O que quer dizer a letra de "As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor"
Por Bruce William
Postado em 07 de novembro de 2024
Ao ser entrevistado por Nelson Motta em 1974, em vídeo que pode ser conferido no canal oficial, Raul Seixas explica que seu então novo disco chama-se "Gita" e é um trabalho completamente diferente do "Krig-Ha, Bandolo!", lançado no ano anterior. "E a música que eu gosto mais chama-se 'As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor'", diz Raul, exibindo em seguida uma versão em voz e violão da música.
Como bem explica e com muito mais detalhes Barata Cichetto (Luiz Carlos Barata Cichetto) em um ensaio publicado no seu site, o Barataverso, lançado em meio à repressão da Ditadura Militar, "Gita" foi um dos trabalhos mais importantes do Raul Seixas, trazendo faixas como "Medo da Chuva", "Prelúdio", a faixa-título que se tornou um sucesso imediato e a canção que viraria o hino do "Raulseixismo" posteriormente: "Sociedade Alternativa".
E o álbum inclui também a canção "As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor", uma crítica poderosa à manipulação e controle impostos pela sociedade e pelo sistema. Nela, Raul usa simbolismos e metáforas para expor a opressão e a alienação, abordando a complexidade e as contradições da sociedade moderna, sendo as pessoas ao mesmo tempo "carrascos e vítimas" de um sistema que as obriga a adotar múltiplas personas para sobreviver.
A canção reflete sua visão sobre a fragilidade da civilização, comparando-a a um computador frágil, e critica as lutas superficiais que ignoram as raízes dos problemas, reforçando a mensagem de resistência e autenticidade em meio à opressão cultural da época. E como Raul nunca revelou qual a relação que ele tinha com Asgard, que seria a "Cidade de Thor", Chichetto acredita que se tratava apenas de mais uma piada.
Felipe de Melo Gomes Feitosa relata em seu Trabalho de Conclusão de Curso que leva o mesmo nome: "A música segue um ritmo de baião, alternando-se entre os versos (que são cantados juntamente com um violão que marca as cabeças dos compassos) e a marcação forte do ritmo (com a voz em uma função secundária). Esta estrutura é típica dos Repentes nordestinos. A letra é dividida em doze estrofes, que por sua vez são divididas em quatro versos cada." Felipe prossegue dizendo que na primeira estrofe: "O eu-lírico discursa sobre os atos das camadas dominantes. "Tá rebocado meu compadre" / "Como os donos do mundo piraram" / "Eles já são carrascos e vítimas" / "Do próprio mecanismo que criaram".
Já o segundo parágrafo tem uma interpretação diferente feita por Diogo Siqueira no blog Corrimão Invisivel: "O monstro SIST* é retado/ E tá doido pra transar comigo/ E sempre que você dorme de touca/ Ele fatura em cima do inimigo". Diogo observa que SIST é o "sistema", e nota que a palavra "transar" teve seu significado um tanto distorcido: "Não podemos dizer 'modificado', porque no fundo continua significando a mesma coisa, 'troca', 'compartilhamento'. Transar aqui vem justamente nessa idéia, não ligada ao sexo, mas à troca (de experiências), por exemplo. Dormir de touca era costume dos burgueses (que tinham dinheiro pra comprar toucas. Dinheiro tal que estava sendo ganhado de você ou não)."
Acontece que, para Raul Seixas, "As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor" representa uma crítica profunda à sociedade, abordando temas como poder, controle e a necessidade de autossuficiência. Ele utiliza a letra para questionar o domínio dos "donos do mundo", os quais são vistos como "carrascos e vítimas" de seus próprios sistemas. Essa aceitação e adaptação ao sistema é uma constante, refletindo o sentimento de que aqueles que tentam fugir de suas armadilhas acabam inevitavelmente aprisionados.
O trecho seguinte, "A arapuca está armada/ E não adianta de fora protestar/ Quando se quer entrar num buraco de rato/ De rato você tem que transar", significa que: "Como a arapuca da sociedade administrada está posta, como as coisas já estão decididas a priori, antes de qualquer coisa, então protesto não prospera? Melhor é transar com o monstro sist para, dentro dele, dele se aproveitar?" Ao menos foi o que concluiu Wilson Correia em texto publicado no Recanto das Letras.
A letra também reflete sobre a complexidade e fragilidade da civilização moderna, comparando-a a um computador que, por um simples descuido, poderia ser destruído. Raul compara a sociedade a um "planeta como um cachorro", que reage violentamente quando seu limite de tolerância é atingido. A imagem do "buraco de rato" é emblemática, sugerindo que, para sobreviver dentro do sistema, é preciso se adequar ao comportamento imposto, muitas vezes abrindo mão de valores próprios. Para ele, a verdadeira luta está nas raízes dos problemas, nos "troncos" ao invés dos "galhos", simbolizando a importância de uma visão mais profunda das questões sociais.
Barata Cichetto comenta outro trecho mais adiante: "Tem gente que passa a vida inteira/ Travando a inútil luta com os galho/ Sem saber que é lá no tronco/ Que 'tá o coringa do baralho", que para ele faz alusão clara "com relação àqueles que lutam de forma pequena, ineficaz, brigando por coisas pequenas quando o que precisa ser atacado é um mal maior".
Outro trecho comentado por Cichetto é o que diz: "Quando eu compus fiz Ouro de Tolo/ Uns imbecis me chamaram de profeta do apocalipse/ Mas eles só vão entender o que eu falei/ No esperado dia do eclipse", explicando que, para ele: "É possível que a sua intenção [de Raul] foi de dizer que as pessoas só o iriam compreender no dia do fim do mundo. Raul cita sua própria obra e xinga aqueles que não entenderam, na sua visão, o papel que ele representava."
Voltando novamente ao TCC de Felipe de Melo Gomes Feitosa: "Na décima estrofe põe sua posição em relação à 'linha evolutiva da música popular brasileira': 'Acredite que eu não tenho nada a ver/ Com a linha evolutiva da Música Popular Brasileira/ A única linha que eu conheço/ É a linha de empinar uma bandeira'. Felipe explica que, para finalizar essa canção, o eu-lírico aponta para uma ideia de que nada pode ser entendido de forma absoluta e imutável, enquanto no trecho seguinte - 'Eu já passei por todas as religiões/ Filosofias, políticas e lutas/ Aos 11 anos de idade eu já desconfiava/ Da verdade absoluta' - assim como Raul passou por várias filosofias políticas, a verdade sempre teve de passar por provas, que são dadas pelo movimento do real."
O questionamento da moralidade e da identidade é outro ponto central. Raul aborda a relatividade da verdade, apontando que já havia desconfiado das "verdades absolutas" desde cedo. Ele percorre diversas ideologias e correntes de pensamento, sugerindo que a verdade é uma construção variável. Em meio a essa busca por significado, ele revela uma postura crítica quanto ao conformismo e a superficialidade dos estereótipos, questionando a própria "linha evolutiva" da MPB e as influências culturais como um todo. Sua única linha, segundo ele, é a de "empinar uma bandeira", indicando sua liberdade criativa e autonomia em relação às tradições musicais e sociais.
Por fim, Raul se descreve como "Raul e Raulzito", indicando sua dualidade e flexibilidade em lidar com diferentes perspectivas. Ele entende que, para aprender a "jogar o jogo dos ratos", é preciso transitar entre extremos - de "Deus ao lobisomem". Com isso, reforça que, para sobreviver em uma sociedade tão cheia de dualidades, é necessário aprender a adaptar-se sem se perder completamente, encerrando de forma enigmática essa canção, rica em metáforas e crítica social, que é uma das que mais expõem sua filosofia e visão sobre os desafios de viver em uma sociedade complexa e contraditória.
Ensaios citados no texto:
"1974: Cinquenta Anos de Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor" de Barata Chichetto;
"As Aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor", TCC de Felipe de Melo Gomes Feitosa;
"Corrimão Invisível" de Diogo Siqueira.
"Raul Seixas: aventuras e indagações..." de Wilson Correia.
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