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Motörhead: Justiça a um disco que até o Lemmy olhava com desgosto

Resenha - Hammered - Motörhead

Por Rodrigo Contrera
Postado em 16 de setembro de 2016

Não me recordo exatamente onde o Lemmy comenta o mau desempenho e a (possível) má gravação de Hammered, disco que para mim praticamente estabeleceu um modo de ser de sua banda. O Lemmy, note-se, comentava o disco enquanto resultado, e aparentemente era injusto com a equipe que o havia gravado. Não sei realmente se ele tem razão. Mas para mim o disco é e sempre será magnífico, um dos mais pesados do Motörhead nessa que iria se tornar sua formação clássica, com faixas que até hoje fazem minha cabeça. Irei comentar aqui como recebi o Hammered, por que ele faz tanta diferença na discografia que tenho da banda, e por que considero que o Lemmy não tem tanta razão assim ao desqualificá-lo.

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Capengando

O CD é realmente um CD "sujo", e o Mickey Dee comenta, num link em um Wikipedia, que ele foi feito sob a influência dos atentados de 11 de setembro, em Nova Iorque. Claro, não somente pela sujeira, mas também pela temática, o CD não é um CD que começa, avança ou termina simpático. É um CD forte e sujo que opina claramente a respeito dos temas sempre caros para o Lemmy, e que não se furta a chocar, ou quase. Nesse sentido, é quase um CD marginal, que não embarca tentando agradar, e cujo som surpreende por isso mesmo (também). Basta ver a primeira faixa, como um exemplo, "Walk a Crooked Mile", que um dia avaliei em tradução e que aparece meio que lenta, quase parando, para acelerar um pouco logo em seguida, e que traz uma energia baixa, escura, densa e relativamente triste. Eu me lembro que ela me passava a impressão de um sujeito andando, trôpego, na rua, sem ter muito aonde ir. E ainda hoje ela me passa impressão desse tipo. Isso, deixo claro, não nos impede de gostar da faixa, nem da energia que expressa. Mas, repleta de "don't"s para cá e para lá parece um prenúncio de uma obra que nos impede de acreditar, de apostar naquilo em que acreditamos, como se estivéssemos errados ou enganados a respeito do mundo que vemos.

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Mas, agora vem o meu lado subjetivo, realmente adoro aquele tipo de som, o timbre duro e agressivo que parece nos desconcentrar, e diante do qual mal temos chance ou vontade de nos afirmarmos. Pois é como se, diante das porradas que ele diz, é como se, ao acreditarmos, fôssemos idiotas ou otários. E a grande verdade é que em geral é o que somos. Uma faixa perfeita para esse momento pós-atentados, em que nem adianta muito nos protegermos ou visarmos nos proteger. Era um começo de século, precisamos perceber, em que os ainda renitentes sonhos por algo de bom pareciam ter se defrontado com selvageria pura, e em que mal havia espaço para crença, diante disso que todos nós víamos. Foi inclusive um momento em que eu lancei ao espaço minha primeira peça, que era só lamento. Ocorre que o Lemmy não tinha espaço para lamentos. Tudo para ele era uma aposta para a frente, como apostador que sempre foi numa vida em que a pegada era curtir, pura e simplesmente.
Uma pegada

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Mas aí a pegada do CD se recupera, com "Down the line". E é curioso ouvir essa música, hoje. Na época em que eu ouvia o CD em meu carro, um Classic, eu saía pela noite, finalmente escapando ou escapulindo do suposto controle de minha então esposa. Porque eu entendia essa faixa como uma espécie de pequeno libelo de liberdade - e é o que é. E é um libelo quase ingênuo, na verdade, porque como que narra aquele momento em que o homem quer se afastar, e cruzar a linha (errada), deixando aquela que o ama a ver navios - que era o que eu fazia. Mas eu na verdade não fazia nada errado. Eu apenas saía, e escapava do controle do casal, que eu também mantinha, e do qual não sabia como escapulir. Mas esta faixa tem umas características engraçadas, tem uma queda de energia para valer, algo que nos faz criar um ânimo introjetado, e que nos revela mais de nós do que nós mesmos talvez queiramos admitir. Pois imagino que a faixa também possa embalar a queda do homem no seu critério, a saída do seu rumo, sabendo que não há mais queda (ou queda maior) a fazer a não ser a da fuga. Como se a dica aqui fosse dizer que há o incontrolável, e ele é ir para além da linha admissível (down the line). É uma das faixas mais maneiras do Motörhead que mais me agradam, de todas as que eu conheço, até porque sua mensagem é aparentemente clara, e nos diz aquilo que precisamos ouvir, nós, que precisamos nos libertar (claro que eu perdi minha esposa, alguns anos depois.

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O mundo

Ocorre que, para o Lemmy, também havia o espaço para o comentário de ordem social ou política, e ele podia por vezes aparecer travestido de mensagens relativas a livros ou tramas envolvendo nosso mundo corriqueiro. É o caso de "Brave New World", a faixa que segue, que faz um comentário ácido e rasteiro daquilo em que o mundo se tornou no século XX e nesse começo de século XXI. Um mundo de desigualdades, de pessoas morrendo à míngua, de injustiças, em que a política como sempre dá as caras que valem, e em que nós precisamos ver tudo se desenrolar bem na nossa frente.

Ocorre que eu ouvia essa faixa, em meu carro, quando voltava para casa, e concordava com o panorama. Não tinha muito com o que me preocupar na época. Tinha meu emprego, com o qual me dava mais ou menos bem, tinha meu lar, e não possuía uma postura excessivamente crítica diante daquilo que ocorria a olhos vistos bem na minha frente. Eu era um sujeito de classe média ou média baixa relativamente acomodado, mas interpretava a leitura do Lemmy como a leitura de alguém que olha o mundo bem à sua frente, como espectador, sem ter muito o que fazer diante do que acontecia. E era bem isso o que nutria do panorama, que porém tinha a ver com outras tramas, já mais literárias, sobre as quais não nutria muito interesse em me aprofundar. Íamos, minha esposa e eu, aos shoppings da vida para comer ou ver lojas, e o mundo não nos afetava muito fortemente. Mas eu nutria alguma crítica, e era bem esta do Lemmy, em faixa que não era porém das mais preferidas, mas pela qual eu não passava direto. Era algo que engolia com aceitação bastante grande.

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A guerra sem fim

Pois é que até a sola de nossos sapatos sabe o quanto a guerra era importante enquanto material de reflexão para o Lemmy, desde que se considerou como gente. Note-se, porém, que não apenas esse tema ocupava a mente dele. A religião também, ou a antireligião. Pois quem não sabe é bom que saiba que o pai do Lemmy era um capelão, se não me engano militar, e que ele o abandonou (ao Lemmy) quando ele (o Lemmy) era bebê, com apenas três meses de vida, aparecendo aos 17 anos, quando o Lemmy já sabia o que queria da pegada que iria ser a sua vida. Mas, voltando ao tema da guerra, ele se manteve com o Lemmy até o seu fim, sempre sob a égide de suas paixões (as armas, as insígnias, os brasões), assim como o que podemos imaginar do destino de quem se viu preso a ela, à guerra, enquanto destino (morte, loucura, fixação, ou qualquer coisa desse tipo). Note-se que o próprio Lemmy nasceu e viveu sua infância, adolescência e começo de maturidade às voltas com os resquícios da Primeira Guerra e com a realidade da Segunda. Em todos os sentidos, Lemmy tinha o que falar a respeito, e o dizia frequentemente em diversas músicas, assim como em declarações públicas (sem contar em sua participação em vídeos e documentários).

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Ocorre que, para quem sabe o que é um país em guerra, a guerra não desaparece - ela permanece, sempre, como marca, seja enquanto fixação, ferida externa ou interna. Eu vivi um golpe de Estado - o do Chile. E minha fixação em armas vem daquela época. De ver - quem sabe - meu pai recebendo uma arma das mãos de meu tio Alberto, de ver pequenos bombardeiros de treinamento jogando bombas na casa do então presidente Allende - com minha mãe tentando me impedir -, de ver um desses bombardeiros fazendo rasante em mim, para me dar pavor - e conseguindo -, de ouvir F-5Es quebrando a barreira do som na Cordilheira dos Andes, e aqui, no Brasil, me envolvendo, enquanto jornalista, na cobertura de aviação para revistas do setor. Isso sem contar que visitei depois a Airbus e conheci gente envolvida no desenvolvimento do caça AM-X, e que pesquisei sobre materiais de alto rendimento, e tudo mais. As armas ainda fazem parte de meu imaginário, e pior, sei o que elas significam, para um rapazola de 6 anos (quando rolou o golpe de 1973), ou para um jornalista fissurado em armas de assalto, e até mesmo em armas de fogo em periferias - fui repórter de geral e em parte policial. O uso da força sempre fez parte de meu imaginário.

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Seria irrelevante lhes dizer o quanto esta faixa, "Voices from the war", disse e ainda diz para mim. Porque, do alto de minha pequena experiência - experiência é quem experimenta ao vivo uma guerra, algo que até tentei -, sei que para quem vai numa guerra o resultado é sempre devastador. Sei também que não existem palavras para aquilo que acontece numa guerra, sendo que eu apenas experimentei uma civil. Sei também que, do algo dessa inexperiência, a vontade de traduzir em música algo intraduzível é absurdamente desafiador. E mais: sei que o peso desta faixa, que é imenso, não deve ser absolutamente nada diante de quem sabe o que é uma guerra (e o que vemos em nossas periferias, senão parte de guerras civis?). Mas Lemmy não arreda, ele quer falar disso, e fala do jeito que pode, e fala de um jeito que eu entendo que se aproxima da dor de quem é deixado para trás, ou da dor de quem deixa os seus queridos para trás, ou de quem vê seus membros serem amputados, ou de quem sente o valor de quem sabe o que é o sofrimento em estado bruto. Porque é isto o que esta faixa se propõe ser: uma tradução da dor em estado bruto, tão e somente isso. E eu, que algo conheço, sei que se aproxima. Tentei gritar os gritos enquanto o Lemmy grita, e vejam o drama do que ele grita, e saberão do que é que estou falando. Uma faixa que está dentre as minhas preferidas de todos os tempos, no tema e mesmo fora do tema. A dor em estado bruto e latente.

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A vida corriqueira

Claro que, em termos de vida, a vida do Lemmy e banda (com sexo, drogas e rock'n roll) não era, venhamos e convenhamos, uma vida de guerra. Pois a guerra era tema, e havia outros temas. E esses, mais corriqueiros, também compõem o CD, como algo relativo a relacionamento ("Mine, all mine"), ou a como tratar a pessoa errada ("Shut your mouth"), ou a como um homem macho poderia se considerar sendo rockstar ("Dr Love"). Acontece que, musicalmente, essas músicas nunca me atraíram muito, nem pelo tema, e eu as deixava passar (menos a "Shut your mouth", que corroborava minha forma, tosca, crua, na época, de ver o mundo). Ao contrário, eu deixava que elas passassem na minha seleção para concentrar-me nas outras que as envolviam, e que diziam respeito a um ponto de vista mais forte, mais tosco, mais determinante, ao menos na época, em minha forma de ver o mundo.

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Eis que chega a crueldade

Pois, se há alguma coisa em que "Hammered" realmente parece ultrapassar todos os demais CDs do Motörhead é nos requintes de crueldade a que faz jus e que torna música. Pois, se já em "Shut Your Mouth" prevíamos uma forma bastante cruel de lidar com pessoas cuja mera existência parece que não aceitamos, o que pensar em "Kill the World", em que mandamos o mundo às favas, e pensamos apenas em nos salvar, ou em "No Remorse", em que vemos o fim da nossa vida e dizemos a todos que não temos remorso em nada do que fizemos? Difícil esperar algo mais pesado, algo mais tosco, algo mais próximo de um Death Metal sem sê-lo, porque o Lemmy tirava sarro da forma pela qual os admiradores desse gênero tentavam se impor diante do seu público. E realmente basta ver as fotos do encarte de "Hammered" para notar que nem o Lemmy nem a trupe estavam, nessa época, muito a fim de conversa. Ocorre que no meu clima de desânimo e de fim de relacionamento este CD combinava às mil maravilhas - e piorava tudo, inclusive (sem que eu pudesse fazer nada a respeito). Daí o lugar que o CD como um todo ocupa em mim.

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E, claro, sem sequer ainda comentar "Red Raw" e "Serial Killer", simplesmente as maiores porradas do Motörhead que eu conheço e que meio que se dispõem a ENCARNAR como um matador se sente quando faz o que deve e sente atingir o ápice no ato. Acho até estranho que as pessoas não tenham realmente se tocado da crueldade envolvida nessas faixas, que quando eu estou maluco coloco em primeiro lugar na série das que preciso ouvir. São coisas de mau gosto, para muitos, com certeza, mas que a meu ver também são conquistas expressivas, pois ali o Lemmy queria também dizer o indizível. Algo que ele conseguiu.

Ah, sim, o desgosto de Lemmy era com o desempenho do CD no contexto todo da banda. Mas creio que ele tenha sido injusto (um pouco, pelo menos).

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Espero que tenham curtido.

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Sobre Rodrigo Contrera

Rodrigo Contrera, 48 anos, separado, é jornalista, estudioso de política, Filosofia, rock e religião, sendo formado em Jornalismo, Filosofia e com pós (sem defesa de tese) em Ciência Política. Nasceu no Chile, viu o golpe de 1973, começou a gostar realmente de rock e de heavy metal com o Iron Maiden, e hoje tem um gosto bastante eclético e mutante. Gosta mais de ouvir do que de falar, mas escreve muito - para se comunicar. A maioria dos seus textos no Whiplash são convites disfarçados para ler as histórias de outros fãs, assim como para ter acesso a viagens internas nesse universo chamado rock. Gosta muito ainda do Iron Maiden, mas suas preferências são o rock instrumental, o Motörhead, e coisas velhas-novas. Tem autorização do filho do Lemmy para "tocar" uma peça com base em sua autobiografia, e está aos poucos levando o projeto adiante.
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