Lobão: Assim sangra a mata
Por Fotoboard Tramparia
Fonte: Lobão - Autobiografia
Postado em 28 de janeiro de 2018
LOBÃO foi convidado a participar de um programa de televisão com gravação em um garimpo na Amazônia. O objetivo dessa matéria era destacar que apenas naquele garimpo, dentre vários outros garimpos na região amazônica, não possuía mercúrio no processo de extração dos minérios.
Faixa 11: Profunda e Deslumbrante Como o Sol | Álbum: O Rigor e a Misericórdia | LOBÃO | Gravadora: Tratore
O grande Lobo, que não era nem um paspalho, logo percebeu do que se tratava.
Descontente em saber que foi enganado, o astro do rock nacional desistiu de fazer parte daquela maracutaia.
O trecho a seguir conta o lado positivo da visita do Lobo ao pulmão da Terra.
Essa passagem foi retirada do livro LOBÃO - Em Busca do Rigor e da Misericórdia.
A missão do programa era fazer propaganda enganosa segundo a qual o tal garimpo se diferenciava de todos os demais por não usar mercúrio no processo de extração.
E é claro que usava, como descobri, impedido, no entanto, de divulgar a verdade na "reportagem".
Tampouco pude tratar da situação devastadora das terras periféricas do garimpo, que sofriam um terrível processo de desmatamento.
Eram vetos intrigantes, porque sobre os dois fatos jornalísticos mais relevantes de nossa excursão.
Esses episódios pouco enobrecedores, mais outros tantos da mesma natureza, precipitaram minha saída do tal programinha.
Mas essa miséria moral não mataria a capacidade de a Amazônia me alegrar e inspirar.
Assim, quando me pus a compor febrilmente para o novo disco, em meados do ano passado, me veio à memória um teminha folk/fluvial que cantarolava na barca que me levava pelo Rio Madeira.
Um teminha que, na verdade, compusera por ocasião de meu Acústico MTV, lá pelos idos de 2006, e para o qual nunca elaborara uma letra.
Comecei assobiando uma melodia que lembrava uma música do Burt Bacharach, tipo "The world needs love", num compasso de três por quatro (típico de valsas) e com uma levada bem Neil Young no violão. O teminha saiu inteiro!
E não foi à toa que me voltou enquanto navegava Amazônia adentro, contemplativo, bucólico e fluvial. Aquilo me emocionava. E o teminha era a trilha sonora que se impunha naturalmente.
Embriagado por aquela nostalgia, peguei meu violão folk, um lindo Taylor, e me pus a tocar o tema, ao mesmo tempo provocando minha memória e invocando as sensações que me marcaram naquela profunda experiência amazônica: estrelas cravejantes num céu de negro profundo e fundido com a terra no breu da selva, a saudade de minha mulher querida de olhos de farol, olhos que se corporificavam nas estrelas lá em cima e que me apareciam quando deitava na rede, já em outro céu, uma lua que surgia entre as nuvens.
Todas aquelas emoções díspares de desconforto, hospitalidade, calor de dia, frio de noite, me invadiam a alma.
O carinho dos habitantes do garimpo, o deslumbramento, a saudade, o pertencimento, a tristeza, a esperança, a devastação da floresta, o vapor do mercúrio naquelas imensas piscinas prateadas que, incrustadas naquele terreno avermelhado, vivo, de carne esfolada recém-deflorada, mais pareciam a paisagem de outro planeta.
Tantos entreveros sombrios e, ainda assim, mais uma canção.
Mais uma que, após ultrapassar sentimentos hostis, nascia bela e serena, com uma recompensa, como se minha alma quisesse me dizer: "Tudo pode virar beleza." Eu a batizei de "Assim sangra a mata":
Canto em silêncio e a memória me traz
Seus olhos em milhões de estrelas
A lua tropeça nas nuvens e o amor
Me invade em plena floresta
Ah! O vento que sopra
Ah! Me traz‚ um perfume
Ah! E a noite transborda
Com a minha alegria estampada no céu!
No céu!
Nada se vê além de um negro profundo
No coração da floresta que a noite engoliu
Às vezes a noite é um insight da morte
Enquanto a aurora‚ a vida que há de vir
No embalo da barca ao sabor da maré
O negro e o vermelho das chamas
Nas margens igreja em igarapés
Fiéis a clamar esperança
Ah! E assim sangra a mata
Ah! O vapor do mercúrio
Ah! É o preço do ouro
Sangue e fumaça‚ beleza cruel
Cruel
Minha alma vagueia no embalo das águas
Em meio ao fascínio de furioso esplendor
Mesclando o luto do abandono
Com a alegria intensa de ter meu amor
E encher meu coração de esperança
Com as gotas de sonho que o vento me traz
E crer na chuva‚ como benditas lágrimas
E que a boa vontade inunde essa terra de luz
Essa matéria faz parte da categoria Trecharias BioRockers no Portalblog Misterial.
Faixa 7: Dilacerar | Álbum: O Rigor e a Misericórdia | LOBÃO | Gravadora: Tratore
Faixa 14: O Rigor e a Misericórdia | Álbum: O Rigor e a Misericórdia (2016) | LOBÃO | Gravadora: Tratore
Faixa 4: Assim Sangra a Mata | O Rigor e a Misericórdia (2016) | LOBÃO | Gravadora: Tratore
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