A tristeza de Buddy Guy
Por Carlos Augusto de Oliveira
Postado em 24 de junho de 2003
Salve, salve, blues fãs! Já pude sentir o poder da Whiplash logo na minha primeira coluna. Foram muitos os e-mails recebidos. Alguns de amigos me parabenizando pelo novo espaço. Outros de fanáticos pelo blues e que ficam catando informação em todo canto da Internet. E a mensagem mais interessante eu reproduzo logo abaixo. Ela foi motivada por um único comentário. Dizia eu que o "Ano do Blues" pode desfazer algumas injustiças, lançar luz sobre os verdadeiros pais do rock e devolver aquele tal de Elvis Presley pro limbo de onde jamais deveria ter saído".
Por esta frase fui devidamente espinafrado por um leitor anônimo cujo nick é marsantsoul2002 e cuja assinatura é SPEPS que eu imagino que signifique "Sociedade Protetora dos Elvis Presleys (Sofredores? Sobreviventes? Sacaneados? Sacripantas?) Este Sr. SPEPS não deixa de ter razão. Eu admito o preconceito contra o Elvis. Não vejo importância artística alguma no seu trabalho. Meus amigos me chamam a atenção pra banda que acompanhava o Elvis em seu início de carreira, me falam pra prestar atenção no guitarrista... Mas eu não presto. Percebo, sim, a importância mercadológica do rebolativo rei do rock.
Eu não estou me justificando (afinal, preconceitos não têm justificativa). Mas, se uma máquina do tempo me levasse a 1954 eu preferiria Chicago a Memphis, preferiria ver Muddy Waters ou Howling Wolf, Big Joe Turner, Chuck Berry ou Little Richard. Fats Domino, talvez. A banda de Tiny Bradshaw, o autor da mais que conhecida "Train Kept A-Rollin'". Ou preferiria ver Arthur "Big Boy" Crudup, o autor de "That's All Right Mama", "So Glad You're Mine," e "My Baby Left Me", três dos hits do Elvis. O próprio Elvis não estaria entre minhas primeiras opções. Tenho consciência do argumento contrário. Os fãs do Elvis vão dizer que se hoje eu conheço estes nomes citados foi porque ele gravou estas músicas, deu visibilidade aos demais junto ao público branco. Pode ser. Continuo preferindo os originais.
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Assunto: Comentário infeliz
Data: segunda-feira, 17 de março de 2003 22:12
Bom Dia Sr. Carlos Augusto!
Acabei de ler sua reportagem sobre o blues no portal ibest. Fiquei muito feliz quando soube que este é o ano do blues, ritmo ao qual gosto muito, tanto melodicamente quanto no estilo dos artistas negros em geral. Mas fiquei um tanto quanto decepcionado quando o sr. se referiu a um artista ser jogado devolta ao limbo onde nunca deveria ter saido. Faço parte de um fan clube desse artista, e como tal não poderia deixar de manifestar o meu protesto quanto ao seu comentário equivocado e gostaria de esclarecer algo:
Em nome dos 485 fans clubes credenciados por Graceland em todo mundo, e em nome de todos os fans e admiradores do artista Elvis Presley, deixar a seguinte nota como forma de esclarecimento de um fato histórico da cronologia musical e da transição entre os estilos musicais blues/rock.
Não tenha dúvida da importância de Elvis na transição, foi o primeiro branco com o som de negro a cativar as pessoas e a mídia para fazê-las curtir o som dos guettos. Em vários shows em 1956 Elvis mesmo atribuia a energia deste som graças aos negros. Ele não roubou nada de ninguém Sr. Carlos, foi um artista completo fazendo sucesso com vários estilos ao mesmo tempo, rock, blues, country, gospel... inclusive Grammy ele ganhou com música gospel ("How great thou art") portanto infeliz este seu comentário maldoso para com um artista que sempre reconheceu a importância dos negros e nunca os colocou em segundo plano, ele apenas interpretava suas canções tão bem a ponto de ser confundido com um negro. Se há um culpado pelo esquecimento dos primeiros artistas "bluesblack" é a sociedade racista da época. Nossa missão é mostrar hoje às pessoas que eles existiram e eram muito bons, hoje a sociedade é mais tolerante menos racista vão saber reconhecer a importância deles, mas não se deve pra isso derrubar alguem cuja matéria não pertence a este mundo mas seu espírito que o Sr. não tenha dúvida está em 1.645.000.000 de discos vendidos em todo mundo... como ignorar isso e jogar no limbo, não se engana o público por 50 anos. Esperamos que o Sr. reconheça o comentário infeliz e que não cometa esta gafe em matérias futuras.
Atenciosamente S.P.E.P.S.
Buddy Guy está triste
Em declarações recentes o grande Buddy Guy praticamente decretou a "morte" do blues. Ele se mostra bastante triste com a atual situação, bem ao contrário dos fãs, que estão felizes com lançamentos recentes, incluindo aí mais um fantástico álbum do próprio Buddy Guy.
É verdade que o blues já teve dias mais gloriosos. Podemos lembrar dos anos 20 do século passado, quando a venda dos bolachões de 78 rpm "enriqueceram" figuras como Bessie Smith, a Imperatriz do Blues. E as aspas estão aí colocadas pra evidenciar a relatividade da "riqueza". O mercado era bem restrito, era música feita por e para negros. Bessie tinha grana suficiente para fechar um botequim e pagar a cachaça de todos. E ainda sair com um cara diferente a cada noite, apesar da pouca estatura, do peso um pouco além do ideal, da feiúra e de ser casada...
Esta primeira fase de prosperidade acabou com a quebra da Bolsa em 1929. E o grande fluxo migratório provocado pelo desemprego nos anos subsequentes acabou gerando um novo bom momento para o blues logo após a Segunda Guerra Mundial.
Se Bessie Smith já fazia um blues mais urbano, com arranjos mais sofisticados, as gravações de campo produzidas principalmente por John Lomax e seu filho Alan para a Biblioteca do Congresso apresentaram ao mundo toda a crueza do blues rural feito no Delta do Mississippi. O grande Robert Johnson representou a transição do blues rural para o blues urbano produzido em Chicago no pós-guerra. A industrializada Chicago necessitava da mão de obra que estava sobrando no Sul e estes empregos estáveis, melhor remunerados que o trabalho na roça, geraram uma classe média negra, com outros hábitos e outras necessidades, que não queria mais ouvir falar das tristezas e agruras do campo. Já no início dos anos 30 o texano T-Bone Walker experimentava seus primeiros acordes numa guitarra elétrica, na mesma época em que Charlie Christian fazia o mesmo no jazz. Estava preparado o terreno para o grande sucesso que obteriam Willie Dixon, Muddy Waters, Howling Wolf e tantos outros nomes.
O impacto do som de Chicago foi tão grande que atingiu também a juventude branca. Se eles não podiam freqüentar os bares em que rolava este som, podiam comprar os discos e exigir que estes tocassem nas rádios. A Billboard deixou de chamar estes discos de "Race Records" e procurou um nome menos racista, chegando ao "neutro" Rhythm and Blues. E um esperto DJ, Alan Freed, nascido na Pensilvânia e trabalhando em Cleveland, Ohio, usou uma antiga gíria pra chamar o som de rock and roll. Alguns caipiras brancos adicionaram uma porção "country" na mistura e estava criado mais um modismo, passageiro como todas as modas.
O Blues sente o golpe, perde terreno pros brancos e vai buscar novos mercados, tendo a Europa como destino principal. No final dos 50 e início dos 60 acontece o "redescobrimento" por parte de Universidades dos velhos "field records". Organizam-se Festivais Folclóricos onde se apresenta, por exemplo, T-Bone Walker, com um banquinho e um violão e a velha temática rural. As ruidosas guitarras ele plugava em solo europeu. E é na Europa, em Londres pra ser mais específico, que o Blues tem seu novo bom momento. A partir do trabalho de pioneiros como Lonnie Donegan, Chris Barber, Alexis Korner e John Mayall, surge toda uma nova geração que, baseada no som de Chicago, faz o blues atingir um novo patamar e reconquistar o grande público. Eric Clapton, Cream & Yardbirds; Rolling Stones; Peter Green & Fleetwood Mac; Eric Burdon & Animals; Led Zeppelin... O blues ganha tonalidades psicodélicas e cruza novamente o Atlântico, com renovada energia.
Na América temos um B. B. King fazendo 300 shows por ano, os texanos ganhando espaço, Paul Butterfield já adicionando brumas psicodélicas às raízes blues. Jimi Hendrix se preparando pra fazer explodir em Londres todo um arco-íris de novas possibilidades sonoras. Pra tudo se acabar na grande ressaca da disco-music e do punk rock. E se os anos 80 foram trágicos para o rock, o blues conheceu Stevie Ray Vaughan e seu som texano-hendrixiano. Foi uma curta carreira, abreviada pela trágica combinação de mau tempo, um helicóptero e uma pedra no meio do caminho. Mas foram 10 anos que deram cara nova ao blues e fixaram este gênero como universal. O blues hoje não tem fronteiras. É cultuado e praticado em quase todo o mundo. Pode ser encontrado em estado puro ou misturado aos mais diversos ritmos regionais.
O blues não é mainstream. Aparece esporadicamente nas telas de TV. Pode ser ouvido em rádios apenas em horários especiais. Não vende milhões de discos. Esta pode ser a explicação pra tristeza do Buddy Guy. Tanto trabalho pra ser reconhecido apenas no gueto. E o velho Buddy não trabalhou pouco. São 40 discos em 50 anos de carreira. Em seu penúltimo trabalho, "Sweet Tea", presta uma belíssima homenagem ao blues feito no Norte do Mississippi e que só agora está recebendo a devida divulgação e o merecido reconhecimento. E este trabalho mais novo, o recém-lançado "Blues Singer" é mais uma obra-prima. São releituras acústicas dos clássicos da época de ouro de Chicago. Tem "Hard Time Killing Floor" e "Crawling Kingsnake", por exemplo e as colaborações de Eric Clapton e B. B. King. Talvez esta seja a razão da tristeza do Buddy, ter a consciência do dever cumprido e não ver o reconhecimento; saber que o disco é bom e saber que não vai vender tanto quanto merece; saber que vai tocar pouco em rádio e não vai ter um clip rodando nas mtv's do mundo. O reconhecimento da legião de fãs do blues é pouco pra grandeza da obra e da figura do Buddy Guy, isto eu reconheço. E posso entender a amargura das entrevistas recentes. Só não posso concordar com um amigo meu, o jornalista, escritor, letrista e poeta Otávio Duarte que trocadilhou: "no more blues = chega de saudades".
Até a próxima e ouçam Buddy Guy.
Blues Before Sunrise
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