Heavy metal nacional: tesouro injustamente recôndito - Parte 2
Por Marcelo R.
Postado em 05 de dezembro de 2023
I. Contextualização:
Essa matéria é continuação do texto que escrevi, há poucos meses, no espaço virtual do Rock Show (coluna acessível por meio deste link) e a ele se soma, num trabalho contínuo e crescente, cujo objetivo é auxiliar, numa união de pequenos esforços, na projeção e divulgação de bandas de metal nacional.
A respeito da meta – autoproposta – de abordar, numa linha cronológica contínua e incessante, o tema do metal nacional, reservei longas linhas, no primeiro texto, para justificar a iniciativa – quase uma ambição – que me impulsionou a esse projeto. Não economizei palavras. Nesse particular, remeto, aqui, à primeira parte do texto, mas destaco, por considerar pertinentes, algumas digressões, que reproduzo novamente, apenas para situar o leitor que, porventura, tenha iniciado a leitura desse trabalho/projeto diretamente a partir dessa segunda parte:
"(...) o heavy metal nacional, inclusive em seus inumeráveis subgêneros, tem algo de peculiarmente especial. Titula, por alguma qualidade ou propriedade mística desconhecida, o dom de aguçar todas as virtudes que a boa música consegue movimentar e instigar no imo dos sentimentos do ouvinte. Há, nas bandas nacionais, um quê de único, de incomparável, que transcende os aspectos técnicos e que fazem da nossa música pesada campo fecundo. Fértil em quantidade, mas, sobretudo, em qualidade, posicionando o Brasil, assim, a meu ver, na categoria número um entre os países com a melhor safra de heavy metal do mundo.
Sou brasileiro. Não impregno, porém, ao meu discurso, qualquer veia patriótica. Aliás, não sou simpático à ideia de defesa excessiva do nacionalismo (essa palavra — nacionalismo –, por si só, ao menos para mim, carrega alta carga negativa). Sou, na verdade, um tanto avesso a isso: ao excesso de patriotismo. Historicamente, conhecemos os efeitos terríveis do excesso de orgulho à própria origem. Por escapar aos objetivos desse texto, não pretendo avançar nessa digressão. Consigno-a, porém, apenas para enfatizar que sei separar as coisas. Tento, assim, sempre na medida do possível, agir com isenção. Gosto do metal nacional pela sua qualidade. Não pela sua bandeira.
Sei, ou creio saber, a respeito do que escrevo. Conheço o metal nacional. Conheço, também, o metal dos demais países, inclusive — e, sobretudo — aquele que habita as profundezas do underground (onde o meu coração encontra lar). E, nesse contexto, considero que o Brasil titula posição indisputável. Falo-o, como já adiantei, com alto grau de subjetividade. A impressão é pessoal. Sem rigor técnico na análise. Ressalto, porém: não lanço opiniões APENAS com a paixão "de torcedor". Repito: conheço as bandas nacionais, embora não saiba avaliá-las tecnicamente. E o espaço desse texto — e de outros que pretendo elaborar sobre o assunto — servirá, sobretudo, para falar um pouco sobre elas, especialmente — embora não exclusivamente — daquelas que vêm lançando, recentemente, materiais novos. Esse conteúdo precisa ser conhecido e ouvido".
Registrada essa introdução – discorrida apenas para contextualizar o leitor quanto ao conteúdo e aos objetivos desse texto –, parto diretamente, sem delongas, à exposição do catálogo de bandas que comporão esse segundo capítulo de um trabalho cujo fim não é visado ou divisado. Assim o espero, ao menos.
Destaco, novamente, que os comentários lançados a respeito das bandas e dos lançamentos citados não têm caráter, tampouco estrutura técnica, de resenhas. Registro, apenas, comentários acerca das características dos conjuntos e dos seus registros. Faço-o como forma de lançar foco e luz à sua música, trazendo elementos para que o leitor conheça um pouco da proposta musical dos grupos mencionados e, interessando-se – como espero aguçar no espírito de quem ler os textos –, estimule-se a conhecer o respectivo trabalho, dentro dos gostos pessoais individuais.
O apoio, real e efetivo, é essencial à sobrevivência da cena e, no geral, de todo trabalho artístico. Fica, então, o convite e o estímulo ao aprofundamento no trabalho de bandas que, empenhadas, vêm entregando som de qualidade e que, justamente por isso, não merecem permanecer como "tesouros injustamente recônditos".
II. Heavy metal nacional: tesouro injustamente recôndito, parte 2.
1. Banda: Anderuvius.
Álbum indicado: Painter of the universe
O Anderuvius está radicado na cidade de Sorocaba, interior de São Paulo. O conjunto conta, por ora, com apenas um registro, intitulado Painter of the universe, lançado em 2021.
O álbum de estreia soa, para um desavisado, como trabalho de veteranos, tamanha a qualidade entregue na complexa e técnica musicalidade executada pelo grupo. Aliás, o profissionalismo não está, exclusivamente, no nível das composições, mas em todo o conjunto da obra, inclusive nos quesitos de gravação, produção, trabalho gráfico e conceito de letras.
O Anderuvius executa um estilo catalogável, na essência, como metal progressivo, com perceptíveis toques e influências, porém, de metal melódico e de heavy metal tradicional, aqui e acolá. As canções, porém, não são longas. A maior faixa do álbum, Elliot in the Dust - The Cloud Strider, possui aproximadamente 6min (seis minutos). O efeito prático dessa característica composicional é o de que a banda, embora prime pela complexidade técnica, não cai na armadilha do pedantismo, com canções intermináveis e excessos de virtuosismos que, no mais das vezes, fadigam o ouvinte. Não há, aqui, excesso de técnica sem objetivo definido (ou apenas com o intuito de mostrar técnica, pura e simplesmente). As canções reverberam uma musicalidade palatável, com passagens atmosféricas e melódicas, temperando o som complexo com excertos acessíveis, tornando a audição uma experiência singular e agradável na qual, à sua estrutura técnica complexa, aliam-se feeling e melodia.
O som é pesado e obscuro, mas, como afirmado, contrabalanceado com elementos mais melodiosos, permitindo uma experiência pluridimensional.
O álbum conta com a participação de Leandro Caçoilo (Viper, Caravellus, ex-Eterna etc.) na faixa de abertura. A produção é, ainda, assinada por Tito Falaschi. Nomes de peso que confirmam a afirmação de que o trabalho é de estreia, mas a qualidade e o profissionalismo são de veteranos.
O álbum é conceitual e as letras refletem, em grande medida, as elogiosas aptidões de escrita criativa do vocalista Adrian Blakk, autor de vários livros focados, em regra, em temas distópicos, de fantasia e de ficção científica. A história completa que embasa o conceito do álbum, elaborada na forma de livreto, pode ser encontrada, na íntegra, no site oficial da banda, acessível por meio do link mencionado ao longo deste texto.
Em Painter of the universe, minha canção favorita é, curiosamente, a que mais destoa do padrão executado ao longo do álbum: a balada All in vain. Acústica, atmosférica e com altíssima carga emocional, repito-a incansavelmente ao fim de cada audição, por incontáveis vezes. Caracterizá-la como monumento não é exagero. O segredo está, por vezes, na simplicidade. É, por vezes, o que cativa. O que nos captura e arrebata, como ouvintes e apreciadores de arte.
Tive a chance de ver a banda ao vivo no primeiro festival de metal da cidade de Tatuí, evento que aconteceu em dezembro de 2022 e em cujo cast também figuraram as bandas Pettalom, Lethal Accords e Black Eagle.
Não me lembro de ter presenciado outra banda – nacional ou estrangeira – que, em ação no palco, tenha executado um show com tamanha perfeição técnica e com tanta fidedignidade em relação ao trabalho de estúdio. Eis um conjunto que, considerando as aptidões técnicas, merece estourar na cena. E que seja em breve.
Vida longa e sucesso ao Anderuvius!
Links:
https://www.instagram.com/anderuvius/
https://www.instagram.com/anderuvius/
https://anderuvius.com/
2. Banda: Ego Absence.
[an error occurred while processing this directive]Álbum indicado: Serpent's Tongue
No primeiro festival de metal nacional promovido pelo selo Metal Relics, que aconteceu ao final do ano de 2022 – e que contou, em sua escalação, com as bandas Living Metal, Xfears, Wizards, Caravellus e Aquaria –, promoveu-se uma votação, aberta ao público, para eleição da sexta banda do cast.
Com o ingresso comprado, exerci o direito de voto. Optei pelo Ego Absence, que, ao final, sagrou-se vencedor. Lamentavelmente, por problemas pessoais à época, não pude comparecer ao evento, embora, como dito, eu já estivesse com o ingresso comprado e em mãos. Contentei-me, porém, com a vitória do conjunto, embora não tenha tido, à época – e, tampouco, até o momento –, o privilégio de vê-los ao vivo.
O Ego Absence é capitaneado pelo exímio vocalista Raphael Dantas, personalidade já consolidada na cena do metal underground nacional, inclusive pelo seu rico currículo, biografado com passagens por bandas como Caravellus e, atualmente, por figurar na formação de bandas como Gates of Paris e do monumental Soulspell.
O Ego Absence desenvolve uma proposta caracterizável, essencialmente, como power metal, com foco, porém, no peso e na sinfonia. O som é desenvolvido a partir de uma musicalidade mais cadenciada e, ainda, sem exageros de vocais agudos. A propósito, Raphael Dantas, vocalista extremamente versátil, modula, com segurança e excelência, tons mais graves e limpos, alternando-os, porém, com matizes mais agressivos, a depender das exigências de cada canção e de cada passagem.
[an error occurred while processing this directive]Votei no Ego Absence para figurar no mencionado festival – sem prejuízo, obviamente, da excelência das demais bandas em disputa –, por acreditar, intimamente, na qualidade e na diferenciação da sua proposta musical.
Em alguns poros já saturados de determinados subgêneros do metal, há artistas que ainda titulam o dom de explorar algo novo ou, ao menos, reinventam-se, de modo a entregar materiais criativos e tecnicamente precisos, aptos a despertar (e a manter) o interesse do ouvinte em gêneros, por vezes, já repetidamente revisitados. Penso que o Ego Absence é detentor dessas qualidades, ao entregar um som bem produzido, pesado, cadenciado, numa estrutura multidimensional – com influências de progressivo, metal sinfônico e pitadas de hard rock –, que escapa aos clichês do gênero ou ao lugar-comum de campos já explorados e esgotados.
Não deixem de conferir o álbum Serpent's Tongue, primor do metal nacional.
3. Banda: Primordial Idol.
Álbum indicado: Solitude
Imergindo às dimensões mais pesadas, obscuras e extremas da música pesada, o espaço é reservado, agora, a um conjunto de black metal, também radicado na cidade de Sorocaba: Primordial Idol.
O Primordial Idol executa um metal extremo direto, que não se confunde, porém, com produção inaudível e crua (típica das gravações de alguns álbuns do gênero, especialmente ao final da década de 80 e início dos anos 90, aos primórdios do surgimento do estilo). Ao contrário: nos aspectos de gravação e produção, o Primordial Idol oferece um som caracterizável como limpo, com riffs de guitarra cortantes e viscerais, bem alocados e bem definidos nas canções, e com camadas de teclados que enriquecem a experiência musical, numa miscelânea que, porém, não direciona às vertentes mais atmosféricas, melódicas ou sinfônicas do gênero. A raiz assenta-se em bases e estruturas mais agressivas, intensas e diretas do black metal, embora envoltas por um matiz cadenciado e passagens mais lapidadas e estruturalmente trabalhadas, que, porém, como afirmado, não deslocam o estilo da banda aos subgêneros sinfônicos e melódicos do estilo.
Algumas canções possuem, ainda, um quê melancólico, a exemplo da faixa Serpente, minha favorita do álbum. A atmosfera singular dessa música desenvolve-se num estilo que, particularmente, é o meu favorito dentro do segmento. Traz-me à memória canções, composicional e estruturalmente, assemelhadas a Transilvanian Hunger (Darkthrone), From the Black Coffin Lair (Sargeist) e trechos de Falcula (Dawn).
Às vezes, confesso, gostaria de conhecer um pouco mais a parte técnica da música, apenas para compreender como algumas estruturas e camadas são idealizadas, compostas e executadas, para o alcance de certos resultados (como em Serpente). Limito-me, porém, a exteriorizar impressões como leigo. E, fazendo-o nessa condição, afirmo que esse estilo de black metal, com um quê melancólico – não confundível, frise-se, com os subgêneros depressive black metal ou funeral doom metal –, é o meu favorito do estilo. Há bandas primorosamente aptas à execução de música com enorme nível de excelência, mesmo num gênero que, por vezes, não oferece tanto espaço para experimentações. O Primordial Idol, nesse aspecto, impressiona.
O conceito de letras é dotado de profunda veia filosófica. Ainda, a banda pertence a um nicho afastado, no aspecto ideológico, à cena dos conjuntos com visões e ações fascistas, autoritárias e antidemocráticas (tão comuns nesse segmento, lamentavelmente), repudiando-os. Mais um ponto extremamente positivo ao Primordial Idol, que não fica em cima do muro em assunto tão sensível (e que, especialmente em momentos como o atual, exige clara e manifesta posição... e oposição).
Caso o leitor aprecie o subgênero mais extremo e pesado do metal, não deixe de conferir o Primordial Idol.
4. Banda: Allen Key.
Álbum indicado: The Last Rhino
Conheci o Allen Key há poucos meses, na abertura para o show do Tuatha de Danann, em janeiro de 2023, no Jai Club.
Ao resenhar o concerto do Tuatha de Danann, esmiucei detalhes sobre a sonoridade do Allen Key, já que, pela qualidade apresentada no palco, o conjunto merecia capítulo autônomo e exclusivo no texto (acessível por meio deste link).
Aproveito trechos da referida resenha, que transcrevo aqui como parte integrante deste texto, com as devidas adaptações, para discorrer um pouco sobre o Allen Key.
Definir o som do Allen Key é tarefa árdua. Árdua, pela dificuldade de traduzir, em correspondentes e equivalentes palavras, aquilo que só se absorve e se degusta por experiência auditiva. Árdua, sobretudo, porque a música do conjunto é bastante heterogênea e sortida.
O Allen Key distribui melodias e ritmos para todos os gostos, sem, porém, perder a essência do direcionamento que lhe confere a base principal.
O som da banda, vibrante e empolgante, deita raízes, primordialmente, no hard rock, mas é estruturado a partir de elementos pesados e modernos. É como se o Allen Key, escapando aos clichês e à mera reprodução de espaços musicalmente já ocupados ou saturados, oxigenasse o estilo mais clássico de hard rock com uma proposta contemporânea e moderna, dando um respiro ao gênero, com uma identidade muito particular. Essa miscelânea, equilibrada com harmoniosa justeza, permitiu à banda alcançar resultado singular, fora do lugar-comum.
Ao lado de canções mais vivazes e velozes – que colorem, no geral, o tom da sua sonoridade –, The Last Rhino (álbum de estreia e único lançamento do conjunto, por ora) é temperado com músicas mais lentas e introspectivas, como Goodbye, e outras com uma atmosfera mais romântica, à la glam hard rock.
Por outro lado, algumas músicas do Allen Key são tão pesadas, que visitam a fronteira do heavy metal e, até mesmo, de alguns de seus subgêneros mais agressivos, como o metalcore. Contribuindo com essa miríade, é importante destacar o papel da vocalista Karina, com a sua impressionante versatilidade. Além de comandar voz potente, ela domina capacidade técnica admirável, que lhe permite transitar, com total controle, autodomínio e segurança, por amplíssimo diâmetro musical. Em canções mais melodiosas e serenas, Karina entrega sua voz a tons mais limpos, doces e delicados, conferindo a essas composições grande carga de feeling e, até mesmo, alguns matizes dramáticos. Noutras, mais enérgicas, ela alcança notas altíssimas e, quando a composição assim o exige, Karina emprega técnicas mais agressivas, beirando, em passagens especialmente pesadas – não raras –, estilos semelhantes ao metalcore. Essa é, ao menos, a minha leiga percepção.
Vale a pena conferir.
Essas foram, então, as sugestões reservadas à segunda parte do texto/projeto "Heavy metal nacional, tesouro injustamente recôndito": Anderuvius, Ego Absence, Primordial Idol e Allen Key.
Em breve, mais.
Boa audição.
Até a próxima!
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