam. Era o criador de todos eles nas situações que inventava no papel. Era como um Deus para eles. Estavam ali por ele e lhe deviam obediência e proteção total. E não entendiam o conceito de pai, mãe, avós, família. Não. Apenas compreendiam uma coisa: defendê-lo de tudo que o aborrecesse.

A natureza pessoal de cada um dos personagens, seus perfis psicológicos, suas índoles, suas agressividades estéticas, suas condutas, eram oriundas de históricos violentos. Eles representavam a agressividade contida em cada disco que representavam como um símbolo, como uma marca. Era o que seus criadores tinham em mente quando os materializaram, para figurarem em capas de discos de bandas agressivas que os tornariam mascotes e, em seguida, repassados para a mente de milhares e milhares de outras pessoas. Que os usariam como servos se tivessem imaginação suficiente para levá-los a outras dimensões que não fossem as de sempre. Presos e estáticos nas capas, eles queriam ganhar e provar a vida e a e escuridão.

Pedro não teve alternativas para contrapor os pais. Ele não tinha estrutura e argumentos sólidos para fugir de uma decisão que entendia precipitada. Deveria ter sido encaminhado a um especialista, havia indícios de que algo pudesse estar perturbando sua mente. Contudo, isso não foi levado tão a sério pelos pais perante a suposição de que uma vida mais calma na presença dos avós fosse ajudá-lo com o que quer que estivesse passando. E não poderiam estar mais enganados. Eddie, Not man, Korgull, Man With the Iron Mask, Sargent D, A Bruxa, Murray, Snaggletooth, Vic Rattlehead, Fiend Skull se tornariam o pesadelo de Santo Antonio de Alcântara, aquela pacata cidade nunca mais seria a mesma depois que Pedro e seus monstros desembarcaram por lá.

Vô Rudi e Vó Mila foram buscá-lo na rodoviária de Florianópolis. Não viam o neto há 7 anos e todas as lembranças que tinham era de uma criança feliz em meio as coisas da fazenda, principalmente nos passeios de charrete, sua diversão predileta. O menino havia crescido e quase não o reconheceram. Pedrinho ainda se lembrava dos avós. Abraçaram-se, mas a emoção dos avós não era a mesma do neto. O menino reagiu friamente com um simples olá vovô, olá vovó, como arisco a carinhos e intimidade. Sentindo-se angustiado, Pedrinho viu a camionete dos avós rodar e um tempo depois entrar nas ruas de Santo Antônio de Alcântara. O desligar do motor o tirou da solidão mental e o colocou diante do casarão principal do sítio. Nada parecia ser mais entediante que aquilo. Havia sido condenado e chegado a prisão onde logo mais seria encarcerado, restando a latrina podre e uma cama fria de pedra. "Não precisa ser tanto assim, você vai se acostumar e se sentir bem", dizia a si mesmo, tentando amenizar o baque em sua mente.

Era como se alguma outra voz tentasse falar dentro dele, uma voz que queria salvá-lo. Uma voz que ainda parecia ser racional e lúcida, um dos últimos momentos em que ela se manifestaria antes que a esquizofrenia o atropelasse. Seu Rudimar, avô de Pedro, pediu para que Miguel, um dos ajudantes da fazenda, levasse as malas do garoto para dento e que a partir daquele momento ficasse a disposição do menino para o que ele precisasse. Eles confiavam em Miguel, mas Miguel, muito além de sua aparência amistosa, não era alguém em que se pudesse confiar. E logo pagaria muito caro por sua maldade interior. Quando Pedro saiu de São Paulo, suas férias estavam prestes a começar e ao chegar na casa dos avós o fim do ano letivo já havia liberado todos os garotos de seus compromissos com a educação. Todos estavam de férias.

O quarto de Pedro era bem rústico, adornado por móveis antigos, um crucifixo acima da cama. Sem seus pôsteres nas paredes, sem bagunça. Nada similar ao de seu próprio lar – "Acalme-se, vamos dar um jeito nisso", falaram as vozes em sua cabeça, num tom mais alto, real e gutural. Pedro assustou-se, pareciam as vozes de seus velhos amigos. Mas pensou como isso era possível se nem estava desenhando? Colocou seu toca discos em formato de maletinha da Phillips e alguns de seus discos prediletos sobre uma cômoda e resolveu arrumar os cadernos de desenhos no dia seguinte. Estava exausto. Dormiu tranquilo na primeira noite, estava realmente exausto da longa viagem de ônibus e de toda a situação que o levou até ali. Mal sabia que seria uma das últimas noites em que poderia desfrutar do privilégio de um belo e calmo sono.

No dia seguinte levantou cedo e tomou café com os avós numa mesa enorme, cheia de coisas que em sua infância ele adorava, quando a vó fazia a mesa farta, com rosquinhas, geleias de todos os tipos, os pães de casa, as cucas, os frios, o leite recém tirado da vaca… mas nada naquele momento o animava. Não tinha fome, não tinha vontade de comer, não sentia desejo por nada, tinha náuseas. Não era mais o mesmo. Tentava pensar em alguma forma de não desapontar os avós, que ainda o viam como aquela criança tão feliz do passado. Mas a verdade é que aquela criança não existia mais, era um sentimento confuso e difícil de lidar diante de pessoas tão amáveis, que tentavam fazer de tudo o possível para deixá-lo a vontade e feliz. E o amor parecia ter se ausentado de dentro dele.

Seu Rudimar e dona Camila o observavam com calma e cuidado, sem deixar que traços de preocupação fossem revelados. Aos poucos teriam de encontrar palavras para criar uma comunicação saudável e aberta com o menino.

-Pedrinho, vá dar uma caminhada pela fazenda. Eu e sua vó temos um problema para resolver na cidade, fique à vontade meu querido, a fazenda mudou muito desde que você a viu pela última vez. Agora temos até um lago com uma ponte de madeira que leva a um belo quiosque, eu e sua vó sempre vamos até lá para apreciarmos a paisagem, é um lugar lindo meu filho. O Miguel irá acompanhá-lo, voltamos logo. – disse o avô.

Pedro aceitou a sugestão. Precisava mesmo arejar a cabeça, estava se sentindo esquisito, como um peixe fora d’agua. – "Esse lugar é horrível", sussurrou uma voz enquanto caminhava ao quarto para vestir algo mais confortável do que aquele pijama de bolinha. No trajeto, sentiu o cheiro forte de algo podre, um odor de carniça. E percebeu que havia alguém nas suas costas. Quase caiu para trás quando se deparou com uma sinistra e conhecida figura em seu quarto, perto dele. Aquilo não podia ser verdade, Eddie não podia estar ali. Estava ainda dormindo, estava num pesadelo. Mas como poderia ser um pesadelo se ele adorava aquele monstro?

Um misto de sensações confusas passou por sua cabeça. Por mais que nunca o tivesse visto de verdade, já havia apreciado aquela imagem milhares de vezes nas capas dos discos do Iron Maiden. Já havia criado centenas de histórias com aquele monstro, um monstro que em seus contos imaginários nunca significou medo a ele, pelo contrário. Eddie servia para amedrontar os outros, qualquer um que lhe fizesse mal, como ele poderia agora temer algo que nunca o havia prejudicado? O cavernoso Eddie também era parte de sua própria criação, como um Frankenstein. O pertencia, fora feito pra ele. Com certeza estava enlouquecendo, mas isso era ruim? O Eddie que estava ali era o Eddie de "Killers", com aquele cabelo gigante, arrepiado, penteado no meio, aquelas roupas de couro apertadas, aquela pele horripilante como a decomposição da morte, um sorriso maluco no rosto fétido e uma machadinha nas mãos.

– Não se preocupe Pedro, estou aqui para te proteger, eu e os outros. – disse Eddie.

– Mas me proteger do quê? Não tem nada perigoso aqui. – argumentou Pedro.

-Tem sim, agora que escute porque vou te falar um pouco de nós, de quem está aqui contigo, disse Eddie, num timbre de voz soturno e cavernoso que fez o garoto sentir um calafrio na espinha.

– Vic Rattlehead tem um dom e você não nos conhece tanto quanto pensa. Ele foi gerado a partir de um provérbio japonês: "Não olhe para o mal, não escute o mal, não pronuncie o mal". No início ele fez todas essas coisas e foi punido eternamente, por isso tem os olhos blindados, tampões nos ouvidos e a boca costurada, mas ele não fará mal a quem não exalar o mal. Vic pressentiu que o mal está muito perto de você agora e todos agiremos no momento certo, ninguém a não ser você poderá nos ver, você sempre quis isso e seu desejo lhe foi concedido.

– Snaggletooth nasceu de um javali. Diante de sua presa não há o que possamos fazer, seu instinto é primitivo, ele sofreu uma mutação genética, suas origens não eram carnívoras, eram como porcos com verrugas enormes vivendo em tocas. Mas foram caçados a vida toda, perfurados e mortos por flechas cruéis e Snaggletooth é o símbolo da vingança de sua antiga raça. Sugiro que não tente falar com ele pois não o entenderá, sua voz é um grunhido. Pedro, não somos os seus desenhos aqui, somos feras, nós estamos aqui porque você pensa em nós, nós somos o reflexo do que você pensa.

-A Bruxa é a representação do medo humano, quem a ver jamais esquecerá, ela também não falará com você, ela nem precisa disso para cumprir o que foi criada para fazer. Ela traz em si toda a história de seus ancestrais que cultuavam a figura obscena em todos aqueles antigos rituais pagãos em meio as mais escuras florestas amaldiçoadas por invocações blasfemas. O poder que ela tem é o da escuridão, ela está aqui por aqueles que mereçam vê-la.

-Murray Maor também provém de uma antiga lenda: – Muito antes do alvorecer do homem, o mundo estava habitado por dois grupos: os Malcovians e os Cyclops. Quando o governante Malcovian tentou assassinar seus filhos, com medo de uma falsa profecia, um deles escapou: Murralsee. Sua mãe lhe deu uma poção adormecida para aguardar tudo e ele acordou quase um trilhão de anos depois. O sono o transformou no ‘monstro’ que o conhecemos hoje.

-Murray é uma fera selvagem com feições de um cavalo, cujo olhar é faminto de sangue. Ele é assustador, uma criatura mitológica, mas guarda muitas histórias que as vezes divide com todos nós. Pedro, vou voltar a repetir, nós não somos mais os seus desenhos, mas você nos trouxe aqui, estamos na sua mente e estamos aqui por você. Você não está sozinho e espero que isso lhe conforte, por mais estranho e surreal que pareça.

-Violent Mind é um demônio que fugiu do inferno e se você não o tivesse criado em sua imaginação, jamais gostaria de tê-lo em seu encalce. Mas agora, aqui, ele serve a você, espero que não se assuste demais, afinal você o conhece muito bem, sabe que ele tem seu cérebro exposto, sabe que ele é apenas uma cabeça flutuante e isso apavora. Creia-me, dentro de seu cérebro exposto há um verdadeiro inferno de Dante, uma sucessão ininterrupta de imagens apavorantes, mas, ele também está aqui por você, há motivos.

-Também devo alertá-lo sobre Not Man. Ele possui distúrbios mentais, pois têm forma humana. É o legítimo caso de filho de lar destroçado, pai abusivo, mãe imoral. Viveu toda a sua vida nas ruas entre gangues e mau elementos, tem transtornos de humor. A violência é sua natureza, não queira vê-lo comprar uma briga, pois alguém sairá seriamente ferido. Estou alertando você para que tenha estômago forte.

-Já o Mad Butcher não é muito diferente do Not Man. Possui graves transtornos mentais, é um psicopata assassino e cruel, um açougueiro que adora destroçar carne humana. Um gordo escroto e perverso. A verdade é que ninguém, exceto você, pode confiar em nós. Se você nos dá vida damos a vida por você.

-Falar do Korgul é falar de uma alma torturada pelas atrocidades das guerras. No começo de sua mutação era um soldado forjado em ferro e fogo, sua face era uma máscara de aço cavernosa que ocultava o que antes pareceu ser um humano. Um selvagem de cabelos longos amaldiçoado pelo tempo de violência. Sempre com uma poderosa metralhadora nas mãos, ele costumava ser chamado de exterminador, mas com o passar do tempo acabou sendo transformado em algo mais mecânico do que sua forma anterior. E suas formas modificam-se a cada nova aparição, por vezes como uma criatura em uma experiência científica ou por outras como um colossal tanque de guerra assassino. Nossa roda de amigos não é nada comum meu rapaz, a sua também não era.

-Man With the Iron Mask é a representação da própria loucura humana, ele é o que mais se aproxima de sua vida real. A raça humana pode aparentar uma aparência que nós não possuímos, mas isso não os impede de que sejam ainda mais cruéis, insanos e perversos do que nós.

– Quanto ao Sargent D, é outro cruel veterano de guerra. Sempre com seu inseparável charuto na boca, mas é um morto vivo que nunca retornou dos horrores de seu inferno. Sua mente é povoada pelas consequências de suas ordens impiedosas e nunca se arrependerá disso, é a mais pura manifestação da neurose de guerra. Entre nós é ele quem dá as ordens quando somos obrigados a entrarmos juntos em um confronto. E, te afirmo, isso pode acontecer aqui nessa cidade, por que exatamente aqui, nesse lugar pacato, é onde algo realmente sinistro pode acontecer sem que ninguém desconfie. E eu peço para que você fique de olhos bem abertos e atentos aos sinais, porque nós já vimos esses sinais.

-O Chaly é um demônio alado, um crânio do inferno com asas. Ele é basicamente isso e é muito difícil atacá-lo. É como um morcego veloz. Acho que você possa imaginar como ele seja, mas nunca conseguiu ter uma real ideia disso através de seus desenhos, pois ele é muito pior.

-Fiend Skull é um ser mascarado, é impossível saber o que se esconde por trás de sua vestimenta, sua maquiagem e sua máscara. Sua aparição foi inspirada no misterioso vilão de Crimson Ghost, um filme de muitos e muitos anos atrás. É como uma recriação bizarra do ceifador.

-Painkiller também está entre nós. Um trecho de uma canção é o suficiente para descrevê-lo: "Mais rápido do que uma bala, um grito apavorante, enfurecido e cheio de raiva, ele é metade homem, metade máquina", nem é preciso dizer mais.

E os bodes aparecerão e ficarão sempre a espreita, por perto. Quando os sacrifícios acontecerem eles se levantarão, creio que você sabe quem sejam. E Pedro, fique alerta. Algo vai acontecer – reforçou Eddie, após explicar tudo sobre eles.

Pedro estava entre atônito e eufórico, não sabendo descrever exatamente o que se passava em sua mente e no coração, que batia acelerado.

– Você está falando do quê Eddie the Head? Vocês não são um sonho? Uma alucinação? O que está acontecendo com a minha cabeça? – perguntou o garoto.

– Não, não somos alucinações, nós estamos vivos. VocÊ nos trouxe aqui, você nos libertou. – respondeu o monstro maideano. – Você está começando a sofrer de uma doença invisível, está em um choque de realidade, está entre o bem e o mal. A vida nos faz assim, os outros nos fazem assim, carregamos uma maldade milenar como se tivéssemos sido contaminados por algo que foi colocado pela humanidade e pela distorção da verdade. É o nascimento e o império brutal e devastador do desamor, mas você não é a doença, você ainda é você, o Pedro que conhecemos, o Pedro que você conhece. E nós estamos aqui para ajudá-lo com algo que será real e não uma alucinação, algo que já existe nessa cidade há anos. Nós não podemos mostrar os sinais a você, isso é você quem precisa encontrar. E se descobrir estará em perigo e então faremos nossa parte. – completou Eddie.

Na sua inocência, Pedro não havia percebido os olhares furtivos de Miguel, o empregado dos avós, ao acompanhá-lo depois em direção ao deck do lago. Eram impuros, suspeitos, denotando uma anormalidade naquela pessoa, alguém em quem não se podia confiar. Aos 50 anos, ele aparentava austeridade e rispidez. Era um homem corpulento e de poucas palavras, trabalhava de forma fixa com os avós do garoto há pouco tempo, mas ganhou sua confiança pelos serviços que fez de forma esporádico e ao longo de anos na velha fazenda, a tal ponto de ser contratado. Miguel conhecia de suas funções, mas o profissional prestativo guardava em seu íntimo desejos sombrios, segredos de sua criação familiar que ele lutava para não expôr. Ocultava demônios e tentava lutar para não o dominarem, pois um acontecimento do passado o seguia assombrando. Um fato adormecido, mas tatuado nele.

Pedro e Miguel caminharam até o deck e depois a uma plantação. Reinava entre eles um silêncio, que só foi rompido quando Pedro fez uma observação. – Gosto de milharais, me lembram alienígenas.

-Tem muito por aqui, você quer entrar para ver? perguntou Miguel.

Pedro sentiu algo de ruim na entonação de voz do homem e no ato pensou sobre os avisos e alertas de seus amigos nem tão imaginários.

Decidido, Miguel tomou a direção do interior da vasta plantação, sem esperar o consentimento de Pedro. Era como se um portal tivesse sido aberto e Miguel, diante de uma porta gigantesca, pergunta-se se queria entrar. E algo perturbava o garoto naquele gesto.

-Ele quer machucá-lo, rosnou Eddie imediatamente em seu ouvido, à espreita com todos os seus amigos ao redor. Se você morrer, Pedro, nós também morreremos e não podemos deixar isso acontecer.

Os receios de Pedro e dos monstros tinham razão. Num ato de descontrole, Miguel correu em direção ao menino e o segurou de forme insana pelas mãos, puxando-o para dentro da plantação.

-Venha cá seu mimadinho do papai, vou te mostrar onde o teu disco voador caiu, eu vi, sei onde tá, vai gostar – esbravejou Miguel.

– Me solta seu verme, gritou Pedro angustiado.

Com toda força possível o menino soltou-se das garras do seu predador e correu para fora da plantação, adentrando o mato e seguindo seu instinto de sobrevivência, rasgando sua camiseta ao enroscar-se em alguns galhos. E era seguido de perto por Miguel, que havia escorregado e caído na tentativa de agarrá-lo, mas logo havia se recuperado e corrido atrás do garoto.

-Desculpe, não quero fazer mal a você menino, espera. Eu tenho problemas, eu tenho problemas … perdi o controle, por favor volte, vamos conversar, por favor, não conte a seus avós – gritava um esbaforido Miguel, em tom de súplica.

Pedro permaneceu escondido e quieto, segurando a respiração, enquanto Miguel afastou-se em direção a saída da fazenda. Somente ao anoitecer voltou para a casa, deparando-se com seus avós desesperados.

-Onde você estava Pedrinho, pelo amor de Deus! Você nos assustou, já estávamos a ponto de chamar socorro. E onde está o Miguel?

-Eu não sei, respondeu o menino, correndo para dentro da casa e trancafiando-se em seu quarto. Angustiado e ainda muito nervoso, explodiu o verbo contra os monstros.

-Onde vocês estavam? Vocês por acaso não juraram me proteger? berrou Pedro, falando sozinho.

Um silêncio sufocante permaneceu no ar por alguns minutos, até ser rompido por batidas em sua porta.

-Pedrinho, meu amor, queremos conversar com você.

-Depois, me dêem um tempo – pediu o garoto, ainda assustado. Nisso, uma voz ressoou ao fundo do quarto, como se houvessem muitas falando ao mesmo tempo.

-Nós daremos um jeito nisso!

Um pouco mais calmo, Pedro decidiu abrir a porta, mas sem saber direito o que dizer aos avós. Sentou-se à mesa com eles, calado. Ainda tremia, o coração acelerado, e não sabia por onde começar.

– Ele fez algo com você meu filho, o Miguel? perguntou o avô, com nítida ansiedade.

A VERDADE DE RAMON

Há cerca de dois quilômetros da fazenda Miguel estava trancado em seu casebre, atordoado pelo que havia feito. Havia lutado muito contra seus demônios durantes os últimos anos, contra fantasmas de seu passado. E pensava ter se livrado de tudo o que cometeu há muito tempo. Todo o mal que causou e ocultou. Mas, tudo havia voltado contra ele novamente. Cometeu um erro, um erro grave, escolheu a vítima e a ocasião errada em cedeu a um impulso primitivo, como se toda sua violência estivesse represada em uma barragem que estupidamente estourou a toa.

Seus patrões o conheciam e sabiam que só ele estivera com o menino. Sua presença na cidade era livre de suspeitas desde que havia chegado, fugindo de uma prisão a milhares de quilômetros dali. E finalmente sentia-se livre, tentando recomeçar sua vida sem cometer o indizível de seus atos passados. Fugir agora era a única alternativa, pois ser chamado a um depoimento na delegacia certamente levantaria suspeitas que revelariam sua verdadeira identidade: Miguel era na verdade Ramon Almeida, um condenado a prisão perpétua por estupro, assassinato e ocultação de cadáver. Um homem que teve a sorte ou a infelicidade de escapar durante um motim em um presídio no norte do país, pouco antes de ser transferido para a segurança máxima.

Quando Ramon desembarcou em Santo Antônio de Alcântara decidiu ficar por ali. A cidade pacata parecia um bom lugar para recomeçar. Procurou bicos para fazer e como um andarilho contador de histórias tristes sobre sua vida, logo ganhou a solidariedade dos moradores e o apoio da igreja local. Na igreja sofreu uma transformação radical. Estava irreconhecível a quem um dia o conheceu, afundou-se nas escrituras e desenvolveu um fascínio obsessivo pelo livro de Genesis, a queda do homem, a expulsão do Jardim do Éden e toda trajetória da humanidade caída em pecado. Passou a buscar por sua salvação ou acreditava que pudesse ter uma, apesar de tudo. Sempre que seus impulsos de carne o visitavam, chicoteava as costas no escuro do quarto ou prostrava-se de joelhos clamando como Davi. Jurava a si mesmo jamais ter de passar novamente por tudo que passou no cárcere.

Mas ali estava ele novamente, diante de sua queda. A aflição que o consumia sequer o fazia ter coragem de clamar a Deus por piedade. Nervoso, começou a arrumar a mochila para abandonar o local. Foi interrompido por um barulho ensurdecedor, que retumbou pela casa e fez as luzes se apagarem. Lá fora e dentro, vozes começaram a ressoar por todos os cantos. E eram vozes assustadoras, que não pareciam ser desse mundo.

– É melhor correr para as montanhas, está com medo do escuro? -Você nasceu para perder, Deus nunca esteve do seu lado, que tal ser assassinado pela morte? – Bem vindo ao inferno, era o que diziam a ele. E as vozes cresciam em altura. -Pergunte o que é isso a sua frente, todos esses vultos negros que agora apontam para você? -Bem vindo a casa da loucura.

Ramon estava em desespero diante do que ouvia no escuro. Subitamente, uma luz se acendeu, iluminando os traços de algo que estava ali à sua frente. Eram mãos esqueléticas cobertas por uma pele escurecida. Um facho de luz tornou visível a figura monstruosa de Eddie, uma espécie de esqueleto vivo com cabelos longos desgrenhados e com algo brilhando dentro da cavidade dos olhos.

-Seja rápido ou morra! Dizia a assustadora presença a Ramon, escancarando os dentes como em um sorriso demencial.

-Eu não fiz nada, o que querem de mim? O que são vocês? – Exclamou o homem.

-Somos o seu pesadelo, a sua maldição! Foi a reposta que obteve.

Agora eram várias as vozes sinistras falando ao mesmo tempo e uma sucessão de situações começou a acontecer diante dele, mas não podia ser real. O monstro se apagou e o vislumbre de um vulto próximo a ele fez sua espinha arrepiar-se. Era uma bruxa, o que o estremeceu de pavor. A imagem sumiu e logo outra surgiu. Esquelética, com olhos blindados, dentes que pareciam estar costurados por fios de aço e com algo preso por correntes aos seus ouvidos.

-Me deixem em paz por favor, eu sou inocente. –suplicou um apavorado Ramon.

-Você sabe as sombras que esconde. Aceite a nossa tortura de bom grado que a morte te será rápida. – vociferou Eddie.

Sem saber para onde ir e sentindo seu próprio mijo escorrer pelas pernas, Ramon virou-se para o lado esquerdo. O suficiente para uma cabeça de porco selvagem e metálica, com longos dentes e presas alojadas num capacete, rosnar para ele. O som emitido pela criatura era rouco e animalesco, mas também logo desapareceu. Deu lugar a aparição de uma espécie de cabeça de um boi com chifres e olhos vermelhos, mãos que possuíam apenas dois dedos. Pensou se seria aquilo o próprio diabo em carne e osso? No chão, roçava-se nele e mexia-se freneticamente uma figura acuada, presa em uma camisa de força, com uma máscara de ferro em sua cabeça.

O rol de horrores não parava e Ramon começou a gritar desesperado. Dessa vez, surgiu a sua frente uma figura com a forma de um militar, capacete de guerra, esquelética e de sorriso sarcástico. Era um homem gordo e escroto que vinha em sua direção, algo que ele só poderia descrever como a própria insanidade.

-Certo pessoal, não mostrem misericórdia, disse o gordo, decretando o veredito, o começo do ato final para Ramon. Que começou a ser esfolado vivo ali, aos berros, chamando por socorro, mas sem ninguém para ajudá-lo.

Na escuridão, o ex-fugitivo sentia a carne sendo dilacerada, seu sangue quente escorrendo por mãos, braços, pernas e boca. E não tinha mais forças, mais voz para que pudesse gritar. Machadadas amputaram seus membros, numa dor lancinante. A última coisa que seus olhos viram foi a presença de dois bodes erguendo-se apoiados apenas nas duas patas traseiras. Depois, apenas a escuridão aconteceu. Não havia sobrado nada de Ramon Almeida.

Já passava da meia-noite quando Pedro decidiu falar com os avós. Tomou coragem e contou a verdade, que Miguel o havia tentado arrastar para o milharal, mas ele conseguiu escapar e se escondeu, até se sentir seguro para voltar. Em choque, os avós pegaram o telefone e ligaram para a delegacia de Polícia, relatando o episódio e ouvindo que uma ordem de busca e apreensão de Miguel seria decretada. Pedro havia voltado ao quarto, a tempo de deparar-se com algo surreal. As capas dos discos que havia trazido estavam espalhadas pelo chão, sem os mascotes. Os olhos do garoto escureceram-se por breves instantes, tempo que permitiu que olhasse novamente para elas, mas dessa vez vendo os personagens sinistros.

Alguns minutos depois o carro da Polícia estacionou na porta do casarão antigo da fazenda. Tinha as sirenes ligadas e dois policiais se dirigiram aos avós de Pedro, que já os esperavam na porta.

-Boa noite seu Rudi. Não trazemos boas notícias. Encontramos o Miguel brutalmente assassinado e esquartejado em sua casa. Tá uma sanguera absurda lá, nunca vimos nada igual nessa vida. – relatou um dos policiais.

Um pensamento ruim passou pela cabeça de Rudi. Teria o neto algo a ver com aquilo?Num segundo, lembrou dos fatos que haviam feito o menino vir para a casa deles. Havia problemas, problemas comportamentais e possivelmente mentais com o garoto. Mas não, Pedro jamais seria capaz de algo tão brutal e o avô culpou-se por pensar no neto como um assassino.

– E seu Rudi, descobrimos algo do qual jamais imaginaríamos. Pouco antes de recebermos sua ligação um sujeito muito bizarro, gordo e que parecia sofrer de algum retardo mental deixou na porta da delegacia um envelope contendo informações graves. Depois saiu correndo. Miguel, diziam os papéis, na verdade se chamava Ramon Almeida. Um fugitivo da lei condenado a prisão perpétua por estupro e assassinato. Ele tinha fugido da prisão há 4 anos e desde então estava na lista dos criminosos mais procurados do norte do Pais. Fomos então a casa dele para prendê-lo, encontramos a porta da frente aberta e encontramos a cena assustadora. Tinha uma mala sendo feito, o que nos dá a entender que ele estava prestes a fugir. A gente supõe que esse crime possa ser uma queima de arquivo, uma vingança ou acerto de contas. A tendência, já lhe adianto, é dar o caso como encerrado. Até porque não parecem ter outras pistas.

Embora chocado, Rudi aliviou-se com a notícia. Não escondia o atordoamento, por saber que alguém de tamanho perigo era de sua total confiança, o que lhe trouxe um sentimento de difícil assimilação. Mas, agindo de forma racional, sentiu-se aliviado ao perceber que seu neto podia ter sido a próxima vítima e a situação poderia ser bem pior do que acabou ocorrendo. Por uns dias, a brutalidade do crime e seus requintes tomou conta da cidade, até depois ser gradativamente esquecida e a vida na pacata Santo Antônio de Alcântara recuperar a normalidade. Pedro acabou voltando a São Paulo e voluntariamente decidiu iniciar um tratamento psiquiátrico e nunca mais encontrou seus amigos imaginários.

Longe dali, em Porto Alegre, José Augusto, de 14 anos, entrava em sua loja de discos predileta. Vinha atrás de seus álbuns e bandas favoritas. O garoto recém havia descoberto o heavy metal que começava a sacudir o mundo do rock na década de 80. Naquele momento, eufórico, colocava embaixo do braço o novo lançamento do Iron Maiden, o disco chamado ‘Piece of mind’, e partia em disparada para sua casa. Com o quarto forrado por pôsters do Iron e desenhos de Eddie por todos os cantos, o adolescente segurou o braço do toca discos e colocou com leveza a agulha do aparelho a deslizar sob os sulcos do seu fascínio. Nisso, o tempo pareceu parar e uma voz disforme soou por trás dele.

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