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Rock além da cortina: Bulgária

Por Giancarlo D'Anello
Fonte: Medium
Postado em 02 de novembro de 2018

Inúmeros foram os autores e jornalistas culturais que trataram do desenvolvimento das culturas de massa nos países do bloco comunista do leste europeu durante as décadas de 60 e 70.

Entre os anos de 1946 e 1989 vigoraram na Tchecoslováquia, Bulgária, Romênia, Polônia, Hungria e Alemanha Oriental regimes alinhados parcialmente ou completamente com a URSS. Nem todos foram implementados através de golpes de estado ou revoluções — alguns foram simplesmente eleitos através do voto popular. Porém, não tardou para que em todos eles a liberdade de expressão e as liberdades civis passassem a ser atacadas constante e sistematicamente pelo Estado por motivações ideológicas, até o ponto em que fossem suprimidas completamente e as populações se vissem praticamente isoladas das influências estrangeiras.

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Apesar de cada processo nacional ter sido singular, vigorou em todos eles a doutrina geopolítica soviética da "soberania limitada", teorizada por Brejnev em 1968, segundo a qual nenhum país socialista poderia ter sua soberania respeitada integralmente pois, se houvesse a iminência do avanço capitalista em algum deles, este problema ja não seria mais somente nacional, e sim do conjunto dos países socialistas, que veriam seu sistema diretamente ameaçado. Por esta razão, os países que integraram a simbólica Cortina de Ferro, mesmo que não fossem países formalmente integrados na URSS, se tornaram estados-satélites que recebiam diretivas de Moscou, exercendo uma soberania meramente simbólica.

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Dentre todos esses países, a Bulgária talvez tenha sido aquele com o grau de liberdade mais restrito de todos. Por ser uma nação muito próxima geograficamente da URSS, seu estado de "soberania limitada" era ainda mais limitado do que os demais, e, em várias ocasiões, se discutiu anexar o país formalmente ao conglomerado soviético, o que não acabou acontecendo. O fato da economia búlgara ser uma das mais frágeis do bloco socialista e da cultura ser predominantemente eslava, contribuíram ainda mais para com o fechamento do país. Se as estruturas política e econômica não possibilitavam a importação legal de produtos culturais e de massa do ocidente capitalista, a posição linguística do país também não favorecia uma troca que não fosse com os países culturalmente mais próximos, por sua vez também socialistas.

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Chega a ser muito difícil imaginar como um símbolo de origem ocidental tão forte como o rock poderia surgir e prosperar num ambiente como esse. De fato o rock não prosperou exatamente na Bulgária, por razões óbvias, mas houve tentativas isoladas de se fazer rock no país durante a era comunista que devem ser lembradas e louvadas, principalmente pela ousadia mesma daqueles jovens que tiveram coragem de romper, a seu modo e com a limitação que se espera de uma empreitada do gênero, com a homogeneização geral promovida pelo Estado socialista.

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Dentre as poucas bandas genuinamente beats que surgiram nos anos 60 na Bulgária, a Sreburnite Grivni (Pulseiras de Prata) merece ser lembrada. Fundada em 1962 pelo guitarrista Valentin Stefanov e pelo baixista Alexander Petrunov, encontraram sua forma definitiva em 1965, quando se juntaram a eles o segundo guitarrista, Roshan Vladovski, e o baterista Georges-Jan Banov. Tinham como referência maior os Beatles, Shadows e as bandas da british invasion, cujos discos eram vendidos no mercado negro búlgaro.

No final dos anos 60 se juntou ao grupo o vocalista George Minchev, que mais tarde se tornou uma das lendas do rock do país. Desta parceria, merece destaque a releitura da música tradicional búlgara Pustono Ludo I Mlado, feita com roupagem rock n’ roll.

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A banda lançou cerca de 10 singles pela gravadora Balkhanton, a única existente e permitida na Bulgária, além de ocupar a imagem de capa do único LP de musica beat lançado na Bulgária, a coletânea The Best of the Beat Groups of Sofia. Merece destaque também o cover da música Venus, da banda holandesa Shocking Blue, presente no disco.

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Outra banda que merece destaque é a Shtourtsite (Os Grilos), que também participaram do lendário álbum. Inicialmente estruturada em torno do vocalista Kiril Marichkov, que tocava baixo, piano e era a mente criativa do grupo, recebeu também os guitarristas Veselin Kysyov e Peter Gyuzelev e o percussionista Petar Manolov.

As autoridades do estado comunista búlgaro inicialmente haviam proibido a banda de se chamar Shtourtsite, pois o nome era uma tradução do inglês The Crickets, a banda de apoio de Buddy Holly que inspirou John Lennon a nomear os Beatles. Havendo uma referência direta à banda americana, que as autoridades consideravam pertencer a um movimento cultural degenerado e pequeno-burguês, proibiram que o grupo se chamasse assim. Foi proposto um concurso radiofônico para que o público escolhesse o nome da banda. Os integrantes então mobilizaram amigos para que ligassem anonimamente na estação e pedissem pelo nome Shtourtsite. No final das contas as autoridades cederam pois o nome venceu na escolha popular.

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Entre 1968 e 1969 a banda lançou 2 compactos duplos com 4 músicas autenticamente beats e muito bem arranjadas. Além destes lançamentos, participaram também da célebre e já citada coletânea The Best of the Beat Groups of Sofia, ocupando quase que por inteiro o Lado B do disco. Após este período, a banda parece ter dado uma pausa nas atividades discográficas, retornando em 1973, quando lança alguns outros singles de gênero mais marcadamente pop.

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Em 1976 ingressam na banda o tecladista Borslav Panov e o baterista Georgi Markov, que substituem Kysyov e Manolov, e é lançado enfim o álbum homônio de estreia da banda, com a arte gráfica da capa inspirada claramente no psicodelia sessentista — a dificuldade em acessar os discos ocidentais, que só podiam ser encontrados no mercado negro, refletiam nos lançamentos com influências tardias.

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Do ponto de vista musical o disco é primoroso. A banda, que iniciou beat e passou pelo pop, agora mostra fortes influências do rock progressivo, com uso farto de teclados sintetizadores, em alguns momentos até em chave jazzística, e instrumentos eruditos como o violino. Os vocais também são muito bem trabalhados e mostram clara influência dos Beach Boys.

Mantendo a o nível de qualidade musical, a banda lança o segundo disco em 1978, também homônio. Apesar de musicalmente menos progressivo, a banda ainda utiliza bastante os sintetizadores, agora com participações do tecladista Vladimir Totev. A parte menos emocionante fica por conta do trabalho percussivo do álbum, que não acompanha a força instrumental dos demais elementos da sonoridade do disco.

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No contexto setentista do rock búlgaro se sobressaem ainda a banda ФСБ (FSB). FSB é um acrônimo que indica Formation Studio Balkhanton, formada por músicos do estúdio oficial Balkhanton, que, como dito anteriormente, era o único existente no pais. Após participarem de gravações de outros grupos e artistas, esses músicos decidiram formar eles mesmos uma banda para produzir material autoral.

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Originalmente a banda era um power trio formado por Rumen Boyadzhiev (teclados), Konstantin Cekov (teclados) e Alexander Baharov (baixo). O grupo lançou diversos singles na metade dos anos 70 que se destacaram por apresentarem, junto de músicas autorais, releituras curiosas de canções do rock europeu da época, o que mostra que os componentes da banda tinham acesso, de certa forma privilegiado, a esses discos e artistas. O fato de trabalharem no único estúdio e na única gravadora permitida na Bulgária pode ter contribuído para isso, afinal, não era necessário buscar no mercado negro as obras que estavam sendo lançadas. Entre esses singles se destaca a musica Zemya, cover de Love is All do baixista do Deep Purple Roger Glover, Praznik e Detsko Predstavlenie, respectivamente covers de Impressioni di Settembre e è Festa, da banda de rock progressivo italiana Premiata Forneria Marconi.

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Em 1977 o FSB lança o seu álbum de estreia, o Non Stop. É considerado, junto com o álbum de estreia do Shtourtsite, um dos melhores discos de rock búlgaro dos anos 70. A sonoridade é extremamente progressiva e sinfônica, com a utilização, por parte do tecladista Boyadzhiev, de Moog, synth EMS, mellotron e um sequencer AKS.

As grandes influências do álbum, assim como dos primeiros compactos simples da banda, são as bandas de rock progressivo das cenas britânica e italiana. Aqui temos covers de Gentle Giant e outras autorais com evidente influência da escola melódica italiana. O sax tem presença fundamental na construção da sonoridade experimental do disco, e é desenvolvido de forma primorosa por Angel Veznev.

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Também o segundo disco da banda, o FSB II (1978), mesmo possuindo uma sonoridade diferente e mais próxima do pop rock, com a presença mais marcante do piano e de coro feminino, resulta um bom trabalho. Os discos sucessivos, a partir de The Globe (1980), possuem uma duração bem menor, sendo compostos por uma média de 5 ou 6 músicas apenas. Esses trabalhos foram marcados por serem mais assimiláveis, com a banda enveredando pela new wave em meados da década de 80, o que os tornou relativamente conhecidos também fora da Bulgária.

A importância que o FSB tem para a história do rock búlgaro foi reconhecida de certa forma em 1989, quando eles receberam com José Feliciano o Grammy Award pelo trabalho de orquestração e arranjos da música Cielito Lindo, um feito único entre as bandas búlgaras.

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Diana Express é outra das poucas bandas de rock atuantes nos anos 70 na Bulgária que merece ser devidamente lembrada. Formada por Mitko Shterev, lançou apenas dois álbuns na década: o homônio de 1974 e o Diana Express II em 1976. A banda excursionou em vários locais do leste europeu, fazendo muito sucesso nos países do bloco, onde conquistaram um público fiel.

Com forte influência da musicalidade do Deep Purple do início da década, principalmente do trabalho de Jon Lord nos teclados, Diana Express mostra bem o tipo de som que se propunha a fazer. Voltaram nos anos 80 com novos lançamentos e nova formação, mas sem o brilho que tinham na década anterior. Notável também é a colaboração que a banda fez com o ex-vocalista do Uriah Heep John Lawton em 2012, que resultou no excelente disco The Power of Mind.

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Semelhante é o percurso da banda Сигнал (Signal), que lançam o primeiro disco em 1979, o Eternal Crossroad, e o segundo logo em 1980, o Sailing with the Wind. Dotada de uma excelente instrumentação, a banda logo se sobressaiu por uma sonoridade um pouco mais pesada e menos progressiva, quase que antecipando o metal.

Signal foi também uma das poucas bandas búlgaras que conseguiu gravar em inglês, língua evitada a todo custo nas produções culturais da época devido a intermediação direta do estado comunista, que buscava coibir tanto quanto possível manifestações inspiradas diretamente na música dos países capitalistas ocidentais. Assim como a Diana Express, Signal foi particularmente beneficiada pelo completo rechaço que o governo comunista promovia com movimentos emergentes como a new wave e o punk, claramente contestatórios e desconstrutores do ponto de vista estético. Por propor uma sonoridade rock mas com vários elementos folclóricos e progressivos, esta cena da segunda metade dos anos 70 teve condições de se manter. Do ponto de vista estatal era preferível manter essas formações, que de qualquer forma eram gerenciáveis, a permitir a introdução em massa de movimentos e sonoridades que poderiam causar problemas e promover certa contestação.

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Uma banda que era parcialmente influenciada pela new wave foi a Тангра (Tangra). Autores de apenas dois álbuns, o Нашият град (Our town) (1982) e o Тангра II (Tangra II) (1986), assim como um single de 1976, a banda propunha uma espécie de rock n’ roll revival com forte influência da new wave, substancialmente não muito diferente do que estavam fazendo o The Clash e outras bandas inglesas naquela mesma época.

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Justamente pelo seu caráter mais irreverente e particularmente anticonformista, o grupo teve problemas com as autoridades, que, em determinado momento, impuseram que os membros da banda cortassem os cabelos. Os membros cortaram os cabelos e, como forma de protesto, foram se apresentar em um show de camisas brancas com mangas longas e gravatas e calças negras, o que foi interpretado pelas autoridades como sendo uma rememoração em tom de deboche da estética parafascista. Devido às constantes sabotagens e perseguições do governo, a banda viu-se obrigada a imigrar para a Noruega e continuar sua carreira no exterior. Apesar de sua irreverência oitentista, a banda também merece ser lembrada em seu período áureo do inicio dos anos 70, quando colaborou com o vocalista Alexander Petrounov em um dos momentos mais brilhantes do rock búlgaro, com o hino Ako Imash Vreme.

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Todas as bandas que vimos até agora, apesar de serem muito diferentes entre si, compartilhavam de um aspecto comum: não apareciam nunca em aspecto claramente transgressivo. Foi somente assim que lhes foi dada a chance de ter um contrato assinado pela gravadora do estado comunista, a já citada Balkhanton, que impunha regras extremamente rígidas.

De qualquer forma, a partir dos anos 80 a Bulgária conheceu uma limitada, mas muito interessante, cena underground, em sua maioria formada por bandas que faziam referência à new wave. Outras, em menor número, mas mesmo assim significativas, faziam uma referência mais direta ao punk. Inútil dizer que essas bandas não tiveram nenhum suporte e nem conseguiram contratos com a gravadora oficial, mas sobreviveram, a seu modo, nas restritas cenas locais por algum tempo.

Uma das bandas que conseguiu sobreviver e que chegou até os dias de hoje graças a um demotape semiclandestino que circulava no underground, foi a Novi Cvetya. Formado em 1979, o grupo teve uma grande vantagem na época: eram originários da pequena vila de Kyustenti, onde, devido a aproximação geográfica com a Iugoslávia, era possível captar as transmissões de rádio do país, que era mais desenvolvido e possuía um regime um pouco mais liberal se comparado com aquele búlgaro. Os membros da banda tiveram então a oportunidade de conhecer um pouco melhor o tipo de sonoridade que era apreciada no ocidente através das bandas da Iugoslávia, que tinha uma cena punk bem promissora, e repropô-la ao vivo nos porões escondidos onde conseguiam tocar.

Todavia, o punk era demais para ser aceito pelo governo filo-soviético da Bulgária. Em fevereiro de 1984, o vice-presidente do Conselho de Estado, Dzagharov, declarou que tinham sido identificadas tendência musicais que ofendiam os verdadeiros valores da música búlgara e que, portanto, deveriam ser extirpadas do país. Verificou-se então, em meados dos anos 80, uma verdadeira perseguição a pessoas que fossem identificadas esteticamente com punks e headbangers, e a polícia intervinha sempre que encontrava jovens vestidos de forma diferente do convencional. A repressão porém teve curta duração, já que em 1989 o regime caiu junto com toda a Cortina de Ferro.

Justamente em 1989 foi lançada a série de discos Bulgarian Rock, que apresentava os melhores nomes do rock do país junto com novas tendências. O terceiro volume é dedicado à banda Review, que nunca havia tido a oportunidade de lançar um disco oficialmente, mas era celebrada e muito conhecida no underground.

Este lançamento representou uma espécie de vitória dessas bandas, que haviam sido perseguidas e ocultadas durante tanto tempo, obrigadas a tocar escondidas em porões e clubes afastados, mas que agora tinham a oportunidade de serem lançadas oficialmente por uma gravadora e verem seu trabalho apresentado ao mundo.

Relembrar um pouco da história dessas bandas, que conseguiram deixar uma marca dentre tantas que se perderam nos lapsos do tempo, é relembrar como o rock, antes de ser um gênero musical, é uma atitude de conquista cultural. Entender, nem que seja brevemente, como essas bandas puderam existir num contexto tão hostil, é entender que um dos fatores que impulsionaram esses fenômenos musicais— completamente alheios à indústria cultural de massa — encontra eco na necessidade mais autêntica do ser humano: aquela de declarar sua própria independência.

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Sobre Giancarlo D'Anello

Giancarlo D'Anello é baixista desde os 14 anos de idade, produtor musical e é formado pela Universidade de São Paulo (USP). Além do envolvimento com a música desde sempre, é leitor voraz de literatura e jornalismo cultural. Escreve contos de horror e sobre os aspectos mais relegados do rock n' roll. Fã inveterado de boxe, Elvis Presley, Stephen King, cevada e Harley Davidson, não necessariamente nesta ordem. Atualmente gerencia a gravadora independente Central Park Records e lidera o projeto de stoner instrumental Giorgio La Rocca em Bologna (Itália).
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