A religiosidade em Tim Maia e John Coltrane: epifanias de um ateu
Por João Affonso
Postado em 07 de maio de 2024
Domingo passado eu estava lavando a garagem e ouvindo "A Love Supreme", obra máxima de John Coltrane, no repeat. Era fim de tarde e, enquanto eu revezava entre esfregar o piso, xingar mentalmente as maritacas e admirar a beleza dessas barulhentas criaturas, aconteceu. Justamente quando o sax de Coltrane ressurgia, no começo da Parte IV, após o longo solo de baixo da Parte III, um raio de sol retardatário me pegou em cheio, fazendo com que eu me sentisse vivo de uma forma que eu não me lembro de ter ocorrido em muito tempo…
Fiquei alguns instantes paralisado, comfortably numb, apenas existindo, respirando e deixando aquela fonte de calor revigorante e a visão do sol por entre as nuvens, entremeados pela música paradisíaca, preencherem toda a extensão do meu ser. Desejava imortalizar aquele instante, chamar minha esposa para compartilhar aquela sensação. Ela teria ainda mais certeza de que a pouca sanidade que me resta foi pro vinagre, então deixei para lá… Contentei-me em permanecer ali, saboreando aquela experiência sensorial altamente prazerosa.
Uma verdadeira epifania de amor! Amor pela vida, pela natureza e pela música.
Passei os dias seguintes distraído por outras preocupações, mas uma ideia ficou remoendo em meu cérebro, como um joguete, na forma de uma estranha pergunta, cuja resposta eu não precisava buscar, por saber de cor: o que Tim Maia e John Coltrane têm em comum, além do fato óbvio de serem monstros sagrados da música?
Há quase (leia bem, quase, pois em tudo que se refere a música as discussões são intensas e as unanimidades, raras) um consenso sobre ambos terem lançado seus melhores trabalhos sob o efeito de uma espécie de epifania religiosa. Muitos outros compositores consagrados, como Bob Dylan e Johnny Cash, tiveram seus surtos de religiosidade refletidos em grandes trabalhos, mas nem todos com a produção subsequente de álbuns tão definitivos em suas carreiras.
"A Love Supreme", de 1965, e "Tim Maia Racional", concebido dez anos depois, são frutos de um renascimento de seus criadores, após um período de consumo extremo e altamente destrutivo de drogas pesadas — Tim na cocaína e John na heroína — , que os levou ao fundo do poço e quase desta para melhor.
O americano teve uma viagem espiritual mais tranquila e duradoura, após o período mais grave de vício, quando chegou a ter uma overdose e foi demitido da banda de Miles Davis. Foi na busca por deus que ele encontrou a tranquilidade que faltava à sua alma. "A Love Supreme" é um esforço em traduzir essa energia suprema, que John dizia encontrar em todas as religiões, sem predileção por esse ou aquele deus, e a tarefa de entregar tal dádiva a outras pessoas que pudessem estar passando por uma necessidade parecida com a que ele vivenciou.
É uma teoria antiga minha que músicos de jazz nomeiam muitas de suas obras baseando-se na sequência de notas da melodia principal, como se fossem sílabas, formando pequenas frases. Poderia nomear dezenas de exemplos, mas isso fica para um outro texto… Aqui isso é estendido e declarado: no quarto e último movimento de "A Love Supreme", denominado "Psalm", John recita em seu sax uma poesia que escreveu para deus e que está no encarte do álbum. Cada nota representando uma sílaba de seus versos. Classe, estilo e lirismo, a serviço de sua viagem espiritual.
Com o brasileiríssimo Tim Maia, a coisa não poderia ser tão tranquila. Ou então não seria Tim, é claro. O síndico conseguiu se livrar do vício em cocaína (e o que mais surgisse pela frente) após se envolver com o "médium" Manoel, um rematado charlatão, fundador da chamada "Cultura Racional", a qual o próprio Tim chamaria, anos depois, de "baixo espiritismo". Graças à fama — e dinheiro — de seu seguidor, Manoel trouxe Tim para o centro da seita, como principal porta-voz daquela patacoada.
Enquanto Coltrane produziu um disco sóbrio, em que sua viagem de despertar religioso se restringe ao fervor empolgante que eleva suas melodias a um patamar sacrossanto, Tim enveredou por um caminho enviesado e quase cômico: "Tim Maia Racional" é recheado de letras extravagantes, de um simbolismo raso e pobre, influenciadas pelo livro "Universo em Desencanto", espécie de "bíblia" da tal Cultura Racional. Tive a pachorra de comprar o bendito "livro", cuja leitura Tim exalta à saciedade. Trata-se de um precário conto da carochinha, redigido seguramente sob efeito de ácido estragado, por alguém semialfabetizado… Algo realmente abaixo da crítica.
Ocorre que as harmonias e melodias do disco triplo de Tim são das melhores de sua brilhante carreira, e sua voz, limpa dos entorpecentes, após anos de abuso, está melhor do que nunca. Coltrane teve mais classe, recorrendo aos livros sagrados do budismo e hinduísmo, entre outros, como fonte de inspiração. Tim, como o furacão que sempre foi, entrou e saiu da seita em questão de meses, mas o período que passou como devoto fiel do parlapatão Manoel foi de total submersão: cortou a barba, passou a se vestir de branco, proibiu palavrões, álcool e até mesmo cigarros entre os membros de sua banda, que também foram submetidos ao figurino Racional para suas apresentações. Qualquer demonstração de inconformismo com esses novos paradigmas deixava claro para Tim que seu interlocutor estaria "magnetizado" pelas impurezas do mundo… Uma loucura! Mas foi essa insanidade que manteve Tim vivo e trabalhando, enquanto eliminava a química de seu organismo.
Independentemente da pouca — ou nenhuma — credibilidade de que gozem, as religiões têm dessas coisas, salvam vidas, ajudam desorientados e náufragos. Isso é inegável. Apesar dos dogmas muitas vezes baseados em bobajadas, do interesse financeiro de seus empreendedores e do mal que causam para o avanço da sociedade em nome do conservadorismo, para quem está se afogando, a palavra de deus surge como uma tábua de salvação.
Se além de salvar gênios da perdição, fervores religiosos ainda são responsáveis por trechos espetaculares de virtuosismo musical extasiado, como no terceiro movimento de "A Love Supreme" ou em "Que Beleza", tanto melhor…
E onde estão as epifanias de um ateu, que dão título a este ensaio? Ué, pensei ter deixado claro no decorrer do texto: meu despertar espiritual não está relacionado a nenhum deus, mas à vida, à natureza e à obra imortal de músicos brilhantes como os dois homenageados de hoje.
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