Johnny Cash: o renascimento artístico pelas "American Recordings"
Por Claudinei José de Oliveira
Postado em 26 de dezembro de 2015
'American Recordings' é como são conhecidos os seis álbuns lançados por Johnny Cash, entre os anos de 1994 e 2010, pelo selo 'American', do conceituado produtor de rock, Rick Rubin.
Johnny Cash, o 'The Man In Black', como é, também, conhecido, se iniciou no mundo da música pela mesma porta que Elvis Presley, ou seja, a gravadora Sun Records, propriedade de Sam Phillips, na cidade de Menphis, a qual tinha como uma das principais características de seus fonogramas um soberbo minimalismo até hoje buscado, em vão, por muitos artistas. É só ouvir a gravação de 'Blue Moon', realizada por Elvis e será praticamente impossível não se perguntar: como alguém pode ir tão longe com tão pouco? Assim também são as primeiras gravações de Johnny Cash.
Porém, diferentemente do Rei que, rapidamente, saltou para o 'mainstream', o 'Homem De Preto' se tornou uma espécie de porta-voz dos párias do 'american way of life' com canções repletas de crônicas encharcadas de crime e castigo. Numa de suas primeiras canções ouvimos:
'(...) Minha mãe me disse para não brincar com armas de fogo
Mas atirei num homem em Reno, só para vê-lo morrer(...).'
É mais que sabida a forte presença da música 'country' norte-americana na gênese do rock'n'roll. Conforme a década de 1950 ficava para trás, Johnny Cash se tornava cada vez mais um artista de sonoridade 'country', porém, até sua morte, sua alma foi rock'n'roll. Foi o artista que gravou em um presídio de segurança máxima a pedido dos próprios presidiários, muito antes disso se tornar uma espécie de grife do rock.
Porém, enquanto passavam-se os anos, o mundo foi se tornando fresco demais para acompanhar as atribulações da alma do velho Johnny e ele converteu-se em uma espécie de peça viva de museu. Um dos motivos, levantados por especialistas é que gravadoras e produtores musicais tentavam domar o indomável, ou lapidar pedra bruta, esquecendo a lição do velho Sam: o som de Johnny Cash não necessitava de adereços. Era para ser apreciado em sua essência, em seu estado bruto.
Isso até o começo dos anos 1990, quando seu caminho se cruza com o de Rick Rubin. É o próprio Johnny que nos conta:
'Achei tudo muito improvável. Ele [Rick Rubin] era um hippie consumado, careca na parte de cima da cabeça mas com cabelos até os ombros, uma barba que parecia nunca ter sido aparada (não tinha) e roupas que deixariam um bebum orgulhoso. Nas prioridades de seu selo estavam rap, metal e hard rock: os Red Hot Chili Peppers, os Beastie Boys - música jovem e urbana. Eu já estava cansado de fazer testes com produtores e não estava interessado em ser remodelado para algum número de rock. Embora o homem conhecesse meu trabalho, (...) falava um pouco como Sam Phillips -, não o levei a sério. Ele logo perderia o interesse (...).
'Eu estava errado. Ele voltou para me ver (...). Comecei a levá-lo a sério.
'Perguntei como ele faria para me gravar. O que faria de diferente de todo mundo que já tinha tentado?
'Não vou fazer nada. Você vai fazer. Você vai vir até a minha casa e sentar na sala, pegar um violão e começar a cantar. Em algum momento, se quiser que eu faça isso, vamos ligar um gravador e você vai tocar tudo o que gostaria de gravar, mais as suas canções, mais outras canções que posso sugerir e que você ache que vá fazer um bom trabalho com elas. Você vai cantar todas as músicas que ama e em algum momento vamos encontrar uma canção que nos sinalize que estamos indo no caminho certo. Não estou familiarizado com a música que você ama, mas quero ouvir tudo.' (*)
E assim foi. De 1994 até sua morte em 2003 foram lançados 4 álbuns, todos produzidos por Rubin, sendo os chamados vols. III e IV, com a colaboração do filho de Johnny Cash, John Carter Cash na produção. Postumamente, foram lançados mais dois volumes.
O primeiro volume, o único chamado 'American Recordings', foi de, fato, como Rick Rubin havia proposto: apenas Johnny Cash e seu violão relendo composições de outros artistas misturadas a algumas suas, cujo fio condutor seria a expiação dos pecados ante a inevitabilidade da morte.
Abrindo o álbum, 'Delia's Gone', uma canção de Cash lançada originalmente em 1962, é interpretada de uma maneira que nos pega no contrapé. Originalmente uma tragicomédia sobre um assassino passional assombrado, em sua cela, pelo fantasma da mulher que matara ganha ares de uma soturnez incomensurável, apesar dos versos 'ela tinha a maldade que me faz querer pegar minha submetralhadora.' Somente a gravidade da interpretação de Johnny nos faz ouvir acima do politicamente correto que se instaurou na mentalidade ocidental, desde os anos 1950, e que seria louvável, não soubéssemos ele (o politicamente correto) se ater apenas ao palavrório hipócrita. Na julgamento da mentalidade atual, a canção é machista, assim como a mesma mentalidade ainda é (até mais) capaz de atos machistas. Mas a arte sublime do velho Johnny paira imaculada acima dessas pequenas mesquinharias.
No volume IV, chamado 'The Man Comes Around', o mais louvado pelos especialistas, há uma versão para 'In My Life', do Beatles que nos faz perguntar se o Lennon de vinte e poucos anos não teria composto a canção apenas para que Johnny a gravasse dali a uns trinta anos.
Nick Lowe, Glenn Danzig, Tom Waits, Nine Inch Nails, U2, Depeche Mode, Leonard Cohen, Nick Cave, Simon & Garfunkel, Sting, Eagles, Beck, Tom Petty, Bruce Springsteen e Sheryl Crow, entre muitos outros, apesar da disparidade nas características de suas obras são interpretados por Johnny Cash com tamanha intensidade que fica-nos a impressão de, ante deles terem composto as canções para Cash, compuseram canções de Johnny Cash. O 'Homem De Preto' nos deixou pra trás da maneira mais digna possível, fechando com chave de ouro a obra de uma vida. Uma dádiva reservada somente aos grandes homens.
(*) Trecho extraído do livro:
Cash, John
Cash: a autobiografia / John Cash, Patrick Carr; tradução de Angélica Freitas. - São Paulo: LeYa, 2013. pp. 212-13.
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