The Beatles, agora e então: Como assim ainda se fala de Beatles?
Por João Victor Uzer
Postado em 21 de dezembro de 2024
Em 2023 o álbum de estreia dos Beatles alcançou a terceira idade, mas a marca The Beatles parece estar longe de se aposentar. Mesmo com a fim da banda na década de 1970, e com a morte de dois dos quatro integrantes, a marca seguiu mantendo-se relevante. Evidentemente, muito se deve ao caráter extraordinário que a banda construiu durante seus anos de atividade, o talento de seus integrantes (seja musical, carismático ou mercadológico) é inegável. Mas quantos artistas fenomenais já não foram esquecidos pelas novas gerações?
Em novembro de 2023 foi lançada a última música do grupo. Usando uma avançada técnica de remixagem (com inteligência artificial) os engenheiros de som conseguiram isolar o áudio do vocal de John Lennon de uma gravação caseira e conseguiram, finalmente, finalizar a canção "Now and Then", em produção pelos Beatles vivos desde 1995. Poucos dias após seu lançamento a música foi tocada 5,8 milhões de vezes no Spotify; alcançou a primeira posição no US iTunes; no Reino Unido destronou a "Is It Over Now?", da Taylor Swift, da posição de mais reproduzida no Spotfiy. A faixa concorre ao Grammy na categoria Gravação do Ano.
Se voltarmos um pouco mais, em novembro de 2021 foi lançado o documentário "Get Back" (dirigido por Peter Jackson), que mostra a elaboração do último álbum da banda, o "Let it Be" (1970). Em menos de um mês o documentário somou 1,07 milhão de visualizações completas no Disney plus. Número impressionante quando se leva em consideração que o documentário conta com três episódios que juntos totalizam mais de sete horas de conteúdo. No entanto, um outro número sobre o documentário chama mais atenção, a idade média dos espetadores. 54% dos espetadores eram de maiores de 55 anos. Uma maioria de uma "audiência velha", certamente, mas deve-se considerar que são pessoas que estavam na primeira infância quando a banda parou suas atividades.
É inegável como o mercado da música e a cultura de consumo mudaram drasticamente desde o lançamento do último álbum da banda, mas entre relançamentos e edições de comemorações, os Beatles permanecem no imaginário popular. Como? Essa, definitivamente, não é uma pergunta fácil de responder.
Tell Me Why
Em 2006 o jornalista Marcelo Dantas escreveu para a revista Piauí sobre a banda, no texto cita uma conversa que um amigo teria ouvido de dois garotos:
Encostados no balcão do BB Lanches, no Rio, dois garotos, de no máximo 13 anos, conversavam assim: "Você sabe por que eles fizeram taxman? Porque na Inglaterra tinha imposto pacas. Eles fizeram uma música de protesto!". Ao que o outro aquiesceu, acrescentando mais um caminhão de informações sobre o hino antitributário do álbum "Revolver". Meu amigo ficou estupefato. Era como se nós dois estivéssemos ali, 30 anos antes, tomando um suco depois do colégio.
Alguns pesquisadores atribuem a longevidade da banda ao fator histórico. De fato a banda foi pioneira em diversos aspectos na cultura da música mundial. No aspecto musical, a banda experimentou diversos gêneros ao longo dos anos, do pop-rock ao folk, com direito a música clássica e indiana. Além, a técnica também tem relevância, os Beatles produziram e popularizaram técnicas de gravação com loopings, gravações multitrackings e outros efeitos de estúdio. A "invenção" do videoclipe musical também é comumente atribuída ao grupo. Por fim, as letras e composições são outros aspectos frequentemente levantados como responsáveis pelo sucesso longevo da banda. Inclusive, essa é a explicação de Marcelo Dantas. (Dando um foco especial na dupla Lennon e McCartney, o que é irônico considerando que começa o texto citando Taxman, música de George Herrinson).
Um último argumento relativo aos Beatles com fenômeno histórico é o impacto social que os Beatles motivaram. Para muito além da Beatlemania do início dos anos 1960, os Beatles tornaram-se símbolos da contracultura, representando uma geração de jovens que buscavam mudanças sociais nos conturbados anos 1960.
O fator histórico é, sem dúvida, existente, mas é difícil acreditar que entre Tik-Toks, Stories e shorts, o jovem de hoje (ou mesmo o de trinta anos atrás) decida escutar uma banda porque ela foi importante historicamente. Repetindo o argumento do primeiro parágrafo deste texto, quantos revolucionários da música não são esquecidos diariamente? O caráter histórico deve ser considerado, mas não pode ser o único fator decisivo para a longevidade da marca The Beatles.
Can’t By Me Love
Os Beatles sempre lutaram para ter uma imagem positiva na indústria. O sociólogo Anthony Inglis observa como este foi um fator decisivo no início. Brian Epstein, empresário da banda, foi capaz de guiar o grupo através de uma série de regras de conduta para deixá-los mais aprazíveis à indústria. Inglis diz:
Epstein proibiu certas formas de comportamento, incluindo fumar, beber, comer. e xingando no palco. Suas jaquetas e jeans de couro foram substituídos por ternos e gravatas […] Ele insistiu que eles se curvassem no final de cada música […] organizou sessões fotográficas de estúdio e localização em Liverpool, a fim de ter um portfólio de imagens adequadas para impressionar as principais gravadoras.
Anos depois, John Lennon queixou-se: "começamos a nos vender quando deixamos Brian nos gerenciar. Ele nos colocou em uniformes e nós continuamos sorrindo e fazendo atos de vinte minutos de nossos sucessos", no entanto o vocalista reconheceu, "Eu sabia o que estávamos fazendo e conhecia o jogo. Então eu deixei isso acontecer".
O sucesso que a banda acumulou no início dos anos 1960 foi tamanho que, nas palavras de Inglis, "catalogar suas conquistas é, de várias maneiras, um exercício infrutífero". Na música, a banda manteve recordes de mais tocadas, de mais tempo no top-1 das rádios; de álbuns mais vendidos; de mais tempo no ranking de álbuns mais vendidos e mais. Na mobilização de fãs a banda também quebrou recordes. Só em 1963 o fã-clube oficial foi de 2000 membros para 80.000. O grupo fez, na época, cerca de 500 shows. No entanto, a banda se mostrava insatisfeita com o ritmo, anos depois George Harrison se queixou: "Não havia satisfação nisso. Ninguém podia nos ouvir. […] Ficamos piores como músicos, tocando o mesmo lixo velho todos os dias." Esse fator não era ignorado pelos contemporâneos. Eric Clapton comenta em sua biografia que "com os Beatles era diferente":
Todo mundo queria ser como eles. […] Por todo o país as pessoas vestiam-se como eles. […] Uma noite fui para o fundo do auditório vê-los, e não dava para ouvir nada da musica por causa da gritaria. A maior parte dos fãs eram meninas em torno dos 12 ou 15 anos de idade, que não tinham intenção de ouvir. Lamentei pela banda, e acho que eles também já estavam muito fartos daquilo. […] Os Beatles naquela época estava em outro mundo para nós.
Mas os shows eram principalmente uma ferramenta de negócios. Mais que lucro, geravam gravações, recordes de vendas, registros e mais registros do sucesso da banda, o que, consequentemente, abri mais portas. Inglis aponta que foi esse mesmo objetivo que moveu a banda para o cinema, para estar "de acordo com as expectativas da indústria de suas estrelas principais".
Em 1964 uma matéria do Jornal do Brasil resumiu com precisão o movimento que a banda fazia no início da década de 1960: "Cada dia mais próspera, a indústria Beatles floresce no mundo inteiro ameaçando transformar os quatro ídolos musicais em magnatas do comércio". No mesmo ano, o Correio da Manhã escreveu que, nos Estados Unidos, estimava-se que o consumo de produto dos Beatles movimentava cerca de 5 milhões de dólares. "Os Beatles vende", resumiu a matéria. Mas a banda tornou-se protagonista de tantas revoluções na industria, e se manteve relevante mesmo décadas após seu fim, por ter sido "vendida" e "comercial", ou fez o que fez apesar disso?
Think for yourself
O impacto dos Beatles no cenário britânico de compositores foi considerável. Mick Jagger e Keith Richards supostamente foram persuadidos a escreverem suas próprias músicas depois de presenciarem Lennon e McCartney comporem I Wanna Be Your Man em cinco minutos. Embora não haja provas desse afirmação, Richards revelou em sua biografia que sentia profunda admiração pelos arranjos e composições do Beatles.
Por volta de 1965 a banda já tinha dominado a composição de músicas e se consolidado como verdadeiros hit-makers. Mas, como diz o historiador Terence O’Grady, foi no "Rubber Soul" (1966) que a banda "amadureceu" musicalmente, demonstrando "uma nova abordagem ao rock and roll - uma abordagem que se concentra nos detalhes musicais, em vez dos gestos sonoros massivos e cativantes das primeiras canções pop-rock". Isso é reconhecido pelo próprio Paul Mccartney:
Nosso material inicial é mais simples do que o material posterior, e essa é uma das grandes coisas dos Beatles [...] Essa [Love Me Do] era uma música muito simples que se enquadrava na categoria de 'canções de fãs'. as primeiras músicas continham 'me' ou 'you'. Fomos completamente diretos e desavergonhados com os fãs: ‘Love Me Do’; ‘Please Please Me‘; ‘I Want to Hold Your Hand’
Outro ponto a se observar é que, nos primeiros álbuns, Lennon e McCartney assinavam cerca de metade das musicas. Please Please Me conta com 14 faixas, das quais 8 são da dupla. "With the Beatles" (1963) conta com 14 musicas, 7 pela dupla, 1 por Harrison. "A Hard Days Night" (1964) foi o primeiro a trazer apenas composições da banda. O feito só voltou a ser realizado em Rubber Soul.
E "Revolver" (1966), o álbum seguinte, foi recebido como revolucionário. "Eleanor Rigby", "Tomorrow Never Knows", "Taxman"… Nas palavras do pesquisador Jack Hamilton: "Para muitos ouvintes, a presença dessas faixas era uma prova de que os Beatles estavam se separando do grupo de música popular dos anos sessenta." Depois, veio "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band" (1967) e "Magical Mystery Tour" (1967). E com eles, ícones como "Lucy in the Sky with Diamonds", "Getting Better", "With a Little Help from My Friends", "A Day in the Life", "Strawberry Fields Forever", "Penny Lane" e "Hello, Goodbye". Além da icônica capa de Sgt. Pepper's.
Clapton, que nunca nutriu grandes amores pelos Beatles (só pela esposa de um deles), revelou em sua biografia:
Embora eu não tivesse a menor reverência pelos Beatles, tinha noção de que aquele era um momento muito especial para qualquer um dos que estavam ali. A música deles havia evoluído gradativamente ao longo dos anos, e todo mundo esperava que esse álbum fosse a obra-prima. […] O ácido fez efeito aos poucos, e logo estávamos todos dançando ao som de "Lucy in the Sky" e "A Day in the Life". Tenho que admitir que fiquei muito emocionado com a coisa toda.
Em outros termos, os Beatles deixavam de ser uma "banda vendida" e tornava-se The Beatles. Melhor dizendo, foi em 1967 que Os Beatles tornaram-se Beatles and Co.
Revolution 1
A fim de controlar os interesses comerciais da banda, os consultores fiscais sugeriram que fosse aberta uma "empresa guarda-chuva" para a banda. A Beatles and Co substituiu a Beatles Ltd. Cada integrante, sob o novo contrato, recebeu 5% da empresa, sendo os outros 80% controlados por uma corporação (que eventualmente se tornou a Appple Corps.) Mais que uma empresa de faixada para cortar tributos, a Apple se tornou uma verdadeira empreitada empresarial. Em 1968, numa entrevista ao Johnny Carson's Tonight Show Lennon e McCartney falaram sobre a nova empresa:
Então, temos essa coisa chamada 'Apple', que será composta por discos, filmes e eletrônicos - todos interligados. E para fazer uma espécie de guarda-chuva para que as pessoas que querem fazer filmes sobre... grama... não tenham que ficar de joelhos em um escritório, sabe, implorando por uma chance.
De certa forma, a Apple foi uma transformação industrial do sonho hippie pelo qual a banda vinha passando. Como observou a professor a Kathryn Begaja:
Os Beatles promoveram uma visão utópica para o mundo e, como os hippies, eles realmente acreditavam que tinham o poder de executá-la. Apoiados por sua vasta fortuna e uma enorme e adorada base de fãs, os Beatles lançaram a Apple Corps. A ideia original de Brian Epstein, a Apple Corps foi originalmente conceituada no verão de 1967 como um abrigo fiscal para os ganhos dos Beatles […] O modelo da Apple Corps foi construído em torno de uma visão idealista para o futuro.
No entanto, a morte de Brian Epstein deixou não só a empresa em um vácuo de liderança, como deixou os Beatles sem sua principal âncora. Os músicos interviram e assumiram o controle da empresa, no que McCartney definiu como uma "esquisitice controlada". Mas os finais dos anos 1960 foram de confronto interno para a banda, o que levou ao fim do grupo. Quanto à empresa, Begaja resume: "A Apple perdeu dinheiro, e o sonho insustentável dos Beatles terminou com o grande gesto de fechar a London Apple Boutique, doando todo o seu estoque". A maça nasceu de uma meceira podre. Mas, apesar de tudo, o The Beatles já era maior que os Beatles.
Em 2022 os pesquisadores Adrian North e Amanda Krause levantaram um conjunto de dados com cerca de 169.909 músicas de 1921 a 2020, usando o API da Web do Spotify. O conjunto incluía as 2000 músicas mais populares por décadas, desde 1945. Os dados incluíam 413 músicas dos Beatles. O objetivo da pesquisa era comparar as músicas dos Beatles com as demais do conjunto, considerando sua acústica, dançabilidade, duração, energia, tom, volume, modo, popularidade, andamento e valência. O resultado foi o seguinte:
A música dos Beatles diferia do conjunto de dados geral por ser mais positivamente valenciada, mais energética, mais rápida, mais alta, menos acústica e mais curta, bem como diferia da música dos contemporâneos por ser mais dançante, energética, mais rápida, mais alta, menos acústica e mais curta. […] No entanto, a música dos Beatles não era mais inovadoras do que a de seus contemporâneos (exceto em 1969), pelo menos quando isso é medido em termos das variáveis capturadas pela API do Spotify.
Ou seja, as músicas do grupo diferiam das demais, mas não eram essencialmente inovadoras. O único momento em que isso mudou de fato foi em 1969. Não por coincidência, o recorte de: Álbum Branco (lançado novembro de 1968); Yellow Submarine (janeiro de 1969); e "Abbey Road" (setembro de 1969), últimos álbuns da banda antes do rompimento. O argumento de North e Krause foi de que "os Beatles foram capazes de contrariar a tendência geral de que a música distinta fosse menos bem-sucedida comercialmente do que a música derivada, de modo que, quando inovaram, conseguiram fazê-lo sem sacrificar o sucesso comercial". Em outros termos, os Beatles eram tão populares que fariam dinheiro com qualquer coisa, logo, puderam arriscar. Ou seja, nessa leitura, o "excepcional talento do quarteto" só pode ser efetivamente aproveitado depois da marca já consolidada. E foi essa marca que virou ícone pop.
Carry That Weight
Conforme calcula Inglis entre 1962 e 1970 os Beatles (juntos ou separados) somam mais de 120 aparições em programas de televisão só no Reino Unidos. Ou seja, aproximadamente 15 aparições por ano. Mas, mesmo depois do fim da banda, a presença midiática (inclusive com "novo" material) não foi pouca. Nos anos 1980, versões reeditadas dos filmes "A Hard Day's Night" (1964), "Help!" (1965) e "Yellow Submarine" (1968) foram comercializadas. Esses lançamentos foram acompanhados por vídeos promocionais. Já na década de 1990 diversos "novos" álbuns foram lançados, o "The Beatles Live at the BBC" (1994) reuniu diversas gravações dos anos iniciais do grupo. O "The Beatles Anthology 1" (1995), além de gravações não antes disponíveis, trouxe a inédita Free as a Bird. A faixa representava a coisa mais próxima de uma reunião do grupo, visto que John Lennon havia sido assassinado em 1980. Além disso, entre 1999 e 2001 o programa semanal da BBC "Sounds of the Sixties", manteve um seguimento dedicado apenas aos Beatles, chamado "A a Z dos Beatles", no qual os comentários do grupo, coletados em quatro décadas de entrevistas, foram usados para comentar músicas específicas. Em 2003 foi lançado o "Let it Be… Naked". De 2009 até 2023 todos os álbuns foram remasterizados, por vezes incluindo novas versões de gravações. Em 2015 o catálogo da banda ficou disponível no Spotify.
Inglis estima que as vendas de "novas gravações" chegaram ao bilhão. Ou seja, a banda, mesmo acabada, vendeu muito.
O volume de arquivos gerados nos inícios dos anos 1960, no "período vendido", ajudou bastante. A empreitada midiática dos anos dos iniciais, com milhares de shows, entrevistas e gravações por ano que consolidaram a banda como um fenômeno mercadológico, deram para o futuro uma gama de material "novo" que havia sido rejeitado anos atrás. Uma remasterização e pronto. E mais. Além do material da banda produziu-se muito sobre a banda. Só entre filmes (documentários e ficções) tivemos desde meados dos anos 2000: "Across the Universe" (2007), "Capítulo 27 - O Assassinato de John Lennon" (2007), "Nowhere Boy" (2009), "George Harrison: Living in the Material World" (2011), "How The Beatles Changed The World" (2017), "Yesterday" (2019), "Get Back" (2021), "Beatles '64" (2024). A coisa não para, temos confirmação de lançamento de quatro filmes biográficos da banda para 2027. As crianças não foram esquecidas, em 2016 tivemos a animação "Beat Bugs", inspirado na banda. Em 2009 os videogames receberam o "The Beatles: Rock Band". Além disso, Paul McCartney, apesar da avançada idade, se mantêm ativo musicalmente realizando shows e mais shows repletos das músicas de sua antiga banda. Ainda publica livros e faz diferentes participações e programas de TV.
A máxima dos anos 1960 ainda é relevante: "Os Beatles vende". E isso gerou movimentos singulares.
Penny Lane
Passeando pelas ruas de Liverpool você pode encontrar uma pequena placa azul na parede externa de uns pubs com os dizeres "John Lennon urinou nesta parede 47 vezes entre 1959-1961". Embora essas placas sejam, sobretudo, jogadas de marketing dos bares locais, elas evidenciam outra possível explicação para a duração da banda.
Como aponta Stephanie Fremaux, desde os anos 1980 uma série de empresários utilizaram de locais relevantes para a história da banda como fonte de renda. Em 1982 foi aberta a The Beatles Shop, em Liverpool. No ano seguinte, também em Liverpool, foi instaurada a Cavern City Tours, que se tornou uma atração turística em si. Além disso, o tour desenvolveu o Magical Mystery Tour, no qual os fãs podem andar em uma réplica do ônibus do especial de televisão. Já ao longo dos anos 1990, o governo da cidade começou a participar. Em 1990 foi fundado o museu The Beatles Story. Em meados da década o Liverpool City Council passou a investir no o Mathew Street Music Festival, uma iniciativa promovida pela Cavern City Tours. A cidade de Liverpool começou a transformar os Beatles em parte de sua herança cultural musical local. Estima-se que em 2013 (o relatório é de 2014), só as atrações turísticas relacionadas aos Beatles levaram cerca de 70 milhões de libras para a cidade de Liverpool. No mesmo ano o museu Beatles Story recebeu 254.000 visitantes dos quais 70% eram estrangeiros. Em comparação, o Beatlemania Museum, em Hamburgo, recebeu apenas 150.000 visitantes entre 2009 e 2012.
Ou seja, além do aspecto mercadológico envolvendo a marca The Beatles, diversos produtos e serviços foram capitalizados em nome da banda, em especial em sua cidade de origem. Então é isso, está respondido? Foi a comercialização da marca The Beatles que manteve a música do grupo relevante? Talvez essa seja uma das explicações. Mas dificilmente é a única.
Come Together
Como relata Fremaux, o ex relações-públicas dos Beatles, Geoff Baker, admitiu em 2010 que se a banda tivesse mantido seu publico original, sem promover uma renovação buscando os mais jovens, dificilmente o legado dos Beatles se tornaria comercialmente sustentável. Mas desde o término da banda, a base de fãs pouco foi afetada. O comércio sobre a banda – seja promovido pela marca The Beatles ou não – se mantém vendável, por que a base de fãs se mantém ativa e volumosa. Ao mesmo tempo, a base de fãs se mantêm ativa e volumosa porque tem produtos e serviços a serem consumidos. Ou seja, uma coisa sustenta a outra.
Mas, essa percepção de fãs como simples consumidores é também um tanto anacrônica. Como resumem Yong Gu Suh, Gary Davies e Regina Burnasheva as primeiras pesquisas sobre os fãs tendiam a caracterizá-los como histéricos e de comportamento excessivo. Os fãs dos Beatles, nos anos iniciais da banda, foram reconhecidos como verdadeiros defensores do grupo. Pessoas brigaram com familiares, professores e jornalistas; ondas de jovens invadiram aeroportos e estações de trem na expectativa de ver seus ídolos; por vezes chegaram a engajar em briga com a polícia. Esses comportamentos foram pejorativamente compreendidos quase como uma patologia. Porem, estudos mais recentes deram melhores cores aos fãs, demonstrando como são simples pessoas que escolheram engajar (em diferentes potências) em uma cultura específica. Embora hoje, com as facilidades das redes sociais digitais, o relacionamento entre artista e fã seja "mais recíproco", é um erro assumir que antes o relacionamento era unilateral, ou seja, que não havia interação entre fã e ídolo (no caso do John Lennon a interação foi até longe demais).
O argumento de Fremaux que pode nos ajudar a compreender a longevidade da banda recai justamente na base de fãs. Fremaux usa do conceito de DIY (Do-it-yourself) heritage para compreender como a base de fãs da banda se manteve ativa mesmo décadas após a término do grupo. O termo refere-se a prática de algumas comunidades (especialmente comunidades marginalizadas ou distante de suas origens culturais, como imigrantes) em preservar seu patrimônio cultural por meio de instituições "faça você mesmo", ou seja, instituições não governamentais e ações voluntárias. Foi uma forma estabelecida por grupos de não deixar suas heranças culturais morrerem.
Além de uma comunidade virtual, mantida por fóruns e páginas em redes sociais digitais dedicadas a discutir e admirar os Beatles, Fremaux aponta para ações de fãs que realizaram verdadeiras intervenções na cidade. Um exemplo é o John Lennon Mural, concluído em 2008. O mural se trata de uma pintura, de pouco mais de 4 metros, do cantor. Também compõem o mural figuras recriando a capa do álbum "With The Beatles" (1963). A pintura de Lennon é ainda cercada de pôsteres antigos de shows que a banda teria feito na região. O ponto sobre esse mural é o fato de que ele não foi uma iniciativa da cidade ou do comércio, mas sim de artistas independentes. Ou seja, não teve como motivação inicial a promoção de turismo ou arrecadação de renda. De fato os artistas envolvidos no projeto sofreram resistência da cidade ao início, tendo seu pedido negado. Mas com o apoio da comunidade, a decisão foi revertida e a permissão foi concedida. A justificativa foi de que o mural se tratava de "uma imagem icônica apolítica que encorajaria as comunidades a trabalharem juntas".
Outra iniciativa que Fremaux discute é a exposição We Buy White Albums. O projeto se trata da exibição da coleção de mais de mil cópias do Álbum Branco. O interessante nessa iniciativa é o fato de que cada álbum ali registrado traz um pouco do antigo dono, muitos apresentam desenhos, notas, artes, rabiscos e até poesias na capa. Ritheford Chang, dono da coleção, argumenta que cada álbum ali é, em si, um "artefato cultural". Chang elaborou uma verdadeira fotografia da base de fãs dos Beatles. O elemento de conexão é reconhecimento, como observa Fremaux, está no fato de que o visitante não tem como saber os reais motivos dos rabiscos e anotações nos álbuns, o que os leva a projetar nas imagens, suas próprias experiências com o álbum. Ou seja, cria-se uma sensação de sentimento compartilhado tendo aquele objeto como ponto de contato. Como resume Fremaux, com a exposição "os fãs estão compartilhando o que eles acreditam que o Álbum Branco representa para os fãs dos Beatles e acrescentando a essa história às suas próprias memórias."
Ou seja, a base de fãs dos Beatles criou uma comunidade internacional considerando as experiências compartilhadas pelos fãs (de diferentes idades). Apesar de o cenário ser extremamente comercializado, essa percepção de comunidade ajudou a canonizar uma memória sobre a banda com manifestações artísticas que transpassam os limites da base de fãs.
Because
Em suma, reconhecemos aqui vários possíveis motivos para que até hoje falemos em Beatles: 1) o sucesso comercial dos anos iniciais que consolidou a banda como um colosso; 2) o fenômeno cultural que se tornou, mesmo passada a "era vendida"; 3) o puro talento dos integrantes da banda; 4) os impactos na indústria da música, com inovações técnicas; 5) a manutenção de uma base de fãs ativa, mesmo depois do término da banda; 6) a massiva comercialização de "novo" material após o fim da banda, além de Paul McCartney continuar em atividade; 7) as iniciativas das comunidades de fãs; e 8) o potencial turístico da memória da banda em Liverpool. A questão é que nenhuma dessas explicações se sustenta sozinha.
Graças ao tremendo trabalho de marketing dos anos iniciais, a banda se consolidou como um fenômeno, e como tal pode arriscar musicalmente depois. Com essa segurança, o puro talento dos integrantes pode ser explorado. Sem a liberdade para inovar, dificilmente teriam renovado a audiência e revolucionado a indústria ou teriam se tornado o fenômeno cultural que foram nos anos 1960. E sem o volume do material produzido nos anos iniciais, a comercialização dos anos pós-termino seria comprometida, diminuindo a circulação comercial e o engajamento dos fãs. Ao mesmo tempo, as comunidades de fãs mantiveram o interesse comercial quente. O que, por sua vez, se tornou uma herança cultural para a própria cidade de Liverpool, e mesmo para Inglaterra como um todo. Ou seja, um argumento sustenta o outro.
Então sim, ainda se fala de Beatles porque, muito mais que uma banda de quatro rapazes de Liverpool, The Beatles é até hoje um fenômeno cultural e mercadológico da história do mundo, extremamente importante para uma comunidade ativa de fãs. E mais, é um marco cultural para a Inglaterra. Não é exagero compreender a história da música pop como antes e depois de Beatles. E mesmo que o interesse do público diminua gradativamente com o tempo (o que é bem aprovável, principalmente depois que Paul McCartney falecer), levará muito tempo até o interesse pela banda efetivamente acabar. E, ainda assim, o interesse acadêmico certamente será mantido por mais tempo. Como exemplificou Ralf Weiskirchen, diversas pesquisas já foram desenvolvidas a partir dos Beatles, ou usando a banda como ferramenta, como em pesquisas sobre memória, educação, psicologia ou mesmo sobre pressão arterial. Em 2022 a universidade de Liverpool lançou uma revista acadêmica exclusiva para artigos sobre os Beatles. A The Journal of Beatles Studies conta hoje com 3 edições, e seus artigos discutem: Beatles como objeto patrimonial de Liverpool, as estratégias de marketing da Beatlemania, além de usar a banda como objeto de análise de conceitos, como gestão de pessoal, conflito ou criatividade.
No final das contas a marca The Beatles se tornou maior que a própria banda. As relações dos fãs com as músicas, o legado cultural, o comércio e turismo… Podem não ser "maiores que Jesus", mas, sem dúvida, são um marco importante na história da música pop mundial. E, justamente por ter sido esse complexo fenômeno cultural, comunicacional e mercadológico, dificilmente o interesse por ele acabará por um motivo tão leviano quanto o tempo.
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