Rockterapia: letras e seus efeitos psicológicos
Por Flávio Dagli
Postado em 22 de março de 2013
As palavras reconfortantes de amigo podem estar ai à sua volta e você nem se deu conta disso ainda. Prestar atenção nas letras de rock é um desafio enorme para os pobres mortais que não têm o idioma de John Lennon como língua materna. Sem entender "de ouvido" o que os ídolos cantam, acaba-se dependendo de uma caça às letras na internet – muitas vezes acompanhadas de traduções Googlescas que estraçalham belas composições – para descobrir exatamente o que diabos eles estão dizendo.
Uma pena. Porque ali, em meio àquelas melodias que encantam a tantos, há um material rico em significados, histórias de vida de quem já passou por poucas e boas para chegar até o auge e que agora quer compartilhar suas experiências com os fãs. Muito melhor do que a chatice de ler livros de autoajuda, em que alguns canastrões arrancam dinheiro dos leitores dizendo com palavras pomposas o que todos estão cansados de saber, as letras de rock trazem a oportunidade de ouvir da boca de ídolos da música as palavras de conforto, incentivo ou mesmo de conformismo que se espera de um amigo em certos momentos de aperto. É quase como ter Jim Morrison dando conselhos quando o vizinho de infância do prédio não pode atender o telefone para ouvir seus desabafos.
E as boas ideias podem vir de onde menos se imagina.
Um bom exemplo é Bon Scott, que Deus o tenha. O primeiro vocalista do AC/DC era muito mais famoso por sua voz estridente e suas bebedeiras do que por suas letras. Pois por trás daquele jeans velhos e daquela boca cheia de dentes podres ("I got holes in my shoes, I got holes in my teeth...") havia um mestre em tratar situações difíceis com bom humor. Com seu papo de boteco, ele detona as garotas que lhe deram um pé na bunda usando um repertório de frases irônicas e divertidas: "sometimes I think this woman is kinda hot. Sometimes I think this woman is sometimes not". Em momentos mais sérios, esbanja criatividade em frases dignas de um terapeuta ("take a chance, while you still got the choice") ou faz autocríticas bastante severas, quase tristes, como na melancólica "Ride On".
Mas não é só de mulheres e problemas pessoais que os rockstars gostam de tratar. Na verdade, a diversidade de assuntos nas letras de rock é tão grande que elas se aplicam a praticamente qualquer situação da vida.
A turma do hard rock/heavy metal oitentista, por exemplo, é mestre em letras que abordam os problemas enfrentados na adolescência, coisas como sentimento de isolamento, necessidade de autoafirmação e medo de responsabilidades. Um ótimo exemplo é "I am (I’m me)", do Twisted Sister: "how I tried to please you, live the way you said. Do the things that you do like the living dead. Then the truth it hit me. Got me off my knees. It's my life I'm living, I'll live as I please". Versos assim, para o adolescente, soam como os Evangelhos para um recém-convertido.
O pessoal classic rock, entre as décadas de 1960 e 1970, tem um repertório rico em assuntos que vão desde protestos sociais a viagem com drogas. Os punks são os anti senso comum, os grunges voltam à temática de deslocamento adolescente enquanto a turma do heavy metal parece fingir viver em eras passadas, falando de guerras e heróis já mortos e enterrados desde muito antes que qualquer ta-ta-ta-ta-ta-ta-ta-taravô do Elvis tivesse nascido. E assim a coisa anda. Em mãos, os fãs têm material intelectual para seus protestos sociais, autocríticas e até justificativas para tomar certas decisões.
Alguns fãs não conhecem a letra toda de suas canções favoritas, mesmo assim não se deixam intimidar. Assim como as citações de grandes autores, trechos de músicas podem ser usados como mensagem motivacional.
O clássico "Freebird" do Lynyrd Skynyrd, por exemplo, contém passagens poderosas. Ao se dividir o início meloso da canção em dois trechos separados: "if I leave you tomorrow, would you still rememeber me?" e "for I must be traveling on now, ‘cause there’s too many places I’ve got to see", encontra-se, respectivamente, uma bela trilha sonora para um amor que chega ao fim e uma desculpa para chutar o balde e viajar/mudar de vida. O refrão "and this bird you cannot change" é praticamente um hino à autoafirmação, ótima para usar quando a namorada insiste que seu amor melhore o visual ou pare de tomar cerveja.
Além disso, as letras são de interpretação livre por parte do ouvinte. Ou seja, ele pode usá-las como bem entender. "It’s Been the Worst Day Since Yesterday", do Flogging Molly, por exemplo é uma letra que fala sobre... ressaca. Nada mais nada menos do que ressaca. Mas, com jeitinho, versos como "fallin' down to you, sweet ground, where the flowers they bloom it's there I'll be found" se transformam em uma ode ao fundo do poço. É uma mera questão de ponto de vista.
Inclusive, a possibilidade de interpretar livremente os versos é uma das dádivas dessa "rockterapia". Até quem não domina o idioma de Pete Towonshend pode aproveitar as letras para suas vidas. Para isso, é necessário pôr o jeitinho brasileiro em prática e usar os "misunderstandings" a seu favor.
O autor agora pede licença para contar um caso pessoal para facilitar o entendimento por parte do leitor. Em "Green is the Colour", do Pink Floyd, Roger Waters escreve que "green is the colour of her kind". Em uma "confusion" idiomática, o autor pensava que ele dizia "green is the colour of her eyes". Fascinado por olhos verdes, o redator destas linhas ignorava totalmente os outros versos da canção e usava constantemente apenas esse trecho como trilha sonora mental todas as vezes que se interessava por garotas com um belo par de esmeraldas encravado no rosto. Já chegou, inclusive, ao ponto de cantarolar essa frase a uma "ficante". Ele até se emocionava ao pensar que sua tara contava com algum tipo de aprovação por parte de David Gilmour e companhia. "Que burro! Dá zero pra ele".
Errado ou não, era divertido.
"Misunderstandings" a parte, vale lembrar que, ao manter os ouvidos atentos, o fã de rock pode encontrar em seus CDs (hoje em dia em seus MP3s) palavras muitas vezes mais reconfortantes que aqueles chavões pronunciados pelos amigos sentados a uma mesa de bar: "Esquece, aquela menina não valia nada mesmo", "parte pra outra", "você vai superar"... Por que não ouvir o "brother" Bon Scott: "gimme a bullet to bite on and I will make believe it’s you"? O monstro sagrado do rock and roll também sofre com coisas mundanas. Por que não dar ouvidos a ele?
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