Projeto Interlocuções Musicais: Educação, música e Projeto de Vida

Ser Professor no Brasil sempre foi um desafio. É uma responsabilidade imensurável participar do processo de formação integral do ser humano, desde o trabalho com as primeiras palavras, até a construção da consciência político-ideológica, seja ela qual for. Claro que todo esse processo educacional tem o seu início dentro de casa, que é o nosso primeiro contato com a sociedade e com o ser humano. Logo, o Professor não é o único a participar da formação do ser humano, mas tem a sua parcela nesse complexo processo.

Enfrentar os baixos salários, a falta de reconhecimento do poder público, dos alunos e das famílias, além de enfrentar algumas disputas de egos e ver a falta de profissionalismo de alguns dos servidores, são alguns dos desafios que boa parte da população brasileira já conhece, ou acredita conhecer. Mesmo com tanta adversidade, também existem os bons Professores, os bons alunos, os bons pais e as boas escolas. Aliás, não podemos ter uma única visão sobre qualquer assunto debatido, tendo em vista que a história é feita por diferentes pontos de vista de diferentes pessoas, tudo tem o seu lado bom e o seu lado ruim.

Em 2021 é necessário refletir sobre outro desafio que tivemos que enfrentar: a pandemia da COVID-19, ou melhor, esse é um desafio que o mundo inteiro ainda está enfrentando (desde março de 2020). Muitos perderam pessoas queridas e os seus empregos, outros tiveram que se reinventar, ou se ressignificar, enfim, ainda estamos em um cenário totalmente volátil e incerto. Desde março de 2020, os atores das escolas estão trabalhando incansavelmente, sejam eles em públicas ou em particulares, e todos tiveram que se adaptar ao "novo normal", se reinventar, replanejar. Muitos alunos, diante de tamanha mudança, também se dispuseram entenderam o contexto pandêmico e abraçaram os desafios. No começo de tudo, alunos e professores tiveram algumas dificuldades técnicas, como falta de aparelhos celulares ou notebooks, internet de boa qualidade, a falta de direcionamento das secretarias estaduais de educação, que também tentavam encontrar soluções. Num movimento de tentativas, erros e acertos, os direcionamentos chegavam e novos alinhamentos eram feitos: a internet foi oferecida para os alunos e Professores, que por vez ganharam subsídios para a compra de equipamentos melhores. Aos poucos tudo foi se ajeitando. Mas a intenção desse artigo não é falar das ações governamentais, lembrando que já dissemos que tudo tem o seu lado positivo e negativo. A minha intenção é contar sobre uma prática educacional que deu certo, mesmo diante de tanta dificuldade. Fomos resilientes e aprendemos errando, aprendemos acertando, um dos objetivos centrais quando pensamos em processo educativo.

Antes de mais nada, meu nome é Felicce Fatarelli, sou Professor de História, Filosofia, Sociologia, além de Pedagogo. Atualmente, sou Mestrando em Educação, Arte e História da Cultura, pela Universidade Mackenzie, e leciono nas redes particular e pública do Estado de São Paulo há 20 anos. Desde 2020, leciono as novas disciplinas que fazem parte dos itinerários formativos da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), que são o conjunto de disciplinas, projetos, oficinas, núcleos de estudo, entre outras situações de trabalho, que os estudantes poderão escolher nos ensinos fundamental e médio. As disciplinas são divididas em "Projeto de Vida", "Tecnológicas" e "Eletivas", esta última escolhida pelos estudantes, pois não faz parte do perfil curricular do curso.

Ao ter como ponto de partida os diferentes perfis de juventudes, devemos considerar que:

As escolas devem considerar as culturas juvenis, a diversidade, a singularidade de cada estudante, além de desenvolver a autonomia, a responsabilidade, o protagonismo e o projeto de vida dos alunos." (Inova Educação, p. 4, 2019)

Considerando as concepções pedagógicas citadas no documento, escolhemos trabalhar a música como prática cultural, visto que a lei 11.769, de agosto de 2008, estabelece sua obrigatoriedade nas escolas de educação básica. Sempre coloquei umas "pitadas" de música em minhas aulas, aliás, um dos fatores por ter feito as faculdades de história e filosofia foi a música, mais precisamente, o Rock and Roll. Cresci ouvindo The Beatles, Creedence, The Rolling Stones, Majority One, e aos poucos fui conhecendo Deep Purple, Led Zeppelin, e dando o meu juízo de valor à maior de todas as bandas: The Doors. Muitas bandas só tive acesso graças à ajuda de um amigo de infância, que tinha uma bela coleção de discos e cds. Dessa coleção, tive acesso a álbuns do Uriah Heep, Grand Funk Railroad, entre outras pérolas. Aprendi novas culturas, pensadores, histórias, comportamentos, etc. Posso afirmar que a música, ou melhor, o Rock and Roll, faz parte da minha formação como ser humano.

Voltando para o ano de 2020, ensinei sobre música como prática cultural, e de maneira remota, apenas com o diálogo sobre teoria. Por isso sentia que faltava algo; mesmo com toda a facilidade e diversidade de vídeos disponíveis no Youtube não era possível o desenvolvimento da prática musical, de tocar e conhecer instrumentos. Sabendo que as escolas manteriam o ensino remoto, repensei as minhas práticas pedagógicas para o ano de 2021 e decidi convidar músicos profissionais para trocarem experiências durante as nossas aulas, que ainda aconteciam de maneira remota. Criei um projeto chamado "Interlocuções Musicais", que tinha como prática a troca de conhecimentos não somente musicais, mas experiências de vida que só a música proporcionou para os convidados. A princípio, pensei em convidar apenas amigos que são músicos, ou que vivem com algo ligado à música, mas diante de tanta tecnologia e facilidades, decidi sair da minha zona de conforto. Ao observar o Instagram, vi que muitos artistas postavam diariamente imagens e vídeos sobre os seus trabalhos, participavam de lives, e interagiam com alguns fãs.

Observando tudo isso, decidi criar um perfil, escrevi um breve texto sobre as aulas remotas, sobre as dificuldades, como seria o projeto, e enviei para alguns artistas. Muitos não deram retorno, porém entendo perfeitamente como deve ser complicado para os mesmos responderem todos os posts e mensagens, além da possibilidade de ser um convite fake, afinal, vivemos em uma época em que as fake News e o ódio são disseminados constantemente nas redes sociais.

O primeiro artista que gentilmente respondeu a minha mensagem foi o Edu Falaschi, que só por ter respondido, deixou-me feliz. Marcamos até data e hora para a aula acontecer, de maneira remota, pelo Googlemeet, mas infelizmente não aconteceu. Acredito que por estar muito atarefado com o lançamento do belíssimo álbum "Vera Cruz", a aula conjunta não aconteceu, no entanto, como já mencionado, só pelo retorno, estou contente. Outros artistas que deram retorno ao meu convite, mas que não participaram por terem agendas cheias foram o grande baterista Aquiles Priester, Canisso, baixista da banda Raimundos, Jimmy London (Jimmi & Rats) e o comediante Márcio Ballas. Todos foram gentis ao responder o meu convite. Após o envio de algun para a participação do projeto, tive o aceite de importantes ídolos da música brasileira e mundial. Quer saber quem participou ? Continue a leitura!

O projeto "Interlocuções Musicais" teve o seu início oficial no dia 10 de maio de 2021, às 15h, pelo Googlemeet, com a participação de Raffa Machado, grande músico e amigo, que faz parte da banda Beatles 4Ever, a maior banda brasileira cover dos Beatle e com XX alunos do ano XX, da escola XX. Raffa, que hoje mora em Portugal, foi extremamente simpático e atencioso, falou sobre a sua história de vida, as suas bandas e respondeu as perguntas de todos os alunos.

Adriano Lourenço Barbosa | Airton Lopes | Alexandre Faria Abelleira | Alexandre Sampaio | Alex Juarez Muller | André Frederico | Ary César Coelho Luz Silva | Assuires Vieira da Silva Junior | Bergrock Ferreira | Bruno Franca Passamani | Caio Livio de Lacerda Augusto | Carlos Alexandre da Silva Neto | Carlos Gomes Cabral | Cesar Tadeu Lopes | Cláudia Falci | Danilo Melo | Dymm Productions and Management | Efrem Maranhao Filho | Eudes Limeira | Fabiano Forte Martins Cordeiro | Fabio Henrique Lopes Collet e Silva | Filipe Matzembacker | Flávio dos Santos Cardoso | Frederico Holanda | Gabriel Fenili | George Morcerf | Henrique Haag Ribacki | Jesse Alves da Silva | João Alexandre Dantas | João Orlando Arantes Santana | Jorge Alexandre Nogueira Santos | José Patrick de Souza | Juvenal G. Junior | Leonardo Felipe Amorim | Luan Lima | Marcello da Silva Azevedo | Marcelo Franklin da Silva | Marcio Augusto Von Kriiger Santos | Marcus Vieira | Maurício Gioachini | Mauricio Nuno Santos | Odair de Abreu Lima | Pedro Fortunato | Rafael Wambier Dos Santos | Regina Laura Pinheiro | Ricardo Cunha | Richard Malheiros | Sergio Luis Anaga | Silvia Gomes de Lima | Thiago Cardim | Tiago Andrade | Victor Adriel | Victor Jose Camara | Vinicius Valter de Lemos | Walter Armellei Junior | Williams Ricardo Almeida de Oliveira | Yria Freitas Tandel |

No dia 17 de maio, Don Castro, músico, compositor, e pastor presbiteriano, presenteou-nos com o seu bom humor, criatividade e carisma. Mais de 70 pessoas estavam na sala virtual, entre alunos, pais, professores e amigos (de quem? dos alunos, seus? dos pais?). Importante destacar que a escola fica em um bairro periférico de São Paulo, e mesmo diante de tantas dificuldades, os alunos estavam empolgados e felizes.

Felipe Malagutti foi o terceiro a participar do nosso projeto, em 24 de maio, às 14h. Multi-instrumentista, e integrante de diversas bandas, entre elas, The Rolling Stones Cover Brasil. Mais de uma hora de boa conversa, belas histórias e, claro, um pouco de música. Felipe, com seu afinadíssimo violão, tocou grandes clássicos do Rock and Roll. Mais uma aula com boa participação dos alunos e responsáveis.

Outro artista que aceitou o meu convite foi nada menos do que Felipe Machado, guitarrista do Viper. A aula aconteceu no dia 31 de maio, às 19h. Felipe, que desde o nosso primeiro contato foi atencioso, presenteou-nos com uma belíssima aula sobre o início do Heavy Metal em São Paulo, do surgimento do Viper e toda a sua história e felicidade de tocar no Rock In Rio. Além de ser um músico com excelente nível, Felipe é também escritor e comentou sobre os seus livros e prêmios. Foram 60 minutos maravilhosos! Super atencioso e simpático, compartilhou conosco Felipe seu vasto conhecimento.

Lucas Rodrigues, um velho amigo e excelente guitarrista, foi o quinto músico a participar do projeto. O dia 7 de julho foi recheado de histórias e solos de guitarra. Lucas contou-nos sobre a sua origem humilde, as suas primeiras guitarras e acordes, e de como a música foi importante para a sua formação escolar, até a constituição de sua família e projetos.

Na semana seguinte, dia 18 de julho, a música ficou em segundo plano, e partimos para uma aula voltada para a economia doméstica, com a participação de Evandro Mello, CEO e fundador da ONG Multiplicando Sonhos. Evandro, assim como todos os participantes, foi carismático, atencioso, e nos ensinou muito sobre não desistir dos nossos sonhos, e que tudo é possível, basta estar focado. O intuito desse encontro é o de fomentar a busca por projetos de vida, que podem nascer em conversas como a que vivenciamos, novos insights, pesquisas, dúvidas dentre outras possibilidades.

Chegamos ao dia 21 de junho, e fomos presenteados com a participação de Clemente Tadeu, guitarrista e vocalista de duas grandes bandas que fazem parte da história da música brasileira, os Inocentes e a Plebe Rude. Logo na primeira mensagem o convidando para participar do projeto, Clemente foi muito receptivo, aceitando o convite "com o maior prazer", segundo sua própria fala. A aula foi perfeita! Mais uma aula sobre história do Brasil, Punk Rock, mídia e diferentes assuntos. Assim como os demais artistas, Clemente foi atencioso e divertido, permitindo que toda a turma interagisse por meio de perguntas e dúvidas.

Chegando à penúltima aula do projeto "Interlocuções Musicais", Paula Tikami, musicista, historiadora e dona de uma voz singular e encantadora, contou-nos histórias sobre as suas origens e influências, como chegou ao Heavy Metal e a importância de André Matos não somente em sua carreira artística, mas também em sua vida. Uma das mais belas homenagens ao nosso eterno maestro. Bem humorada e atenciosa, Paula encerrou a aula cantando a fantástica Tears of the Dragon, de Bruce Dickinson.

Foram dois meses fantásticos, de muito aprendizado, de muita troca, e com algo inacreditável que estava por vir. Durante os meses de maio e junho, enviei diversos convites para diferentes artistas. Cantores de Hip Hop, Forró, Sertanejo, Funkeiros, entre outros, e no meio desses convites, um despretensioso tornou-se o mais ousado: o famoso Blaze Bayley! Sim, ele mesmo! Uma das maiores vozes do Heavy Metal mundial, ex-vocalista do Iron Maiden. Após enviar o convite pelo Instagram do cantor, recebi como retorno o e-mail do seu produtor, que gostaria de saber um pouco mais sobre o projeto. Enviei um e-mail explicando sobre o objetivo das aulas, sobre as nossas dificuldades e desafios, e que seria algo rápido. Prontamente, a produção de Blaze enviou um e-mail agradecendo ao convite, mas que palestras são cobradas, o que estaria fora da nossa realidade. Mesmo com a negativa, senti a mesma felicidade quando recebi o retorno de Edu Falaschi, Aquiles Priester e dos demais artistas.

Talvez, na tentativa de não desistir no primeiro não, expliquei ao produtor que éramos de uma escola pública, sem recursos, mas que já estava feliz pelo retorno. Agradeci e enviei outro e-mail para a produção. Dois dias depois, recebi outro e-mail dele, informando que Blaze ficou interessado e que gostaria de participar do nosso projeto. Pediu data, horário, e um vídeo sobre o que faríamos na aula, para ter certeza de que não seria algo fake. Prontamente, convidei uma amiga, professora de língua inglesa, gravamos um vídeo, editei as partes e enviei para a produção. Logo veio o retorno, que a nossa aula aconteceria dia 30 de junho às 14h, 18h na Inglaterra. Fiquei anestesiado, sem acreditar que o ex-vocalista do Iron Maiden participaria de uma aula minha. Em 2001, levei uma "bronca" de uma ex-diretora de escola por citar o Rock and Roll em uma de minhas aulas. Lembro-me da reunião, a diretora da escola, pela qual tenho muito respeito e carinho, hoje já aposentada, disse abertamente para todos os professores que alguém estava falando de "rock" ao invés de dar aulas. Fiquei quieto, mas nunca esqueci. 20 anos depois, um dos ídolos do Rock mundial estava "ao meu lado" sem cobrar nada, com o maior prazer e assim fazer parte da história da educação brasileira.

Enfim, o dia 30 de junho chegou. Confesso que estava morrendo de medo do Blaze não aparecer. A divulgação foi feita nos grupos dos alunos, link enviado e... britanicamente, às 14 horas, ele pediu autorização para entrar em nossa sala virtual. Eu não estava sozinho: a professora Patrícia Almeida foi convidada para fazer a tradução simultânea para os alunos. Tudo muito simples, mas com muita vontade. Assim como Blaze, que estava em um estúdio muito simples, vestido com uma camiseta regata simples, e com o seu novo álbum War Within Me ao seu lado, compondo um quadro virtual no qual todos éramos protagonistas. Em tom de brincadeira, Blaze disse "frango frito e coxinha", as únicas palavras que conhece da língua portuguesa. Muito simpático e prestativo, conversou calmamente para que o entendimento da língua inglesa fosse possível ou fácil para todos. Conversamos sobre sonhos, sentimentos, influências, estudos, música e sobre Iron Maiden. Foram 30 minutos maravilhosos. Por fim, um sonoro "muito obrigado, Brasil" juntamente com um belo sorriso, Blaze encerrou a sua participação e também o nosso projeto.

Acredito que a minha missão, enquanto educador, ainda não tenha sido cumprida; sei que tenho muito a fazer pela educação. Essa se faz em conjunto, com diferentes prismas e olhares, com vontade e respeito. Esse projeto aconteceu graças à autonomia pedagógica que me foi dada pela coordenação da Escola e pelo apoio dos alunos, pais e responsáveis, amigos professores e incentivadores do meu trabalho. Mais uma vez, os meu eternos agradecimentos ao Raffa Machado (Beatles 4ever), Don Castro, Felipe Malagutti (The Rolling Stones Brasil), Felipe Machado (Viper), Lucas Rodrigues, Clemente Tadeu (Inocentes e Plebe Rude), Evandro Melo, Paula Tikami, Blaze Bayley, Edu Falaschi, Aquiles Priester, Canisso, Márcio Ballas, a Wiplash e a todos que participaram do nosso projeto. Quero repeti-lo em outubro de 2021. Será que outros artistas aceitarão o meu convite? Vamos torcer.

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