Blood on the Tracks, um Dylan fragilizado
Resenha - Blood On The Tracks - Bob Dylan
Por João Affonso
Postado em 15 de abril de 2024
Bob Dylan é, sem sombra de dúvida, um dos mais importantes e influentes músicos do século XX. Suas letras e melodias marcaram a vida de milhões de pessoas. Sua maneira sui generis de cantar, fora dos padrões estabelecidos na primeira metade do século, libertou a muitos, poetas que tinham tanto a dizer, mas eram contidos pela insegurança com relação aos próprios dotes vocais. Um estudo sobre o surgimento de bandas e artistas solo com letras brilhantes pós-Dylan seria do maior interesse. Não hesito em antecipar o resultado: Dylan ajudou a criar uma geração de escritores que se aventuraram em uma mídia muito mais importante e lucrativa, ao menos dos anos 60 em diante: a música.
Se tentarmos dividir a obra de Bob Dylan em fases, de uma forma leviana, descompromissada, teríamos o cantor de protesto dos primeiros discos; o astro que se eletrificou e desafiou o mundo do folk e do rock na metade dos anos 60; o misantropo que passou vários anos longe dos palcos no final dos anos 60, em virtude, primordialmente, de um acidente de moto quase fatal; o gênio ressurgido durante os anos 70, com sérios problemas matrimoniais; e o judeu que se converteu ao cristianismo e resolveu não somente mudar de religião como também salvar a humanidade do inferno, no início dos anos 80. Isso somente para nos atermos aos 20 anos mais criativos da carreira do bardo.
Não é difícil imaginar, observando tantas mudanças, que Bob Dylan, além de um brilhante compositor, é também um inovador, um artista arrojado, que sabe se lançar em novas empreitadas, em vez de se deitar sobre os louros da fama, como tantos outros fizeram antes e depois dele, após emplacar alguns sucessos.
É difícil determinar a magia que o texto e as melodias de Dylan provocam em seus ouvintes. Podemos arriscar, no entanto, alguns palpites. Entre suas diversas facetas, ele cantou contra a injustiça e o preconceito, entoou projetos e sonhos para a humanidade, discutiu relacionamentos, fez juras de amor e de ódio, satirizou os poderosos, socorreu os humildes, profetizou o fim do mundo e a volta do Messias, tudo isso embalado em acordes inesquecíveis e uma poesia quase sobre-humana, em sua perfeição. Cada fã tem uma fase ou álbum favorito na carreira de Dylan, não existe um consenso quanto a isso.
Quando o assunto se volta para letras de música, porém, qualquer lista dos melhores álbuns de todos os tempos que se preze mencionará "Blood On the Tracks". Esse disco contém o maior conjunto de pequenas histórias espetaculares que um ser humano já escreveu, musicou, gravou em estúdio, colocou uma capa e lançou no mercado fonográfico. A genialidade já começa no título, um trocadilho que significa tanto que há sangue nos trilhos de trem — ou seja, que a jornada tem sido dura, sujeita a acidentes, confusões e crimes -, quanto que há sangue nas faixas, ou seja, que as músicas do disco estão carregadas de sofrimento.
E estão mesmo. O disco foi composto em 1975, quando o casamento entre Dylan e Sara, outrora sua musa inspiradora, estava iniciando uma jornada sem volta em direção ao precipício. Um dos filhos de Dylan, Jakob, declarou certa vez em uma entrevista que as violentas acusações em "Idiot Wind" são exatamente o tipo de ofensas que o casal trocava à época, durante as cada vez mais comuns discussões que levaram ao divórcio, alguns anos mais tarde.
Um reflexo imediato que se faz sentir, e que diferencia "Blood on the Tracks" do restante da discografia dylaniana, é que as canções parecem mais carregadas de verdade do que nunca. A dor do cantor é genuína, extrapola a ficção, nos enche de compaixão. Dylan está ferido e sofrendo, incapaz de administrar sua impotência em manter o casamento, que vai se deteriorando, apesar de parecer evidente que ainda existe amor. Esse não é, seguramente, o padrão de sua obra, e é o que torna o disco tão especial. É mais comum vermos um Dylan senhor da situação, partindo sem olhar pra trás, sentindo prazer em ver sofrer quem um dia lhe fez mal. Foi assim que ele ganhou o mundo com "Like a Rolling Stone". Em "Blood on the Tracks" esse geminiano implacável não tem vez e o que vemos é um homem frágil e infeliz, tentando consertar o que não tem mais jeito, uma desgraça que ocorreu por sua culpa.
Um lugar comum no disco é a perspectiva do amante abandonado pela mulher, a quem impôs abusos, dos quais se arrepende e tenta voltar no tempo para consertar os erros. As mulheres do álbum, porém, são fortes, inflexíveis, o que nos leva a supor que Sara manteve-se determinada em face de suas loucuras. Na primeira canção, "Tangled Up in Blue", já percebemos que algo não vai bem com nosso herói, enquanto ele sonha com o amor desperdiçado, "disfarçado de tristeza". Alguns versos adiante, de forma visceral, o cantor declara que tem estado sozinho, mas que o passado sempre esteve ali, logo atrás, e que embora tenha visto muitas mulheres, ela nunca saiu de seu pensamento.
A faixa mais famosa do disco talvez seja "Simple Twist of Faith", onde vemos um amante arrependido por ter ultrapassado os limites da antecâmara dos desejos, cometido adultério, e que agora está pagando o preço de suas aventuras, diante da força inexorável de uma mulher que não aceitará suas desculpas. Está tudo acabado e ele agora come o pão que o diabo amassou. Logo no começo da música ele entrega que o herói gostaria de ter se mantido na linha. Em seguida, através de um belo estratagema, numa planejada confusão de pronomes, percebemos que não é apenas poesia, existe veracidade no relato, quando ele diz "eles caminharam sozinhos pelo velho canal, um pouco confusos, eu me lembro bem".
Uma antevisão do futuro, inevitável — ao menos no entender do cantor, que sofre em sua ansiedade e insegurança -, está contida em "You’re Gonna Make Me Lonesome When You Go", profetizada na lúcida frase "quando algo não está certo, está errado."
Em "If You See Her, Say Hello", fica óbvia a frustração do herói por perder o antigo domínio sobre a amante. Ele parece desgostoso por ter sido cruel e admite que as atitudes dela foram honestas e justas, em virtude de seus abusos. Se o mea culpa é sincero, só podemos supor. Não é o ponto proposto aqui. O preponderante é que, por mais que Bob Dylan tenha sido brilhante em sua carreira, aqui temos um ótimo exemplo de como a fama e o sucesso podem trazer ao artista a sensação de que ele tem o direito de libertar todos os desejos de sua antecâmara, anulando o próprio superego, o que pode ser um erro irremediável.
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