O hit do Camisa de Vênus com letra digna do Death Metal e crítica social contundente
Por Bruce William
Postado em 26 de dezembro de 2022
É difícil imaginar isso nos dias atuais, mas uma música com uma letra extremamente violenta, agressiva e contando de forma explícita a história de um estupro seguido de um assassinato que muito possivelmente não seria lançada hoje, não somente foi um grande sucesso que tocou à exaustão nas rádios mas também estava em um disco que atraiu o interesse de uma gravadora do porte da Som Livre, braço da Rede Globo, lá no começo dos anos oitenta.
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Tudo começou quando Marcelo Nova (vocal), Robério Santana (baixo), Karl Franz Hummel (guitarra), Gustavo Adolpho Souza Mullem (guitarra) e Aldo Pereira Machado (bateria) formam uma banda em Salvador, que sob sugestão de Marcelo adota o nome de Camisa de Vênus: "Algumas pessoas que iam aos ensaios já sabiam como era a banda, mas outras não tinham a menor ideia, e ficavam horrorizadas (...) Elas ficavam assustadas, porque a referência que elas tinham, evidentemente, era a música feita na Bahia, então era a antítese disso tudo (...) Essas pessoas comentavam com nossos amigos mais próximos - porque não tinham coragem de dizer na nossa cara - que a banda era desagradável, uma coisa incômoda. Aí me veio um estalo: 'Nada mais incômodo e desagradável que uma camisa de vênus, não é mesmo?'", contou Marcelo para André Barcinski, em entrevista publicada no livro "Marcelo Nova: O Galope do Tempo".
O Camisa de Vênus tinha um certo espírito "punk" que se refletia não só nas escolhas e atitudes mas também em algumas de suas letras, com conteúdo bem agressivo, como vamos ver um pouco mais adiante. Era o começo dos anos oitenta, o BRock estava começando a galgar degraus e com isso as bandas da época passaram a despertar atenção. Foi o que aconteceu com o Camisa que, com o apoio de um empresário local, Antônio Brito, que Marcelo chama o tempo todo de "Toninho Calça Justa", grava um compacto com duas músicas que começa a chamar a atenção das rádios e com isso a banda acaba gravando um álbum em SP, que Toninho oferece para a Som Livre e que fecha contrato com a banda.
Mas as coisas não seriam tão simples: "O disco já estava lançado, não tinha mais como mexer. A verdade é que nossa contratação foi decidida pelo baixo escalão da Som Livre. Só quando chegou ao topo é que os caras se deram conta de que tinham contratado uma banda chamada Camisa de Vênus. Aí rolou uma reunião para mudar o nome da banda", conta Marcelo para Barcinski. "A ideia era que gravaríamos outro álbum, mudando o nome da banda e incluindo músicas mais comerciais, que poderiam entrar em trilhas de novelas, além de fazer Globo de Ouro, Chacrinha, Fantástico, todos os programas da emissora (...) perguntaram que nome nós gostaríamos de dar para a banda. Eu disse: 'Se não pode ser Camisa de Vênus, só vejo um nome possível: Capa de Pica!' E terminou assim a nossa meteórica passagem pela Som Livre".
O álbum vendeu 30 mil cópias antes de ser boicotado pela gravadora, o que já era um excelente número para a época. E a música que puxou as vendas e que mais tocou nas rádios da época foi "Bete Morreu", um típico punk rock de harmonia e melodia simples com andamento rápido, que acabaria entrando para o repertório eterno do Camisa: "Bete tão bonita, gostosa/ Era a atenção da escola/ Sempre na coluna social/ Exibindo seu sorriso banal/ Todos queriam Bete/ Desejavam Bete/ Sonhavam com Bete/ Mas ela nem ligava", diz a letra em seus primeiros trinta segundos, até então parecendo que seria uma historinha comum sobre uma patricinha qualquer.
Mas poucos segundos depois vem a paulada em uma curta mas incisiva frase, que se for ouvida ou lida com atenção causa terror e pânico: "Um dia ela saiu de casa/ Mas ao dobrar a esquina/ Foi empurrada dentro de um carro/ Para deixar de ser menina". E logo em seguida, sem dar tempo de respirar ou até mesmo de se indignar, a canção se torna ainda mais brutal ao relatar o cruel destino da moça: "Amordaçaram Bete/ Espancaram Bete/ Violentaram Bete/ Ela nem se mexeu/ Bete Morreu!/ Bete Morreu!".
Antes de se encerrar nos seus breves e intensos 1 minuto e 50 segundos de duração, a música ainda tem mais um desfecho relatando a trágica e violenta história sem final feliz: "Seu corpo foi encontrado/ Por um chofer de caminhão/ E agora está apodrecendo/ Lá dentro do caixão/ Amordaçaram Bete/ Espancaram Bete/ Violentaram Bete/ Ela nem se mexeu/ Bete morreu/ Bete, Bete morreu".
Marcelo Nova conta como surgiu a letra de "Bete morreu"
Apesar do sucesso junto ao público, em 1986 "Bete Morreu seria censurada, junto com outras sete músicas lançadas pelo Camisa no "Viva", álbum gravado ao vivo em Santos, no começo de março. "Vi meu disco sendo preso na loja Hi-Fi do Shopping Iguatemi", relatou Marcelo em entrevista de 2011 ao Estadão. "Os caras pegaram duas caixas com 50 discos. Eu só fiquei rindo. Perguntei: 'vem cá, não seria mais sensato me prender?' Ele me olhou de cima abaixo, e falou: 'quem é o senhor? Eu disse, 'a pessoa que gravou esse disco'. 'Isso aí não é função nossa. Nossa função é recolher o álbum que está proibido'. 'Então tá' (risos). Que coisa ridícula! Isso tudo em nome da moral, dos bons costumes, e de seja lá o que for".
Ao ser questionado pelo jornal sobre o fato de não existir mais essa censura formal, porém uma onda de politicamente correto que a cada dia que passa se torna mais forte que poderia impedir o lançamento de uma música como "Bete Morreu", Marcelo respondeu: "O que tem 'Bete Morreu' para ser censurada? 'Amordaçaram Bete, espancaram Bete, violentaram Bete, ela nem se mexeu, Bete morreu!' Liga no Datena, que é dez vezes pior! (risos). 'Bete Morreu' na verdade é uma canção que escrevi no meio de uma dor de barriga. Fui para o banheiro, catei o jornal, e lá estava falando do assassinato de uma garota cujo corpo tinha sido encontrado por um chofer de caminhão. Saí de lá e meio que transcrevi aquilo. Então 'Bete Morreu' é apenas e tão somente uma canção de um cara muito jovem, que estava começando a escrever".
As duas palavras na música do Camisa de Vênus que despertaram a atenção da Censura Federal
"Viva" havia vendido, até então, 40 mil cópias. Conforme relata o Correio Braziliense: "Em 1986, quando o álbum do Camisa de Vênus foi recolhido, apreensões de discos não estavam mais na ordem do dia: eram ecos de um tempo de tolerância quase nula, mas que, na contramão dos avanços políticos ainda afetavam a criação cultural (...) Para a Divisão de Censura de Diversões Públicas, a canção usava 'termos grosseiros' para contar a história do assassinato de uma mulher. No parecer dos censores, analisado pela reportagem, a palavra 'tesão' aparece sublinhada. Para garantir a liberação da letra, Marcelo aceitou alterar as palavras mais polêmicas: 'gostosa' foi substituída pelo inofensivo 'cheirosa' e 'tesão' virou 'atenção'". Depois de liberado, "Viva" engrenaria novamente nas paradas e acabaria vendendo 180 mil cópias.
Na Tese de Doutorado "Rock e quadrinhos nas páginas da revista Chiclete com banana (1985-1990)", onde o autor Rodrigo Otávio dos Santos teoriza como a revista e o rock nacional enxergavam o Brasil e o mundo naquela época, ele menciona a música como um dos exemplos da visão punk anarquizada e zombeteira daqueles tempos, ao falar sobre o Camisa de Vênus: "Seu primeiro disco mostra uma banda violenta o suficiente para zombar de um estupro seguido de morte em 'Bete Morreu' ou do suicídio de um jovem desesperançoso em 'Pronto pro suicídio' (...) 'Bete Morreu' é uma canção punk. Narra o estupro e a morte da moça mais cobiçada da cidade. E o eu lírico da banda, punk, acha graça dessa situação".
De fato, ao vivo, "Bete Morreu" era ainda mais virulenta e punk, conforme podemos ver em filmagens online, chegando a ter no meio da música um "Bete se fudeu!", o que poderia levar a uma interpretação errônea de letra, mesmo sendo apresentada lá na época por Marcelo como sendo uma canção "anti-telúrica", ou seja, o contrário de uma música "elétrica, extasiante, extravagante, carregada de entusiasmo e alegria".
Na verdade, Marcelo sempre deixou claro, e isso se intensificou ainda mais ao longo dos anos, que a canção era um retrato de uma tragédia absurda e que o objetivo era chamar a atenção para a questão do feminicídio, tendo sido essa uma das primeiras músicas a falar sobre o tema: "É preciso ter raiva. A ideia de paz e amor é bonitinha, mas lhe confina a uma situação de passividade. E a arte não é passiva. Quando escrevi 'Bete Morreu' com Roberinho, a imprensa falava: 'Que mau gosto. Uma música falando de estupro seguido de assassinato'. E hoje, 39 anos depois, o Brasil é campeão mundial de estupros e de assassinatos", disse o vocalista em entrevista para o G1 de 2019.
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