Resenha de livro: Thunderstruck - Enterrem meu coração no túmulo de Bon Scott
Por Marcelo R.
Postado em 15 de outubro de 2023
Resenha originalmente publicada na página Rock Show.
Distanciado, por algumas semanas, do término da leitura da obra Thunderstruck: enterrem meu coração no túmulo de Bon Scott (Dimitri Brandi), julgo-me apto a formular algumas considerações, a título de resenha, sobre essa obra sublime. As impressões já estão consolidadas por efeito do tempo, que maturou diversas reflexões induzidas ao longo da – tão agradável quanto visceral – leitura.
Um brevíssimo preâmbulo, porém (apenas a título de curiosidade). Conheci o autor e tornei-me seu amigo – por ora, apenas virtualmente – como resultado de uma imprevisível soma de coincidências.
Em 2021, isolei-me, por algumas semanas, em minha casa, acometido por covid-19, logo nas primeiras ondas da doença. Coincidentemente, à época – final de junho e início de julho –, acontecia, na forma on-line, por transmissão pelo Youtube, o tradicional evento Roça n’ Roll, capitaneado pelo Bruno Maia (para familiarização, caso alguém não tenha relacionado o nome à pessoa, ele é o fundador do célebre conjunto nacional Tuatha de Danann).
A arte nos salvou e nos salva todos os dias. Ao tempo da pandemia, isso se evidenciou com inegável clareza...
Neutralizado em meu quarto – e com confessado receio, já que eu ainda não havia sido imunizado sequer com a primeira dose da vacina, disponibilizada para a minha faixa etária apenas algumas semanas depois –, a arte ocupou os meus dias, dando-lhes algum colorido. Além de suprir o "atraso" das leituras nesse período – numa fila sempre crescente, como é natural a todo leitor –, a música aplacou (ou, ao menos, minimizou) o tédio e, sobretudo, o receio. Um festival on-line era, enfim, aquilo de que eu precisava àquela altura, especialmente naquelas condições.
Entre as seletas bandas que desfilaram suas criativas e empolgadas composições no Roça n’ Roll, uma delas, que ainda não conhecia, chamou-me a atenção, especialmente: Psychotic Eyes. A música do conjunto, influenciada por notórios elementos do extinto e altamente técnico grupo Death, era certeira: pesada, técnica e cadenciada, em mensuras equilibradas. Lembrou-me o Psychotic Eyes, para além da influência já citada, de outros conjuntos técnicos de metal extremo, inclusive daqueles com um quê progressivo.
Citei esse fato no chat do Youtube enquanto o som comia solto. O vocalista e fundador do Psychotic Eyes, Dimitri Brandi, presente à conversa virtual do chat (os shows exibidos no festival eram todos pré-gravados), respondeu-me (ele, aliás, simpaticamente interagia com todos enquanto o show era exibido).
Esse princípio de conversa sequenciou-se pelo Facebook, onde nos adicionamos. Ali, descobrimos diversas afinidades e uma miríade de outras coincidências.
Long story short: conversando, soube que, além da formação jurídica – que nos era/é comum –, ele foi colega de turma, na faculdade, de uma pessoa com quem trabalhei há alguns anos. Soube, ainda, que tínhamos um amigo comum, curador de feira de discos no interior. Ainda, o gosto pela literatura era bastante semelhante, sobretudo por alguns autores clássicos, como Thomas Mann (A montanha mágica ensejou longo bate-papo nesse dia) e Dostoievski (apenas para citar dois entre os escritores mencionados nesse nosso primeiro colóquio virtual).
Nesse vaivém de prosa, descobri que ele, Dimitri Brandi, era, além de músico, escritor.
Coloquei, então, como meta pessoal, a leitura de alguma de suas obras, em futuro recente.
Pois bem.
Sempre apreciei, com especial preferência, literatura com viés intimista e reflexivo, sobretudo com estética lírica – com metáforas, figuras de linguagem, jogos de palavras e com predominância de aspectos sensoriais –, num emaranhado indutor de pensamentos, provocações e reflexões no recôndito íntimo do leitor.
Em certa ocasião, no contexto de uma conversa e de um período específicos, Dimitri Brandi citou-me a sua obra Thunderstruck: enterrem meu coração no túmulo de Bon Scott. Acreditava o autor, segundo ele próprio me disse, que o livro referenciado, conjuntando as características acima mencionadas – e desenvolvido num caldeirão maturado de citações musicais do universo do heavy metal – me seria agradável e proveitoso.
Definitivamente, não errou. Para ser mais incisivo, aliás: a recomendação foi absolutamente certeira.
À análise.
Como alertado no capítulo de introdução à obra (redigido por Luiz Carlos Cichetto), há, atualmente, diversos livros que abordam o conceito do romance rock, mas Thunderstruck: enterrem meu coração no túmulo de Bon Scott é, possivelmente, o primeiro cujo pano de fundo enlaça-se diretamente ao tema do romance metal. "Pano de fundo", porque, como discorrido e esclarecido ao longo dessa resenha, a obra transcende e ultrapassa o aspecto exclusivamente musical (que, aliás, sequer exige domínio pelo leitor para compreensão da narrativa e das questões subjacentemente trazidas).
É dizer: perpassando por saborosas citações e referências – a quem, claro, lhes captar –, Thunderstruck: enterrem meu coração no túmulo de Bon Scott enfrenta o imo de questões profundas, sobretudo em âmbitos sociais, políticos, familiares e, até mesmo, existencialistas.
A obra, quanto à sua construção e desenvolvimento narrativos, foge a qualquer clichê. A começar pelo já mencionado pano de fundo: heavy metal (algo, por certo, infrequente. Inédito, quiçá).
Mas não é só. Inspirado no modelo narrativo peculiar ("peculiar", para dizer o mínimo) de Memórias póstumas de Brás Cubas, a narrativa tem vez e voz – e, em tempo real, é acompanhada – pelo relato de um personagem que, prematuramente extinto, manifestou, em vida, o desejo de que suas cinzas fossem enterradas no túmulo de Bon Scott, falecido ex-vocalista do conjunto australiano de hard rock AC/DC.
Diversas pessoas do relacionamento mais próximo do personagem-narrador em questão – a maioria, amigos antigos de shows de rock e heavy metal – peregrinam, então, à Austrália, para cumprimento da manifestação de última vontade do falecido, em seu respeito.
Emprestando voz à narrativa, o de cujus a tudo assiste e acompanha em sua metafísica existência, conferindo, inclusive, um tom peculiarmente bem humorado ao enredo, que perpassa por diversos temas sensíveis, como se verá.
Permeada por referências de heavy metal underground – com citações, expressas ou implícitas, a bandas como My Dying Bride e Anathema, apenas para citar dois exemplos em um universo bastante maior (há, ao final da obra, um catálogo contendo os conjuntos mencionados e as respectivas referências) –, a obra em questão enfrenta, com linguagem acessível, mas com sofisticação, refinamento de ideias e, sobretudo, com criticidade, temas como existencialismo, racionalismo, vida, morte, tolerância, respeito a modelos familiares plurais e união fraterna, entre outros. Tudo isso, repita-se, envolto numa construção narrativa saborosamente permeada por referências musicais pouco convencionais (mas conhecida, com larga familiaridade, pelos apreciadores de música pesada underground).
Quanto às reflexões em si, deixo-lhes ao leitor. O mergulho, se atentamente realizado, imergirá por águas profundas, diante da miríade impressionante de temas pluralmente desenvolvidos, todos analisados crítica e complexamente a partir das reflexões trazidas, seja diretamente, seja por meio dos diálogos dialéticos, com seus certeiros pontos e contrapontos.
Vale ressaltar que, às derradeiras páginas, a obra traz, na forma de diálogo, um extenso e magistral discurso de um personagem, atendente de um hotel, cuja real identidade, se analisada com atenção, será rapidamente captada pelos leitores.
Envolto numa aura quase mística – seja pelo sorumbático ambiente/cenário desenhado, seja pelo tom misterioso e enigmático do interlocutor –, esse inebriante colóquio – provável clímax da obra e o seu evidente apogeu – entrega ao leitor, subjacente à fala do personagem, um arrepiante e, até mesmo, emocionante ensaio existencialista sobre vida, morte, respeito, autocrítica, auto-aceitação, responsabilidade pelas próprias ações e repúdio à idolatria.
[an error occurred while processing this directive]O trecho especificamente citado, tão empolgante quanto visceral, é daqueles que o leitor, contendo a respiração, acompanha-lhe sem piscar. Essa foi, ao menos, a minha experiência.
Penso não exagerar ao afirmar que o aspecto existencialista, a profundidade da análise e a complexidade das críticas formuladas especialmente nesse extenso trecho orgulhariam autores como Albert Camus.
Aliás, parece-me que as influências de Dimitri Brandi, no aspecto mais filosófico da sua obra – e das existencialistas ideias por ele desenvolvidas –, bebem, entre diversas outras, da fonte do citado escritor, Albert Camus. Isso porque, em interpretação pessoal, parece-me que incalculáveis digressões, expressas ou subjacentes, extraídas de Thunderstruck: enterrem meu coração no túmulo de Bon Scott estão sincronizadas às ideias desenvolvidas, exemplificativamente, em obras e ensaios como O mito de Sífiso, de Albert Camus (e, no geral, às filosofias racionalista e existencialista). É, ao menos, a impressão que deduzi a partir de uma leiga, mas refletida análise comparativa dos conteúdos e abstrações contidos em Thunderstruck: enterrem meu coração no túmulo de Bon Scott em confronto com o pensamento do filósofo e da corrente filosófica citadas.
Em suma, para rematar: Thunderstruck: enterrem meu coração no túmulo de Bon Scott é uma escolha certeira aos interessados numa obra desenvolvida, em sua estética, com bom-humor e lirismo, mas que, no conteúdo e no imo, não se furta a temas tão sensíveis quanto atuais – além de outros filosoficamente atemporais –, num enredo que espraia, com clareza e criticamente, diversas reflexões. E conjuntando a tudo isso, às torrentes, referências musicais tão variadas quanto infrequentes.
Altamente recomendável.
[an error occurred while processing this directive]Receba novidades do Whiplash.NetWhatsAppTelegramFacebookInstagramTwitterYouTubeGoogle NewsE-MailApps