Dorsal Atlântica
Postado em 06 de abril de 2006
Por Carlos Lopes
Estávamos cursando o pré-vestibular em 81 quando fundamos a banda "Ness" para o sarau no final de ano do colégio "Acadêmico" (atualmente soterrado por um edifício de ocasião), fundado e mantido por professores militares em pleno regime de excessão. Covers de Ted Nugent, Kiss, Made In Brazil e Black Sabbath deram o tom da festa de arromba. Daquela noite em diante, decidimos ser roqueiros de fato e fizemos o circuito da cidade, ainda dominada por hippies e músicos que não nos entendiam porque o público certo para a - emergente - Dorsal nem sequer havia surgido.
Ainda no início da década de 80, coloquei o dedinho em uma página qualquer de uma enciclopédia e "Dorsal Atlântica" foi sorteado, aleatoriamente.
Em meus devaneios artísticos, copiei a idéia do movimento dadaísta, que herdou a nomenclatura de forma idêntica.
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Em 84, um amplificador velho e diversos álbuns de selos foram vendidos para bancar a nossa parte - a metade - do split Ultimatum, lançado no primeiro dia do Rock In Rio I, em 85, com uma tiragem de 500 vinis. Nenhuma banda carioca havia lançado um disco pesado, de verdade, e em todo o país somente três outros trabalhos haviam visto a luz do alvorecer - era uma época de desbravadores. O festival Rock In Rio I colocou o nome "metaleiro" em todas as rodas de conversa do país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza e a Dorsal se beneficiou com o disse-me-disse. Rádio Fluminense (pelo ar) de um lado e Circo Voador (pelo espaço) do outro, deram o suporte necessário, e mínimo, para abrigar algo parecido com uma cena, que sempre depende de pessoas com idéias e gostos semelhantes - que desejem se relacionar, é claro. Marcos "animal", nosso primeiro baterista metaleiro, era fã da banda e foi convidado a fazer parte da troupe e em menos de um ano a criatura se voltou contra o criador.
Final de 85, pano desce rápido - leiam a "lenda" do táxi interestadual no livro Guerrilha! - e a necessária mudança de formação ocorreu porque a Dorsal optou pela velocidade e pelas idéias rápidas. O Brasil votou - mesmo que indiretamente -, porém mataram o novo presidente no leito do hospital. Vivíamos, ainda, anos difíceis.
Mil novecentos e oitenta e seis foi o ponto de partida para a gravação do primeiro disco solo por uma gravadora paulistana - apesar de São Paulo demorar a entender nossa proposta de letras poéticas, hardcore e cabelos compridos -, que se chamou Antes do Fim, álbum que vendeu oficialmente 3.000 cópias, mas segundo a firma que prensava a bolacha, o LP vendeu mais de 10.000 - devidamente não pagas, para deleite dos proprietários das matrizes. Capa censurada e uma gravação feita às pressas porque os produtores não tinham onde cair mortos. Shows e mais shows até a abertura do espetáculo-mega-esculacho dos ingleses do Venom no ginásio do Maracanãzinho em dezembro de 86. Muitos tapas nas costas de vários e rejeição por parte da imprensa, que continuava a não entender a banda. Ninguém leva a sério metaleiros intelectualizados...
Frase do ano do Carlos: "Se ser radical é isso o que a gente é, então graças a Deus por a gente ser radical." É...
Dividir & Conquistar, gravado em 87 e lançado no ano seguinte, é a alcunha do segundo trabalho da Dorsal gravado com mais tempo, mas com (quase) igual inexperiência e um pouco mais de maturidade musical. O público queria mais rápido (também, culpa nossa), mas a Dorsal queria evoluir e ousar. A nova gravadora (agora, carioca) chamada "Heavy", era uma das duas lojas/selos cariocas que existiam na época. Milhões de habitantes e duas lojas... "Pérolas" do cancioneiro como "Metal Desunido", "Tortura" e "Violência é Real" mostravam um novo caminho a seguir. O "mauvimento" já começava a mostrar suas rachaduras, com uma clara divisão entre os mais radicais - que sempre estavam "certos", ou pelo menos, eram aqueles que gritavam mais alto - e o pessoal do heavy associado aos anos 70. A história é cíclica? No templo carioca do metal - o Caverna - havia o "salão de power metal" onde ninguém ria ou levantava a cabeça. Os metaleiros radicais agitavam as correntes ao som de Hellramos e Running Uái.
Dividir ganhou um batalhão de colocações nos melhores do ano de 88 na Rock Brigade e permitiu que a banda viajasse pelo país, sendo recebida por centenas de pessoas, com faixas de boas-vindas, nos aeroportos de Manaus, Teresina e Belém!
Mais shows com mancebos internacionais: Nasty Savage, dos EUA; Exumer, da Alemanha, e com os bretões-barulhentos do Motörhead, em Porto Alegre. Respeito crescente e nenhum dinheiro. Propostas de lançamento no exterior não concretizadas e um single lançado na Suíça em versão doméstica. A banda ainda se auto-empresariava - Carlos' management.
A crise interna mostrou sua face com a ópera Searching For The Light, em 90, quando o primeiro calotão internacional se fez presente com o lançamento norte-americano do mesmo álbum – nunca pagaram os royalties devidos. O primeiro mundo devendo ao terceiro.
O tema principal da ópera versa sobre a injustiça - social – nacional e as conseqüências de tantos desmandos em um possível futuro dominado por bicheiros, traficantes e uma elite insensível. O esporte favorito das futuras gerações é o surfe ferroviário e o carnaval serve para controlar o excesso de pobres, através de extermínio em massa transmitido pela Embratel, direto da praça da Apoteose. Bem... esse é um baita resumo da história. O público não sacou a proposta e a banda caminhava entre trips intelectuais de difícil entendimento - herméticas, enfim.
O segundo batera, Hardcore ou "Rabicó", para os íntimos, deixa a banda. Insatisfeito com pouca grana (de novo?) e crente de que um mais um são três, ele tomou rumo diferente do nosso - síndrome do músico que sabe "tocar", parte II. Nesse momento, o que veio de fora passou a imperar e o interesse por bandas brasileiras esfriou, gerando uma moda de centenas de bandas cover (depois viriam as de pagode, mas isso é um assunto para o final da década de 90) dos astrolábios internacionais.
Na cena metaleira, a "farofa" fazia força para se estabelecer, desde o final dos 80, mas era apenas outra moda sem consistência e de fora chegariam o funk'o metal, o grunge e o Guns - não havia mais tempo. O rock brasileiro tossia e a Dorsal combatia. O Circo Voador abrigou a Dorsal com os norte-americanos do Testament em outro show marcado pela confusão - mais uma lição feita em casa.
Após um ano de audições, Guga foi aprovado como baterista oficial da Dorsal Atlântica. Meses depois, a escola de samba Estácio de Sá cedeu espaço para o show Dorsal com a banda Kreator, da Alemanha. A produtora do evento não obteve o retorno financeiro necessário e, pela última vez, o Rio lotou um show de uma banda estrangeira independente. "The times, they are changing."
No ano do Senhor de 92, Musical Guide From The Stellium foi gravado em Belo Horizonte e, pela primeira vez, a banda teve uma produção profissional. A Dorsal investiu em temas esotéricos e musicalidade pesada-progressiva-psicodélica, dando mais um nó na cabeça dos desavisados. "Rock Is Dead", "Hidden & Unexpected", "Recycle Yourself" e a música "Thy Will Be Done" - com as centúrias de Nostradamus cantadas em francês, alemão, inglês e espanhol - são peso e delírio! A revista inglesa RAW! deu nota máxima ao Musical.... "Eles têm o que ensinar ao primeiro mundo. A música para os anos 90", escreveram. Acrescentamos que a capa do Musical... concorreu na Bizz como uma das melhores do ano.
A gravadora era nova (a Cogumelo, de BH), mas os problemas eram os mesmos: pouca divulgação e má distribuição. Receber dívidas da maioria das lojas na galeria do rock em São Paulo é pau-puro. As gravadoras estrangeiras se instalam no Brasil, iludindo muitos com pouco e as bandas começam a negociar as aberturas dos shows internacionais em dólar - o rock, agora, era decidido de cima para baixo.
Em 94, com vigor e público renovados, a Dorsal transou com a dona-ópera, mais uma vez, gerando o Alea Jacta Est, que conta a história de um Cristo negro e favelado nascido no Rio de Janeiro. Guitarras pesadíssimas e cantos gregorianos. Elogios por toda a imprensa especializada mundial. O show símbolo dessa fase foi no BHRIF, um muito bem organizado festival do governo esquerdista de Belo Horizonte com bandas independentes de todo o globo. Primeiros shows na América do Sul. Carlos abaixou a calça em Montevideo e o público aplaudiu por cinco minutos, ininterruptamente. Seria a vingança contra 1950? "O que faz alguém urrar: 'O que está faltando neste terrível mundo é amor' - em inglês - em meio a hecatombes death metal?", perguntou Pedro Só, do Jornal do Brasil.
Em fevereiro de 96, e já sem Cláudio Lopes no baixo - triste, mas necessária baixa -, o trio recomposto viajou para a Inglaterra, disposto a fazer o seu trabalho mais pesado. O nome Straight deu o tom. Nada a ver com filosofia straight-edge, mas a semelhança de um Carlos Lopes abstêmio, vegetariano, místico e recém-saído de uma relação doentia (casal neuras, lembram?) produziu um álbum forte e uma reação à moda imposta e aceita: a nova-velha moda do metal melódico (MEU DEUS, O QUE É ISSO?). Gravado abaixo de zero, as letras de Straight são pura "dor de corno" mas ninguém notou. A imprensa só falou da tendência hardcore do disco, como se isso fosse algo novo, esquecendo da variedade e riqueza de informações musicais de que Straight dispõe. Em Portugal, tocaram com o "Cradle Of Filth". Para promover o álbum, a Dorsal gravou, ao vivo, o Fúria Metal, da MTV.
Foi lançado Omnisciens, o tributo à Dorsal Atlântica com 13 (?) novas bandas de todo o país, sendo esse o primeiro tributo lançado com uma banda ainda em atividade. Fã-clubes pipocaram pelo país, filhos de fãs receberam o nome do tal Carlos e diversas pessoas redescobriram a banda. Somar o público do passado com os novos adeptos, fazendo com que a mensagem e a música, ainda, sejam relevantes, foi um dos 12 trabalhos de Hércules e a Dorsal conseguiu vencer mais esse obstáculo.
Uma campanha promovida pelas revistas Slammin’ e Metal Head para que a Dorsal tocasse no Monsters Of Rock de 97 conseguiu o incrível número de 35.000 assinaturas, sem o apoio da gravadora - que inclusive desestimulou, dizendo que isso não levaria a nada. Como a Dorsal não foi escalada e praga de Carlos tem poder, o festival de 1997 foi cancelado. O dado negativo do ano foi a participação da Dorsal no show da banda Madball, no Rio, com sintomática falta de organização por parte dos envolvidos. Mais uma crise na formação, motivada pela imaturidade dos membros quase pôs o navio a pique. O saco já estava ficando cheio.
No início de 98, o pós-moderno Alexandre Farias assumiu o comando das quatro cordas (na verdade, seis que atualmente são cinco) e a Dorsal partiu para a gravação de uma nova - e ainda inédita - demo para um novo álbum de estúdio. A banda foi convocada para integrar o cast do Monsters Of Rock, juntamente com Slayer e Megadeth, e no mesmo mês (setembro) o trio gravou em Fortaleza o seu primeiro "ao vivo". As idéias fervilhavam e foi ventilada a possibilidade de lançar-se uma biografia da banda, com a finalidade de contar o que é viver de música underground, suas mazelas e alegrias.
Em janeiro do último ano do século XX, a biografia Guerrilha! (a história da Dorsal paralelamente à história da própria cena metal) foi lançada, pela Beat Press, tornando-se fonte de inspiração para que outras pessoas, no meio, lançassem as suas. O CD Terrorism Alive (Ér Hab, para os mais íntimos) é editado pela nova gravadora Varda Recs, fundada por mim, após a última desculpa esfarrapada da antiga gravadora para não gravarem o novo disco de estúdio da Dorsal. Mesmo sem verba acreditamos e fizemos a nossa parte, produzindo e distribuindo, como reza a cartilha.
Após vinte anos de atividades, e devido principalmente ao desgaste do relacionamento entre os integrantes, decidi encerrar as atividades da banda. Alguns dizem que é uma fase, outros que nunca acreditarão no fim da Dorsal, mas junto com a banda foi-se uma época mais pura e apaixonada, em que a mídia e as gravadoras não tinham toda a influência que possuem hoje. As razões são muitas, menos o desinteresse por parte do próprio público, que sempre foi e é extremamente fiel à postura e ao som agressivo e técnico da banda. Os convites para novas tours continuam chegando, mas o momento é de reflexão e não de mais trabalho no placo – o habitat natural de toda banda. Se a Dorsal abriu portas, nada mais justo que as fechasse também. Se algum dia eu recuperar o estímulo que se foi... De qualquer forma continuo escutando os antigos trabalhos do Raven, The Rods, Picture, Anvil enqüanto este momento não chega. De qualquer forma, obrigado pela atenção.
Vosso camarada, assina em paz
Carlos Lopes
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