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Lobão: Num álbum épico e urgente, ele faz sua one-man-band

Resenha - O rigor e a misericórdia - Lobão

Por Wendell Soares
Postado em 22 de janeiro de 2016

Nota: 10 starstarstarstarstarstarstarstarstarstar

Falar de um dos maiores músicos brasileiros, há muito, deixou de ser apenas uma opinião sobre sua obra. Virou uma possibilidade imensa de argumentações sócio-políticas, seja para concordar ou atacar. Por que, do alto de seus 57 anos, João Luiz Woerdenbag Filho - o lobão - mostra, em O rigor e a misericórdia, que seu texto permanece afiado e atemporal. E que não irá ceder um milímetro de espaço para um entendimento difuso de suas canções. Por esse motivo, o novo álbum (financiado por crowdfunding) precede o lançamento de seu 3o livro, que o próprio define como uma "narrativa poética-político-musical", onde explica os processos e contextualiza a criação das 14 músicas que dão corpo ao disco.

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A produção é luxuosa, fruto de uma experiência sólida de lobão com os estúdios, onde conseguiu captar um som cristalino e poderoso. Ele ainda tocou todos os instrumentos, numa perspectiva de one-man-band que, se em trabalhos de gente de menor talento pode soar como pretensão e ego, aqui transforma o velho lobo numa gama absurda de novas personas. Com formação clássica e influência setentista, lobão reúne o melhor de seus universos e entrega uma obra épica, urgente, necessária.

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Se não te agrada as opiniões de lobão, permita-se desconsiderar o livro e atenha-se ao álbum. Ainda que o cantor discorde, ambos têm vida singulares, podendo se complementar mas sem exigir a leitura de um para o entendimento do outro.

No Twitter, Lobão respondeu de forma pouco amistosa quando comparado - ainda que do outro lado da corda - seu álbum com o último lançado pelo Titãs, o ótimo Nheengatu (leia resenha aqui). Mas a analogia serve para colocar a discussão em dois pólos distintos. Ambos álbuns tratam da atualidade de forma ferrenha, e do quanto a sociedade se tornou medíocre e rasa quanto a seus problemas. Mas se o discurso dos Titãs apenas situam as questões, lobão é mais ferino: ele aponta os culpados. E para finalizar a distopia, ele abre mão dos riffs de três acordes e da verve punk juvenil (que teima em cercar o grupo paulistano, quando tentam fugir do pop radiofônico da última década) e cria sua ópera-rock recheada de licks, dedilhados e ganchos estilísticos da mais alta estirpe.

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Seus detratores, aliás, usarão o discurso de metade das canções para repetir o clichê de que o músico é um rockeiro reaça decadente. Mas ao usarem deste artifício, ignorarão uma dos maiores conceitos do rock como arma social: ser arbitrário - e nunca conivente - ao governo. Lobão fala com propriedade do que defende, e tal propriedade não exige concordância. Exige questionamento. Argumentação.

O álbum abre com a instrumental Overture - num órgão a la Carl Off ou Wagner - como prenúncio de um hecatombe, e desemboca em Os vulneráveis, uma rocksong clássica, numa vibe que deixaria Jimmy Page feliz pelo solo. A letra aponta para um aviso repaginado que ele, lobão, está vivo, e que "seu impossível nunca o abandona".

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Após insinuar, chega a hora de atacar. Ou cuspir de volta a ofensa. A marcha dos infames utiliza de uma batida marcial, cruzando Queen com Rammstein pra destilar sarcasmo sobre a lista publicada pelo vice presidente do PT, Alberto Cantalice, onde ele figurava ao lado de Gentili e Jabor, dentre outros, como inimigos da pátria. Seria apenas uma resposta, não fosse a contundência do texto e a dramaticidade da interpretação. Esperto que só, a música responde sem dar nome aos bois.
Assim sangra a mata fala sobre o garimpo na Amazônia, e o mellotron dá um nuance quase lullaby à música.

Uma pausa para respirar.

O que es la soledad em sermos nos remete à Chorando no campo, do clássico Vida bandida, mas após cantar todas as possíveis solidões, desta vez lobão parece exorcizar a intenção. Quando diz que a solidão é uma "companhia que inventou só pra sentir" não há amargura na voz. E a letra, vertida para o espanhol, só aumenta essa sensação.

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Na sequência, temos o blues dilacerante de Alguma coisa qualquer. Feito, há cerca de 20 anos, sob encomenda para Cássia Eller, ficou engavetado por todo este tempo. E aqui surge com uma intro flamenca e desemboca num shuffle pesadíssimo.

Dilacerar conversa com "Nostalgia da modernidade", e o título é auto-explicativo. Sob uma base inspirada (com direito a solo dobrado de guitarras), Lobão pondera o amor e a criação como armas poderosas contra o ódio e o exílio.

Os últimos farrapos da liberdade prepara o terreno para a fúnebre A posse dos impostores. Com uma segunda voz oitavada, o riff remete à Eletric funeral, e lobão declama os versos num deboche épico e pomposo. Ainda que remeta à contemporaneidade, é um dos melhores momentos do álbum e possivelmente será das favoritas ao vivo.

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Em ação fantasmagórica à distância, o violão quase samba-choro usa da teoria quântica para uma analogia de que é possível entrelaçar mundos distintos pela aproximação. Paulinho da Viola ou Egbert Gismont ficariam orgulhosos do arranjo.

Profunda e deslumbrante como o sol contempla o astro- rei, numa influência temática com Fat old son do Pink Floyd. O horizonte é de busca, e a letra desenha esta lógica.

Nova pausa para respirar.

Uma ilha na lua fala sobre a simplicidade das coisas, e ao nomear seus três felinos (os tigres mirins, como canta), há uma sutileza bonita em perceber o mundo através das pequenas conquistas. É minha faixa favorita até o momento, e qualquer pessoa que tenha gatos vai se identificar com o universo da canção.

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Feita em homenagem à sua cunhada, Mônica, A esperança é uma praia de outro mar teve a única participação especial do álbum. Seu sobrinho, Puig, é responsável pelo solo, e a canção aborda a tristeza da perda pelo viés do quem vê a esperança viável apenas em outra esfera.
O álbum fecha com a O rigor e a misericórdia, e faz uma ponte interessantíssima com outra canção de lobão: A queda.

Com arranjos de cordas e uma melodia claustrofóbica, enquanto A queda usa do princípio físico dos corpos em repouso (eles sempre irão cair), na faixa-título vocifera que vai "cair pro alto, se arriscar, mesmo com o coração mais triste que o fim dos dias" como se informasse que ele, o lobo, o solitário, não desistiu. E nem pretende. Ao terminar com o religioso verso "aleluia, aleluia", Lobão conversa consigo e obtém a própria resposta: "penso, logo exilo".

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No saldo final, O rigor e a misericórdia merece aplausos por discorrer além da possibilidade de uma análise única. Há múltiplas, e elas ganham nuances próprios a cada audição, podendo estar ao lado de A vida é doce e Vida bandida como um dos favoritos dos fãs.

A escritora russa Ayn Rand, certa vez disse que "a menor minoria na Terra é o indivíduo." E nesse contexto, Lobão fez de seu personagem um ermitão urbano atípico, já que utiliza de sua individualidade para alcançar o coletivo.

Continua sendo um indivíduo plural, mas se absteve das amarras e facilidades do mainstream para se autoconhecer e nos apresentar um ego enorme. Criativo e proporcional ao tamanho de seu talento.

Tracklist
1-Overture
2-Os vulneráveis
3-A marcha dos infames
4-Assim sangra a mata
5-O que es la soledad en sermos nos
6-Alguma coisa qualquer
7-Dilacerar
8-Os últimos farrapos da liberdade
9-A posse dos impostores
10-Ação fantasmagórica a distância
11-Profunda e deslumbrante como o sol
12-Uma ilha na lua
13-A esperança é a praia de um outro mar
14-O rigor e a misericórdia

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