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Chico Science: ressureição sócio-musical que dura até hoje

Resenha - Da Lama ao Caos - Chico Science & Nação Zumbi

Por Fábio Visnadi
Postado em 16 de novembro de 2010

O Brasil sempre foi palco de revoluções artístico-musicais. Desde José de Alencar com seus romances indianistas, passando pela Semana de 22 e o Cinema Novo até os movimentos musicais que eclodiram no século XX, esse país de quase duzentos milhões de habitantes sempre buscou uma identidade própria no que se diz respeito a arte e entretenimento. Talvez isso tudo seja influência do passado, dessa vontade de libertar-se das amarras da metrópole e construir algo essencialmente seu. Talvez isso seja parte da multiplicidade étnico-cultural que compôs o país no passado. Talvez seja devido ao subdesenvolvimento, e a arte e o esporte desempenharem um papel maior num lugar em que a desigualdade impera, funcionando como uma espécie de fonte de alegria para o povo. Talvez um pouco dos três, contudo, o fato é que o povo brasileiro é um dos poucos que tem uma cultura característica para se orgulhar. Na música popular esse motivo de orgulho é maior.

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Com exceção do eixo Estados Unidos-Grã Bretanha, a maior parte da música contemporânea dedica-se a uma cópia ou desenvolvimento do que se faz nessas duas nações. Não se esquecendo, é claro, da cultura africana, da chanson francesa, do reggae e do ska jamaicanos, a verdade é que cada país é lembrado geralmente por um ou dois gêneros, por uma ou outra musicalidade. O Brasil é lembrado por muitas. Talvez tão exportador de ritmos e inovações quanto o centro cultural americano e britânico, ou talvez ainda numa escala um pouco menor (afinal, esses dois habitats de língua anglo-saxônica ainda são os lançadores de tendências), a terra do futebol viu surgir nos últimos cinquenta, sessenta anos, a Tropicália em Salvador, o Clube da Esquina em Minas Gerais, a Bossa Nova no Rio de Janeiro, o samba tipicamente urbano de Adoniran Barbosa em São Paulo e mais recentemente, nos anos 90, liderados por Chico Science e Fred 04 o movimento manguebeat.

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Incomodado pela tendência do rock brasileiro do final dos anos 80 em copiar o que se fazia lá fora, Francisco de Assis França, jovem de Olinda, cidade limítrofe a Recife, com pouco mais de vinte anos na época, fez brotar na capital pernambucana uma ressureição sócio-musical que se arrasta até hoje. O manguebeat, alcunha dada ao movimento, vem do fato do ecossistema do mangue ser o mais diversificado e biologicamente rico do planeta. Assim como no mangue encontra-se a salobra, mistura da água do rio e do mar, fontes de vida tão distintos, o movimento recifenho conseguiu misturar a cultura brasileira com a cultura pop de um modo distinto e diferente do que foi feito na Tropicália, ligando o passado ao futuro de um modo singular.

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É tarefa difícil pra qualquer escritor, jornalista ou aventureiro resenhar em palavras a importância que o movimento propriamente significou. Numa cidade marcada pela pobreza, Chcio Science, o mangueboy malungo, conseguiu despertar o sentimento de identidade e coletividade que há algum tempo faltava, "engendrou um circuito enérgico" que se estendia desde as rodas de capoeira e toadas até ao break dance. Uniu a tecnologia, os quadrinhos ao passado regional pernambucano e até mesmo do Brasil. Reuniu elementos tipicamente nordestinos, como o maracatu, frevo, cavalo marinho, coco à psicodelia, ao hip hop, ao rock alternativo, ao hardcore e ao punk, ao eletrônico. E conseguiu isso de forma peculiar, criando um novo gênero e não soando de maneira alguma como elementos separados que foram misturados. Não se saboreia cada um separadamente, o pacote do mangue é completo.

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Dos principais frutos que esse movimento plantou, o álbum "Da Lama ao Caos" foi de longe um dos mais importantes colhidos. Lançado em Abril de 1994, conseguiu sintetizar, junto com o manifesto manguebeat, tudo o que Chico Science e os mangueboys queriam dizer. Logo de início, "Monólogo ao Pé do Ouvido" mostra que o Nação Zumbi veio para modernizar o passado, não se esquecendo nunca dele. Escrito pelo frontman, são vivas a Zapata, Zumbi, Lampião e demais heróis brasileiros, latinos e mundiais que marcam essa primeira faixa.

Seguindo o caminho iniciado pela primeira "canção", "Banditismo por Uma Questão de Classe" é um protesto social, com uma linguagem tipicamente popular que aproxima a proposta da banda ao público, não soando nunca prolixa e mostrando um problema que assola o nordeste desde os tempos de Lampião. Não são os pobres os verdadeiros bandidos. O banditismo surge por necessidade num lugar em que a polícia e o governo são as verdadeiras causas desse mal.

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E assim o álbum continua. Momentos políticos, outros nem tanto. Em "A Cidade" uma das constatações mais ricas e populares (no que se diz respeito a linguagem) sobre a desigualdade social. Versos como "A cidade não pára, a cidade só cresce / O de cima sobe e o de baixo desce" figuram até hoje em questões geográficas de vestibular ou provas de universidade sobre o tema. Já em "A Praieira", o que soa como uma música sobre diversão, beber cerveja na praia, é na verdade uma canção sobre a Revolta Praieira de 1848. A força das letras está no seu alcance cotidiano. Sua riqueza soa como a poesia nordestina de João Cabral de Melo Neto, Ariano Suassuna ou até mesmo Luiz Gonzaga.

Temos "Da Lama ao Caos", o hino do caranguejo com cérebro e temos "Risoflora", uma declaração de amor excêntrica. Em uma analogia entre o caranguejo (o "mascote", símbolo do manguebeat) e o homem, marcada por expressões nordestinas, são em versos inteligentes como "Não vou dar mais bobeira dentro de um caritó" que Chico Science demonstra um jeito único de se declarar. Pra quem não sabe, estar no caritó é uma expressão regional para mulheres que passaram dos 25 anos e não se casaram, um local imaginário pra solteironas. Algo como o "ficar pra titia". É também o nome dos depósitos onde ficam os caranguejos em restaurantes. Logo, ele não vai mais procurar diversão em caritós. Ele está apaixonado. Tudo isso sem soar meloso e óbvio como um "eu te amo" ou essas canções românticas e clichês que constroem residência fixa nas rádios nacionais e nas gravadoras do sr. Rick Bonadio.

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Há também as referências a tecnologia em "Computadores Fazem Arte", composta por seu parceiro do Mundo Livre S/A, banda conterrânea, gravada originalmente por ela. E também as instrumentais "Salustiano Song" e "Lixo do Mangue". A primeira, uma homenagem a Mestre Salustiano, que inclusive veio a gravar com a banda posteriormente, um dos maiores representantes da cultura regional, autoridade máxima em cavalos-marinhos, maracatus e outras manifestações.

A última faixa, "Coco Dub (Afrociberdelia)" era uma espécie de epílogo e prévia do que estaria por vir no segundo álbum do grupo, lançado em 1996.

Infelizmente, tudo que é bom dura pouco, e em fevereiro de 1997 veio a falecer num acidente de carro o mentor desse projeto e um dos maiores gênios da música brasileira. Saiu da vida pra entrar pra história. Uma verdadeira lenda. Sua influência se estende desde as bandas menores que surgiram na região e conquistaram seu lugar até os grandes dinossauros da música brasileira. O álbum "Roots" dos mineiros do Sepultura e "O Silêncio" de Arnaldo Antunes, músico e poeta concretista tem grandes resquícios do pensamento do músico. Outros artistas do rock alternativo brasileiro dos anos 90, como os músicos do Planet Hemp eram intimamente ligados a obra do compositor. Morreu jovem, com apenas trinta anos, no entanto, com uma grande bagagem deixada e com muito mais coisa a dizer.

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Enquanto alguns artistas se destacaram por seus protestos e pelo âmbito social, outros marcaram por suas inovações na estética musical. Poucos são aqueles que podem se vangloriar dos dois fatos. Chico Science era um deles. E seu legado foi deixado.

Tracklist:

1. Monólogo ao Pé do Ouvido
2. Banditismo por Uma Questão de Classe
3. Rios, Pontes & Overdrives
4. A Cidade (Boa Noite do Velho Faceta)
5. A Praieira
6. Samba Makossa
7. Da Lama ao Caos
8. Maracatu de Tiro Certeiro
9. Salustiano Song
10. Antene-se
11. Risoflora
12. Lixo do Mangue
13. Computadores Fazem Arte
14. Côco Dub (Afrociberdelia)

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