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Iron Maiden: "Sign of the Cross", uma viagem pessoal

Por Rodrigo Contrera
Postado em 06 de abril de 2017

Salve, galera. Aqui estou de volta, para fazê-los viajar em imagens e sons agora sobre uma das músicas mais importantes do Iron em minha vida, Sign of the Cross. Deixo claro que não ligarei para os comentários que desmereçam meu trabalho, ok.

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Por que este artigo

Eu confesso que não ia escrever nada. Ia apenas postar algumas imagens que cavouquei na internet sobre esta faixa, que abre o famigerado e a meu ver injustiçado X-Factor (não só eu sou dessa opinião). Imagens sobre o álbum, e sobre viagens que os fãs do Maiden fazem a partir dessa sua paixão. Mas calhou de se juntarem aspectos pessoais e musicais suficientes nesta minha fase e resolvi falar.

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Falar algo que é bem meu, mas que tem tudo a ver com a faixa e com o que ela significa. O sinal da Cruz. Aos interessados na faixa em si, não oferecerei tanto assim (embora vá me estender bastante sobre a letra ao fim do artigo). Passarei, claro, imagens que alguns não devem conhecer, vídeos de shows que já deixaram sua marca em muitos, e um vídeo que encontrei e que passa bastante bem a emoção que eu tenho ao ouvir a música. Mas não creio que vá acrescentar com muita informação a mais. Porque este artigo é quase todo ele um excurso pessoal. Porque o sinal da Cruz significa alguma coisa, não é mesmo? E significa muito na minha vida. Muito mesmo. Especialmente agora.

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Mas tenho antes que avisá-los. Eu já havia escrito algo deste artigo quando um aspecto me ocorreu. O tema, o sinal da cruz, tem sido algo que realmente tem mudado toda minha vida. Isso não lhes digo apenas sob aspecto pessoal, mas em termos de pesquisa sobre o assunto, leitura dos Evangelhos, leitura de livros explicativos, tanto dos Evangelhos como de outros livros da Bíblia (especialmente as epístolas de Paulo), reflexão pessoal sobre o livro do Umberto Eco, reflexão pessoal sobre o significado da Cruz em minha vida e na história, etc. Em suma, o sinal da Cruz, Sign of the Cross, cresceu até tal ponto na minha vida que não poderia vir a ser apenas um material a mais a colocar como comentário de uma música (embora venha a ser isso). Pois nos últimos meses devo ter escrito mais de 100 (sim, isso mesmo, cem) artigos sobre religião, a Cruz, Jesus e a questão da conversão. Isso sem contar que analisei algumas das cruzes mais famosas da história da arte clássica (escrevo também sobre esse assunto), frequentei uma penca de missas (sempre me soltando mais e mais) e passei por provações que um dia consistirão em minha biografia (se é que alguém possa se bemfazer com ela). Pois eu lhes digo, pura e simplesmente: eu já me considerava morto. Não me sentia vivo, como todos. Sentia que a qualquer hora que fosse o meu fim, tudo bem, que eu não iria realmente me importar. Ainda - preciso admitir - me sinto um pouco assim.

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Daí que este post é, contrariamente àquilo que muitos poderão achar, um post de comentário musical, de expiação pessoal, de excurso memorialístico, mas também, em alguma instância, um post de conversão. Sim, um post que se propõe mostrar como se deu uma conversão e em que medida ela pode promover uma outra - a do leitor. Daí sua extensão, seu caráter e sua remissão a aspectos que, ao menos diretamente, poderiam não querer dizer respeito à música em si (embora em muitos momentos digam respeito). Nisso, então, sou desde já quase um pregador (novato e não sei se com poucos recursos). Nem sei se tenho qualidades suficientes para isso, claro (estava lendo um livro do Myer Pearlman sobre as epístolas e creio realmente que esteja bastante longe disso). Mas também eu sempre soube que os santos também nunca acharam que estavam prontos, ou que tinham suficientes qualidades (não que eu necessariamente queira ser santo). Ou seja, estamos na mesma. Mas prometo-lhes que não virei com coisa chata, tipo mensagens escondidas na garrafa, menção indevida de trechos da Bíblia (só a cito literalmente uma vez), etc. Mas de vez em quando explanarei algo de minhas leituras, com o intuito de esclarecer o contexto - num contexto ainda maior e melhor.

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No geral, porém, simplesmente NARRAREI pura e corriqueiramente a questão do sinal da Cruz em minha vida toda por meio da música, dessa música em particular. Fiz e ainda faço uma boa pesquisa iconográfica, então nem em questão de fotos, ilustrações ou vídeos vocês ficarão mal servidos (inclusive as fotos relativas à minha vida eu escolhi bastante bem, tentando passar a impressão que elas expressam sobre momentos e aspectos dela, de minha vida). Pretendo também com que este seja o meu primeiro post perfeito para entrar em livro. Então não estranhem a extensão. Foi feito para estourar a boca do balão. Literalmente. Mas vamos lá.

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Quando o CD foi lançado

Quando X-Factor foi lançado, em 1995, eu vivia uma vida louca. Ainda vivia na casa de meus pais, no Sumarezinho, ou Pompeia, em São Paulo, e estava começando a entrar em briga com o mundo todo. Fazia traduções para uma editora católica (a Paulinas), mas bastante a contragosto. Traduzi mais de 21 livros para eles. Ocorre que aqueles temas me davam no saco. Era cristianismo demais para meu gosto, sendo que eu não gostava (ou não concordava) muito com a ênfase que a editora dava para a religião. Aquilo, em suma, me incomodava. Eu já meio que me esquecia como conseguira aquela oportunidade - mandando currículos por fax de correio -, eu me esquecia de como sofrera, assim como me acostumara com uma vida mais ou menos tranquila, repleta de excessos (que irei contar).

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Note-se, a Paulinas era a braço editorial da Igreja que mais tinha a ver com a Teologia da Libertação, então comentava muito sobre Terceiro Mundo, Feminismo, Opressão e leituras aparente ou supostamente libertadoras da religião, e eu era um sujeito mais ligado a uma vertente liberal para entender o Brasil, o mundo, a Filosofia e as Ciências Políticas. Então, traduzir aqueles livros me questionava, me irritava e às vezes realmente me tirava do sério. Mas o Brasil enfrentava mais uma recessão e eu só tinha isso para viver. Os livros que eu traduzia tinham todos os formatos e extensões possíveis. Eram desde livros infantis (Aydin), relacionados a questões cotidianas (como casamento, relações entre casais), comunicação (e teologia), economia, etc. Antes, eu já havia feito traduções para outras editoras, mas elas descontinuaram os trabalhos. E com a Paulinas eu me sustentava (e até bastante bem).

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Por outro lado, eu frequentava puteiros na zona Sul e Centro de São Paulo, assim como casas de shows (eu não tinha muitos amigos, e os meus mais próximos haviam viajado para o exterior, para não mais voltarem) e não tinha um entrosamento digamos muito "adequado" com o mundo. Sentia-me deslocado de todos os lugares, e meu pai ainda estava sofrendo sua doença (psicose maníaco-depressiva ou bipolaridade) enquanto nós tentávamos lidar com a situação (familiar e econômica, bastante atabalhoada - embora eu mal contribuísse, porque me sentia desgostoso de todo o mundo e de todas as pessoas, quase sem exceção). Sobre a frequência nos puteiros, cumpre dizer que eu perdi a vingindade com uma daquelas mulheres da noite, que estava afastado de minha turma inicial da primeira faculdade (Jornalismo), que andava brigado com o mundo todo, fugindo dele com minhas motos, que fazia o curso mas não me dava bem com o pessoal da Filosofia (talvez pela ênfase esquerdista, em sua maioria, da faculdade) e que eu queria achar um amor, mas não via outra forma que não fosse saindo pelas noites em busca de sexo.

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Meus familiares (mãe e dois irmãos) passavam as noites discutindo com meu pai, que andava em bebedeiras e problemas com sua psicose, então eu também saía para os puteiros para fugir de casa, para não ver o que eu não queria ver (brigas) e para talvez arranjar alguns "amigos" (normalmente comerciantes que ficavam em lojas abertas durante a madrugada). Eu tive duas motos, e saía com elas para a região da Paulista e do centro de São Paulo. Por vezes, corria com elas à toda nas avenidas que ficavam vazias, fazendo um barulho infernal (só tive motos de dois tempos, uma RD 135 preta, que me roubaram, e uma DT 200, que consegui vender). Corria especialmente na região Oeste e na Paulista e Jabaquara, e uma vez fui ao litoral de uma vez só, chovendo, correndo o maior risco, só para ver como era. Eu era um sujeito bastante solitário. Mas voltando ao tema do artigo.

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A questão das traduções batia profundamente em mim (apesar das desavenças aparentes ou reais) porque a Cruz sempre fora importante em minha vida. Note-se, eu havia crescido num lar católico geralmente não praticante. Minha mãe havia nos aproximado da Bíblia sendo Testemunha de Jeová (em uma de suas fases). Por sua vez, eu havia sido ensinado lendo cartilhas católicas que ainda tenho (sendo ensinado sobre isso no Chile - viemos em 1976). As traduções importavam, sim, porque eu considerava, apesar dos pesares, que a Bíblia falava uma verdade que deveria ser importante em minha vida. Por vezes, eu ia à livraria da Paulinas na estação Ana Rosa. Ficava folheando aqueles livros e sentia que algo queriam me dizer. Por outro lado, eu sempre gostara da simbologia, mas não entendia nada dela. Achava, de minha forma tosca, simples e intimamente que a Cruz era algo a ser respeitado. Mas havia ainda outro motivo.

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Durante a década de 90, um sujeito, estudante de Matemática na USP, havia me conhecido e começado a falar sobre a Opus Dei para mim. A Opus Dei, para quem não sabe, faz parte do braço conservador da Igreja Católica. É uma instituição leiga que aproxima os leigos da Igreja e que lhes passa orientações que muitos consideram ultrapassadas (como por exemplo evitar a masturbação), ou que passam a ideia de uma espécie de lavagem cerebral (como muitos ainda consideram). Eu não sabia por que o sujeito - que depois veio a lançar um livro falando mal da instituição - insistia em tentar me levar àquela instituição. Mas ele insistia, e eu me deixava levar por sua amizade, ou pelo seu interesse. Eu ia àquelas reuniões, mas não sabia sinceramente o que achar. Sentia que precisava de alguma forma da religião, pelo menos.

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Eu passei então a ir, apenas como frequentador leigo, a casas em que o pessoal conversava sobre religião. Passei a criar vínculo com aquele pessoal, embora não fosse um vínculo muito forte ou estável. Passei a conhecer muitos caras, aparentemente legais, e até fui num retiro com o pessoal, no interior de São Paulo. Nesse retiro, caçamos rãs, nadamos e ficamos ouvindo sobre religião. Embora eu não concordasse por instantes com a forma como aquilo era passado, eu não falava nada. Talvez porque eu sempre tivesse sido um sujeito macambúzio, respeitador, obediente, não sei bem. Sei apenas que o sujeito me ensinou a rezar o terço, que eu conversei com padres diversos, que uma vez eu me confessei, mas que também senti que aquilo - talvez tivesse sido o jeito do padre - não era para mim. Daí que um belo dia eu peguei minha moto e sumi. Nunca mais frequentei, nunca mais fui, e pronto. Isso foi mais ou menos no começo da segunda metade da década de 90.

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Pois é nesse momento que o Iron me veio com Sign of the Cross. Bom, eu já havia lido O Nome da Rosa, livro a partir do qual Steve se baseou para escrever a música.

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O livro em questão, cabe notar, fazia parte da lista de livros que meus antigos professores do Jornalismo da USP indicavam para que lêssemos para melhorarmos a forma de escrita. Eu ainda tenho a versão que li, bem baratinha, que vendia nas bancas. O livro, no caso (que depois virou filme, com o Sean Connery), narra as desventuras de um monge recém-aceito num mosteiro, durante a Idade Média, no qual ocorrem assassinatos misteriosos e em que ele virá a descobrir o amor carnal, com uma mulher, uma garota, no caso. Isso, claro, na trama mais simplória, focada na ação. Há muitos que vêem outras camadas de leitura, e muitos que consideram isso a grande graça do livro (pode ser). Mas eu não via nada disso. Ou não conseguia ver.

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O papel principal do filme O Nome da Rosa é do Kevin Slater jovemzinho, e eu assisti ao filme no cinema, mais ou menos naquela época. O filme me agradou, mas não me fez a cabeça, não. Eu achei um bom filme, apenas isso. Ocorre que eu estava às voltas com o cinema da época, até porque imaginava que eu talvez tivesse futuro como escritor ou roteirista, também. No caso, o Steve Harris utiliza o livro mais como uma fonte de inspiração para a música, não entrando na trama nem nada (ao menos aparentemente). E, como todos sabemos, o Steve passava por maus bocados na época (a morte do seu pai, a separação de sua esposa).

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Em suma, tanto o Steve quando eu passávamos por desventuras de fé, enquanto religião, e enquanto vida. A música nos conectou. Eu me lembro: a música fez todo o sentido para mim naquela época. E mais: eu a "via" de forma especial. Eu começava a pensar os textos que eu cometia de forma visual, enquanto roteiros de filmes, e eu imaginava essa música de uma forma determinada, que aos poucos eu tentarei explicar para vocês. Eu ouvia Sign of the Cross, me deixava levar pela música, e chorava muito, muito mesmo. Não sei bem por que eu chorava. Mas chorava demais. Eu quase entrava em catarse, realmente. Ainda hoje sinto um pouco disso.

Análise filosófica acadêmica sobre o filme:

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No meu dia a dia, eu já fazia Filosofia, então sabia algo da Filosofia da Idade Média, em leituras e aulas dadas na USP com o professor Estêvão. Mas, antes de entrar na ponte que a Filosofia com a minha crença, ou nos problemas entre elas, eu preciso comentar por que comecei a fazer Filosofia. Na época, eu entendia estudo como algo que realmente fornecesse conteúdo. E, após terminar o Jornalismo, eu não me sentia completo. Sentia que não sabia nada sobre história, sobre filosofia, sobre política, sobre nada. Eu estava certo nisso. O curso era muito ruim, repleto de generalidades sem eira nem beira, embora também de algumas formas de compreender o fenômeno com maior profundidade, sendo que meu jeito obediente de ser me impedia de questioná-lo, e no fim das contas eu agora saía formado sem saber nada sobre nada. Daí que eu sentia que precisava estudar mais.

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Eu tentei passar naquela época em Economia, na Fuvest, mas apesar de minha arrogância (ou talvez por causa mesmo dela), eu não passei. Por sua vez, eu estava pretendendo fazer outro curso, mas não sabia qual. Na época, cumpre notar, não era muito comum fazer vários cursos de graduação. Daí que eu decidi fazer Filosofia. Era um curso difícil, todos diziam isso, e era fácil de passar na Fuvest. Então, eu resolvi fazer Filosofia para me formar e para me informar. A Filosofia, especialmente na FFLCH, é bem conceituada, e envolve trabalhar com várias línguas, professores bastante gabaritados, e tudo mais. Ou seja, ali eu iria aprender.

Na Filosofia da USP, a Idade Média é abordada em termos históricos e filosóficos, pela leitura de vários dos seus expoentes. No caso, a religião é abordada por meio dos embates (disputatio) entre autores daquela época no que diz respeito a temas permanentes, como o Ser, Deus e tal. Ou seja, Deus em si não é abordado, ao menos no curso, sob um ponto de vista religioso, mas filosófico. E o que se falava então, na época? Que a religião deveria estar subsumida a argumentos racionais, ou seja, que não deveríamos considerar, ao menos racionalmente, a religião enquanto discurso de fé a ser levado intelectualmente a sério. Ou seja, o que se falava sobre religião e Filosofia não me aproximava de mim, mas me posicionava em relação à razão. Ou seja, naquela época, o cristianismo da Idade Média (principalmente), abordado dessa forma, não me era de todo estranho, e sob aqueles pontos de vista eu aos poucos fui escolhendo meus heróis naquela galera fechada: eram Abelardo e Guilherme de Ockham, não por acaso dois sujeitos de elevada inteligência e bastante duros ao julgarem a filosofia daquele tempo.

Ockham, note-se, é o detentor da chamada "navalha de Ockham", um critério racional absolutamente estrito (contrário ao chamado Nominalismo) que ele não abandonou e que lhe deu a reputação como pensador rigoroso. No fim das contas, o sujeito da Opus Dei tentava me aproximar de Deus, a família me distanciava dela e de mim mesmo, eu estava cindido em termos amorosos (não sabia o que era amizade, amor e sexo), e a Filosofia me apresentava coisas que me confundiam ainda mais, ao menos no que diz respeito à relação entre Deus e mim mesmo. Eu começava a não acreditar, a desacreditar, da vida e de mim mesmo. Nessa época, notem, é que surgiu Sign of the Cross. Uma música que para mim servia mais como uma forma de entrar em catarse, tentando me reaproximar de mim e do mundo. Mas eu me sentia cada vez mais cindido. Notem que hoje sou esquizofrênico paranoico, tomando remédio e tudo mais.

Desenlaces pessoais

Eu já comentei que houve um momento em que eu rompi com a Opus Dei. Ok. Mas houve outras situações naquela época, pelas quais passei, que foram extremamente fortes para mim e que transtornaram-me a tal ponto que posso lhes dizer que por causa delas eu praticamente me perdi. Falei do meu pai, psicótico, que não conseguia lidar bem com a bebida. Pois bem. Sua trajetória envolveu furtos que ele fazia em casa, para conseguir dinheiro para suas coisas, brigas intermináveis, vezes em que chegava bêbado em casa e uma em especial em que ele foi encontrado por mim, na garagem, machucado por uma queda ou por alguma briga, ocasião em que o levei para o Pronto Socorro, mesmo com ele me xingando o trajeto todo (depois minha mãe me dizia que eu é que havia batido nele).

Houve caso em que ele ameaçou-nos, houve caso em que ele, numa fase depressiva, não tomava banho e dizia que o perseguiam, houve de tudo. Seja como for, eu fui me afastando da família aos poucos, sentindo que estava enlouquecendo com tudo aquilo e perdendo a esperança de que aquilo pudesse se resolver bem. Pois um dia o meu pai teve um ataque fulminante de asma e veio a falecer. Nessa noite, eu quis que ele falecesse (foi a primeira vez que desejei a morte de alguém), e ele faleceu mesmo (claro que eu passei a me culpar disso). Lembro-me bem daquele momento. Nós, com o cadáver do meu pai, olhando para ele, e eu olhando meus irmãos e minha mãe para ver se eu enxergava tristeza naquilo tudo. Mas não. Não havia tristeza. Havia alívio (talvez houvesse alívio também em mim).

Seja como for, fiquei chocado. Lamentei profundamente tudo aquilo e assumi para mim uma série de conclusões erradas sobre o ser humano (hoje sei que haviam sido erradas) que deturparam minha forma de ver o mundo. Eu fui aos poucos afastando-me da ideia de amor, de família, de solução consensual para problemas graves. Fui também me afastando da ideia de Deus, da própria opção de vida com ênfase religiosa, de tudo o que dizia respeito a algo bom que os seres humanos pudessem me proporcionar. Fui me tornando um ser desencantado, das pessoas, do amor, dos relacionamentos, da família, de ter uma família, e tudo mais.

Trilha de O Nome da Rosa - um bom clima para aquela época:

Nessa época, eu ouvia rock, mas menos do que antes. Na verdade, estava muito mais interessado e preocupado em sobreviver com as traduções que eu fazia do que em cultuar o rock ou bandas. Por isso, a década de 90, com os Guns e o fim da era glam praticamente não me atingiu. Por outro lado, eu estava tão assoberbado com minhas experiências (em sua maioria ruins) na putaria que não conseguia me acalmar em meu afã por estudo (sem consegui-lo, tanto que a maior parte do tempo eu passava em cafés, dado que não conseguia estudar - acho que a doença já se prenunciava), por contato com pessoas legais (fiz cursos de estratégia, que abandonei por questões de princípio, e fiz amigos que eram literalmente malucos, recuperando-se de problemas pessoais que pude confirmar com parentes deles), por conjugar minha pós com a Filosofia (havia começado uma pós em Comunicações, Jornalismo, com uma exigência atroz), e com as disciplinas que cursei a rodo em diversas faculdades, que não conseguia entrar numa mínima paz comigo mesmo.

Eu corria pela cidade com minhas motos, e às vezes eu sentia que queria me matar. Seja como for, num momento de distração me furtaram uma das motos (a outra eu tinha vendido), e fiquei a pé mesmo. Desisti da primeira pós e só permaneci na Filosofia por teimosia mesmo. Mas não conseguia me entrosar nem comigo nem com as outras pessoas. Em 1996, com o falecimento do meu pai, eu disse a mim mesmo que iria levar 10 anos para engolir a sua morte (uma autoprofecia que se mostrou verdadeira), e com isso fui tocando a vida, até conhecer aquela que iria se tornar minha esposa, a Cris. Mas meu mundo estava virado, eu ainda insistia em minhas vontades e fixações, mas nada parecia mais combinar.

Quando conheci a Cris, nós saímos muito, fomos a muitos lugares digamos calientes, e nos aproximamos bastante. Mas eu me sentia meio distanciado do mundo, já naquela época. Vimos imóveis, mas se por um lado eu não me sentia muito à vontade com aquilo eu também não sabia mais o que fazer. Um dia, os pais dela lhe deram um imóvel. Na verdade, NOS compraram um imóvel. Eu estava com muitos conflitos em casa, com minha mãe e meus irmãos, e aceitei o convite dela para me mudar. Mas hoje, pensando retrospectivamente, sei que não estava emocionalmente preparado para aquilo tudo.

Seja como for, nos mudamos, aprontamos o local e comecei meu primeiro relacionamento afetivo longo. Na verdade, meu primeiro relacionamento afetivo. Não irei aqui entrar excessivamente no mérito dele, simplesmente lhes digo que ela se dispôs a ser uma pessoa leal e forte comigo, e que eu também. Ela era uma moça recatada, que se dispôs a me seguir, a fazer o que eu queria, e a com base nisso vislumbrar o que ela queria. O relacionamento, como um todo, durou mais de 11 anos, e teve diversos altos e baixos. Mas irei me concentrar à questão da cruz, no que o envolve.

Sou um sujeito nascido no Chile com muitos questionamentos ligados à sua origem, à política e aos rumos do continente. Nesse sentido, viajamos muito, em geral ela dispondo-se a me seguir nas rotas que eu queria, e que nos gostamos demais naquele tempo. Visitamos a Argentina, o Uruguai, o Peru (especialmente Machu Pichu), o Equador (inclusive Otavalo, a cidade que tem a maior feira indígena do continente), visitamos museus diversos e comprei nesses lugares diversos livros ligados à origem indígena daqueles países. Note-se que eu ainda não havia engolido a morte trágica de minha antiga babá (Justina Paidil), que visitei em 1988 quando fui ao Chile cobrir o Plebiscito.

Uma das coisas que mais me atraíam em todos esses lugares era o patrimônio indígena que ainda havia sido legado às novas gerações. Mas outra coisa que especialmente me atraía era a chegada do cristianismo nessas regiões. Pois esses países envolveram, cada um do seu jeito, essa chegada, com contribuições dos povos que ali viviam antes dos espanhóis, e assim sendo tornaram-se o que são hoje. Nesse sentido, eu estava fissurado em especial na ideia da cruz. Soube no Equador que os povos de lá faziam cruzes imensas com motivos indígenas e até cogitamos, ela e eu, trazermos uma delas para o nosso apartamento, para colocá-la no meio dele. Claro que visitamos Minas, também...

Note-se que eu não tinha trabalhado intimamente, ao menos de forma madura, a questão do cristianismo em minha vida. Mas eu tinha essa fissura. No máximo, contudo, pegamos algumas cruzes pequenas em lojas de antiguidades e de artesanato. Cruzes que ainda tenho. Ela, quando foi sozinha à Bolívia, comprou uma maior, que colocou em nossa tv. Ou seja, até nisso ela me seguia, fortemente. Ela me amava muito naquela época, e eu também a amava demais. Mas o relacionamento continuou e para meu pesar para baixo, para um fim que iria chegar em uns anos.

Tudo isso era assim porque minha relação afetiva com o mundo estava em grande parte ainda quebrada. Eu queria contato, mas não sabia retribuí-lo. Sentia carinho, mas não conseguia expressá-lo de volta. Sentia amor, mas o perdia continuamente com minha inexperiência. Recusava certas demonstrações, e aos poucos me tornava mais violento no trato com o mundo e comigo mesmo. Andava com casacos de couro, ouvia rock pesado, não conseguia compatibilizar o que eu sentia com as poucas amizades que me rodeavam (especialmente no serviço), e minha relação íntima comigo mesma era muuto trabalhosa e atabalhoada. A doença começava também a me atingir, perdendo a compostura em determinadas ocasiões. Minha relação com minha família era rarefeita, e eu me sentia mais cumprindo as vontades da Cris do que fazendo o que eu queria (embora ela fizesse o que eu queria, no tempo que nos restava). Daí que fomos, a Cris e eu, nos afastando aos poucos, depois mais e mais, e eu não conseguia lidar com os problemas antigos, assim como os novos, que surgiam.

Com a editora religiosa, eu rompi da forma mais estranha possível. Eu simplesmente pisei na merda ao fazer uma tradução para aquelas senhoras, e isso fez com que elas não me chamassem mais. Não posso dizer que tenha lamentado. Simplesmente aquele serviço estava me matando por dentro - eu queria trabalhar em minha área (o jornalismo). Assim sendo, tive sorte e virei repórter por 9 meses numa cidade (Guarulhos) extremamente agressiva, o que resultou em vivências que retiraram ainda mais minha confiança no ser humano. Vi coisas de que só Deus não duvida. Corri risco de morte várias vezes. Vi situações abjetas, e tive que me impor como pessoa (sempre fui um sujeito macambúzio, e bastante mimado). Fui ficando violento, inclusive fisicamente (eu tinha treinamento em karatê). Depois, eu arranjei emprego num site de futebol, e aprendi bastante mais sobre jornalismo, mas o site acabou de repente, e aquilo tudo me deixou virtualmente arrasado. Emocionalmente eu fui me tornando um trapo, com experiências profissionais muito fortes mas também amargas, sendo que algo melhorou quando me tornei repórter numa editora de revistas técnicas, na qual fiquei 11 anos, e onde meu trabalho foi enfim reconhecido (pude viajar à Europa, aos Estados Unidos, etc.). Mas eu já estava mal, realmente, e não conseguia lidar bem com o mundo, quanto mais com a minha fé.

O pessoal da editora era mais ou menos legal. Havia muita competição, e eu me sentia o tempo todo na defensiva. Só queria trabalhar, no fundo, mas as conversas que me rondavam não permitiam. Eu me apeguei ao assunto da editora (materiais técnicos ligados à química orgânica) e fui crescendo. Mas os embates dentro da editora fizeram com que minha desconfiança em relação ao ser humano permanecesse dentro de mim. Eu passei a encarar tudo como um embate, como uma briga, como um mundo em que eu teria que me safar de algum jeito, em que o bem não tinha lugar para mim. Viajei a Cuba num evento no meio de uma viagem interna que meu psiquiatra identificou com delírio psicótico e consegui escapar ileso (fui sequestrado lá em Havana, em companhia com um amigo colombiano, mas conseguimos escapar). Eu estava tendo delírios, começava a responder ao mundo com desespero, mas não me tratava ainda.

Aos poucos, porém, os aspectos negativos da doença foram se manifestando, até um ponto em que ela foi diagnosticada, numa resposta muito violenta a algo que não merecia. Eu já estava me tornando cada vez mais agressivo e distanciado de tudo e de todos. Com o estouro, minha relação com a Cris ficou estremecida, ela mais ou menos que entendeu minha situação, mas nada voltou a ser como era antes. Eu passei a tomar remédios, passei a fazer terapia (algo que eu já tentara), passei a tentar olhar para mim com um olhar mais tranquilo (mas não conseguia, e meus terapeutas estão aí de prova). Nessa época, conheci o Motörhead e assumi como meu o jeito como o Lemmy encarava o mundo, bastante agressivo e desencanado com respeito aos rumos da história, a religião e tudo o mais.

Fui me afastando gradualmente da Cris, e ela de mim. Não sabia o que me acontecia, mas algo tinha isso a ver com meu desencanto com a família, com Deus, com o estudo, com a Filosofia e com as pessoas em geral. Nessa época, saía com meu carro - um Corsinha Classic - correndo pelas ruas cantando (gritando) Motörhead. A tal ponto eu estava fora de mim que um dia um sujeito me assaltou com uma .32 que colocou em minha têmpora e eu nem me comovi com o risco. Ele queria uma mala que, segundo ele, teria um notebook, quando na verdade só tinha livros. Foi nessa época que o Iron passou por uma ou várias crises, e eu já não gostava muito da banda. Mas ainda gostava de Sign of the Cross, tenho que confessar (tanto que tenho o CD ainda hoje). Conto também que perdi outra pós, de forma ignóbil, e que não contei para ninguém o que me aconteceu, nem para a Cris, o que me tornou ainda mais amargo.

Sobre o Motörhead, e sobre seu rock, cabem também algumas linhas. O Motörhead foi uma banda suja. Uma banda que se dispunha a avaliar o mundo da forma mais crua e forte possível. Pois essa banda, que tem seus méritos - que são muitos -, foi me afastando ainda mais de minha crença no ser humano. A Cris me via indo ao trabalho com casaco de couro e gritando aquelas músicas que, sob o aspecto estético, podem facilmente ser rotuladas como horrorosas, e não gostava do que via.

Por outro lado, confesso que o jeito descrente de um Lemmy me tornou por um lado uma pessoa mais forte, por aceitar certas decepções, mas também mais fraco, por não conseguir ver o outro lado, e por não conseguir mais quase sentir compaixão. Nessa época, eu ria de forma escancarada, como ele, meio que imitando-o, sem perceber o quanto de sofrimento encalacrado havia ali, por um lado, e por outro lado como eu não conseguia mais ver o que havia de sutil no ser humano.

O Motörhead serviu, de alguma forma, como corolário para toda uma ênfase em descrença que eu já tinha em mim. Claro que a banda não é culpada de nada. Eu é que permanecia virado com o mundo, eu é que não conseguia enxergar outras coisas. Não bastou que eu fosse ao Chile perdoar os meus familiares pela parte que lhes cabia no destino malfadado do meu pai. Não bastou que eu fizesse tudo o que a Cris queria, e que cedesse mais e mais espaço para ela e para seus gostos, assim como para o amor que ela sentia cada vez mais por si mesma. Não bastou. Eu continuava mal-conduzido pelo meu passado mal-resolvido e por conclusões mal-assumidas sobre religião, sobre mim e sobre Deus. Eu também não gostava de mim, essa é que era a verdade.

Escrevo vídeo entre aspas porque eu sempre tive uma noção de um vídeo para Sign of the Cross (começo a falar da faixa agora). Essa minha ideia de um vídeo para a canção não mudou muito desde a primeira vez que ouvi a faixa, e ela dialoga com minha ideia da Cruz e daquilo que nela parece importante para mim. Posto aqui uma ilustração que expressa a cruz vista de baixo e imponente. No meu caso é ainda mais imponente. Uma cruz altaneira e opressiva. Algo que parece impossível de imaginar carregar. Uma cruz simbólica que parece maior do que o próprio mundo em que está posta.

No "meu vídeo", essa cruz aparece aos poucos, sendo que na parte cantada de forma gregoriana (embora eu duvide disso, porque o canto gregoriano é bastante diferente) ela não existe. Não "vejo" monges cantando, não os vejo em local fechado (algo que seria bastante comum e tradicional). Vejo a dor de alguém quando Blaze começa a cantar, suavemente, a dor de alguém que se sente culpado de alguma coisa, mas, mais importante, "vejo" a cruz surgindo na parte cantada fortemente por ele. Na parte em que a música se torna marchada.

Vejo-a (à cruz) deitada, num primeiro instante, e depois subindo por vontade própria (ninguém a levanta), e assumindo o porte altaneiro de que falei no começo. Ao seu redor, a noite e nuvens, mas algo bastante tétrico e opressivo. Daí que na parte do estribilho ela começa a cair em mim, especialmente em mim, como se eu fosse o mundo todo. Essa cruz começa a cair mas não cai, realmente. Ela desce suave e fortemente, e me amassa enquanto não cai mesmo. Enquanto me oprime, pura e simplesmente. É uma cruz tão grande que não consegue ser carregada. E uma cruz que apesar de me oprimir não cai realmente em cima de mim. Uma cruz que permanece enquanto opressão. O peso dessa cruz me aporrinha e me faz chorar de emoção, como se de alguma forma eu quisesse realmente que tudo aquilo acontecesse.

Claro, vocês devem estar pensando que talvez eu seja um cara realmente complicado, que gosta de sofrer. Uma espécie de entronizador do sofrimento. Não sei realmente. Sei que apenas era essa a forma como eu via a cruz quando eu ouvia Sign of the Cross. E a forma como eu ainda a vejo, ao menos quando ouço a música. Ocorre que as formas como a gente encara a cruz dizem bastante sobre nossa forma de encarar a religião, a vida e o sofrimento em si, em sua relação com o Novo Testamento e com nossa forma de encará-lo enquanto fé (quando acreditamos). Ocorre que durante minha trajetória essa acepção foi mudando, pari passu meu amadurecimento de fé, comparando as formas de encarar o credo em sua relação com o símbolo e as formas de entender a religião como um todo, na minha vida. Essas mudanças foram sendo tratadas por mim nos últimos meses com representações do calvário e da cruz. E sobre elas irei falar daqui a pouco. Agora resumo como se deu minha aproximação recente com a religião.

Passos recentes

Comentei num texto que divulguei em outro lugar (aqui) como se deu minha reentrada no credo católico. Escrevo ali que minha aproximação com os Evangelhos se deu novamente quando eu queria entender minha relação com uma garota pela qual eu estava apaixonado. Foi meio ao mesmo tempo, e se deu lendo uma pequena edição dos Evangelhos verdinha, que ainda tenho. Eu descia rumo a uma padaria, lia trechos do livrinho e aquilo me revelava coisas a respeito do que eu sentia e do que era a vida, naquele momento, para mim. Depois, fui lendo outras Bíblias (tenho cinco edições, uma mais completa que a outra), já com outro foco (distanciado daquela paixão), livros sobre histórias das religiões, livros sobre os livros da Bíblia, comentários em outras Bíblias que achei na internet, e até mesmo tentando auferir alguma coisa de Bíblias bilíngues com edição original em hebraico.

Nessa época, fui escrevendo muitos artigos em diversos sites sobre aspectos relativos a amor e à religião à qual estava me convertendo. Claro que minha experiência com respeito à simbologia da cruz foi também mudando. E é sobre ela que irei falar especialmente agora. Isso sem deixar de referir que, naquele processo todo, fui percebendo meus pecados, fui me aproximando de um santuário que fica mais ou menos perto de casa, fui assistindo às missas, sendo que um dia eu me confessei e fui participando daquilo tudo, já convertido.

Minha página no Obviousmag

A cruz

Eu ia me convertendo, quando lia aqueles pequenos Evangelhos, mas lembro-me de que um passo primordial nesse afã foi quando eu percebi, enquanto andava na rua, a dor que havia causado à minha ex-esposa. Minhas pernas vacilaram, eu mesmo capenguei, e me dirigi à capela do Santuário Santa Terezinha, em Taboão da Serra, distante dali alguns quarteirões. Lá chegando, vi mais uma vez Jesus Cristo fazendo as vezes de crucificado, numa pintura cuja qualidade deixa bastante a desejar. Eu já me acostumara a essa representação, mas estranhava o olhar duro do Cristo, e por vezes me sentia acabrunhado com tudo aquilo, com aquela forma de demonstrar rigor e ao mesmo tempo seu amor. Subi em direção à secretaria e mesmo sem muita convicção me confessei. Foi estranho, mas um processo. Um processo que já levava várias semanas, e pelo qual eu ansiava. Mas foi estranho porque, mesmo sabendo que tudo parecia dado de antemão, exigia uma intenção que me fazia fraquejar. Note-se que nessa época eu comia muito mal, me alimentava com pouca comida, e tentava lutar contra minha doença nessas mesmas condições. Em seguida, naquela ocasião, assisti à missa. Iria ser a primeira em que eu meio que me abandonava, já sem vergonha de mim, e por outro lado bastante convencido do credo.

Mas o sentido forte e duro da pintura (dessa do santuário) não me abandonava. Eu sentia, olhando para ela, e meio que me questionando, que precisava entender melhor a simbologia da Cruz, algo que passei a fazer ao mesmo tempo em que escrevia sobre o que sentia de forma geral em minha página (também aqui) no site do Obvious. Para esses textos de estudo, eu usava livros de história da arte que comprara há vários anos, e tentava ir além, no meu estudo, do comentário restrito à arte em si. Eu queria meio que tocar o credo com minhas leituras de pinturas célebres. Mas não queria fazer isso como profissional. Minha intenção era me aproximar de tudo como crente mesmo. Tentando ver em que medida tudo aquilo realmente me tocava.

Nessa época, eu também lia a Bíblia meio ao acaso, comentava sobre alguns livros (especialmente os sapienciais, que tinham paralelismos com auto-ajuda ou com a Filosofia, como o Eclasiástico, sobre o qual falo aqui), e escrevia sobre o processo de libertação que ocorre ao crer (ou ao não crer, como falo aqui). Foi também nessa época que eu decidi-me a ver alguns filmes. O primeiro, mais óbvio, que assisti foi A Paixão de Cristo, de Mel Gibson (2004), que resenhei aqui.

Preciso aqui também falar sobre alguns episódios anteriores. Houve uma época em que também evangélicos quiseram me converter (além do pessoal da Opus Dei). Lembro-me que um dia um grupo deles me levou para ver um filme e ver minha reação. Como eu não chorei, eles se desinteressaram de mim. Era a forma que eles viam de testar o postulante a crente. Desta vez, assisti a Paixão no meu computador. Notei alguns aspectos que, na época do seu lançamento, causaram polêmica, mas sinceramente me emocionei. Ocorre que ali a cruz aparece de forma crua, como algo para além da mensagem de cruz a carregar na vida, em paralelo com os crentes. Ocorre que ali Cristo é crucificado com extrema crueldade, e que o destaque é justamente dado a isso.

Cristo é um homem forte, alegre, que é conduzido por meio da crucificação rumo a um destino certo, com o qual o diretor do filme, o Gibson, quer que nós nos identifiquemos. Era uma apresentação visual demais, forte demais, para realmente eu entender num processo interno de conversão. Chorei e sofri, claro, mas a cruz - que é o foco aqui - aparecia num sentido meio esmaecido, como um flagelo cujo exagero fazia com que eu não reparasse o suficiente EM MIM. Eu entendia já algo da simbologia de cruz a carregarmos, deixava-me levar pelo sentido disso na vida daquela época, mas não conseguia realmente perceber o que era realmente a cruz, nisso tudo, nem se eu deveria mesmo lhe dar tanta relevância, em termos simbólicos e de crença. Foi então que comecei a estudar pinturas (que, claro, geralmente não mostram a cruz, pura e simplesmente, mas a crucificação). Delas, foquei-me em especial nas pinturas mais clássicas, com livros de arte que eu tinha e cujas lições eu passei a comentar. Isso, numa época em que já escrevia no Whiplash, quase em simultâneo.

Pinturas

Eu ainda não sei bem por que me decidi a pesquisar em história da arte sobre a crucificação. Eu já tinha algum estudo na área, é certo. E algo daquela época, na Filosofia, ainda batia fundo em mim (especialmente Grünewald). Explico. Eu fazia disciplinas de Estética e História da Arte, e o professor em especial - o esperto Léon Kossovitch (nenhum parentesco) - tinha um jeito muito peculiar de ensinar (apresentando exemplos de telas). Esse jeito de ele ensinar tinha um motivo - o diálogo real com os textos lidos em outras línguas (que eu não consigo, por falta de tempo, ler até hoje). Ou seja, era uma forma de falar de Filosofia, sim, mas de forma prática, com exemplos concretos, visíveis e, ainda por cima, muito bonitos.

Claro que o Léon fugia das telas mais conhecidas, embora falasse especialmente de telas amplamente reconhecidas especialmente por especialistas. Ou seja, ele fazia com que fugíssemos dos lugares-comuns, ampliava nosso panorama e nossa cultura, ao mesmo tempo em que nos fazia pensar. No caso de Grünewald, lembro-me até hoje como ele aproximou uma revista ou livro com reprodução da tela sobre a qual falarei em seguida, e como eu senti emoção ao entender por que o pintor havia feito aquilo daquele jeito (depois eu aprendi bem mais). O Léon também tinha contato com pintores reais, brasileiros, e um dia lá fui eu num estúdio de um xilogravurista para conhecer aquela galera. Ou seja, era arte teórica mas também prática.

Mas, voltando ao momento atual, eu não entendia por que precisava necessariamente avançar nas imagens da crucificação para me convencer - ou converter. Seja como fosse, os artigos que passei a publicar no Obvious demandavam um trabalho bastante grande, que de alguma forma destoava do necessário trabalho de introspecção para algúem, como eu, que estava se convertendo. Eu sentia, por outro lado, que precisava fazer o drama de Jesus entrar em mim, e que para isso precisava entender o gesto da crucificação, o sacrifício, assim como sua passagem enquanto vivo entre nós (embora ele tenha ressuscitado posteriormente). E, como eu tinha problemas emocionais sérios (além da doença), eu precisava de algum meio para entrar em mim mesmo. Por sua vez, desde há muito tempo, incluindo o período em que fui casado, eu ainda sofria muito com a sensação do pecado e de haver pecado. Eu ainda encarava tudo solenemente, a sério, como se dissesse respeito a uma passagem na vida do mundo pela qual eu devia pagar. Como no começo de Sign of the Cross, em que a letra mostra isso ("mandar (lavar) meus pecados embora"). Porque a faixa é uma faixa de pecador, em que a culpa está o tempo todo nos oprimindo.

A "análise" estética

As pinturas, analisadas no post original, estão aqui. Mas algumas aqui eu disponho, para comentar algo do que eu sentia e ainda sinto a respeito delas. Note-se que eu não digo aqui "algo que eu auferia"; digo "algo que eu sentia e ainda sinto", porque a questão mesmo era de sentir.

Giotto, por exemplo. Eu analiso essa pintura clássica mostrando algo do que podemos sentir ao ver esse Jesus pendurado na Cruz (embora quase sem sangue a jorrar dele). Nessa pintura, eu reparava no Cristo literalmente abandonado por todos, solto em um fundo azul, com o qual só se comunicam mesmo Maria e os anjos. Um Cristo que já começa a prenunciar seu estado lastimável e, como eu já disse, abandonado. Um Cristo pelo qual sentimos alguma compaixão. Mas um Cristo bastante etéreo, que não parece deste mundo, como o são as outras figuras da tela. A questão do abandono é bastante importante, aqui. Porque grande parte da empatia que sentimos por Jesus vem do fato de ele ter sido vilipendiado, escorraçado, torturado e abandonado por todos - menos os que conhecemos.

Vemos então, a partir da pintura, um crucifixo do mesmo Giotto, com figuras ladeando a imagem do Cristo, e em que podemos virtualmente carregá-lo, enquanto crucifixo pessoal. Eu noto hoje que existem diversas versões de crucifixos que, em última instância, parecem se remeter a essa do Giotto, com o Cristo virado para sua direita, com auréola ao redor de sua cabeça, mas em que a cruz passa a ter uma predominância maior (até porque é nela que se fundam os símbolos da Igreja, nascente ou atual). Surgem também algumas figuras como auréolas estreladas, adornos enfeitados, etc.

O predomínio da estrutura da Cruz (por detrás da figura de Jesus) fica também bastante clara no crucifixo de Cimabue, que passa a dispor de uma espécie de leito por detrás do corpo dele, e em que as outras figuras (de santos, se não me engano São José e Maria) assumem predominância e clareza cada vez maior (inclusive nos indicando a figura de Jesus ali, sozinho, em dimensões muito maior às dessas pequenas cabeças). Eu notava que, nestas cruzes, o papel da Igreja ficava cada vez mais patente, e que o Cristo aparecia sempre mais ou menos estilizado, o que não fazia com que eu me emocionasse muito ao vê-lo. Nessa época, os anos eram desde o ano 1000 até o final da Idade Média, e algo parecia levar as pessoas a tratarem o assunto com uma frieza aparente.

Nessa época, eu pensava naqueles aspectos bem costumeiros em qualquer um que reflita sobre Jesus, quais sejam, o fato de que ele era um homem, o fato de que ele sofreu como um homem, como nós, o fato de que ele tinha um corpo e sofria. Tudo isso não me fazia mais pensar tanto em Jesus como aquilo em que ele se tornou, mas naquilo que ele era, e no sofrimento por que ele passou. Claro que isso me aproximava a mim mesmo, à minha cruz que eu carregava todos os dias, mas me afastava por outro lado do credo, e me impedia de entender o que estava lá de forma mais madura, com mais leituras. Eu ainda não pensava no significado cristológico disso, porque ele sofreu por todos os outros. Eu pensava no seu sofrimento pessoal, e no sofrimento físico que passou, por ter sido condenado a isso (o filme de Gibson apela para essas sensações, como é óbvio). Eu começava a pensar na cruz enquanto algo que nós todos temos conosco e que temos que aceitar e carregar, como ele aceitou e carregou a dele, muito maior que a nossa. Claro que isso corroborava meu jeito sofredor, de pessoa condenada por uma doença incurável, e tudo mais. Eu me sentia melhor, dessa forma, quando enfrentava dificuldades, e considerava que isso fazia de alguma forma parte de meu destino.

Pinturas mais atuais

Mas não conseguia pensar assim ao ver as pinturas do Nikolai Ge, com seu Cristo tão humano e gritando tanto de dor. Eu sofria ao ver aquilo, mas sei lá, aquilo me parecia tão exagerado! Porque, se por um lado entendia o sofrimento de Jesus enquanto pessoa, não conseguia me remeter somente a ele enquanto pessoa. Jesus não era apenas uma pessoa. Jesus foi alguém especial, e para quem acredita o filho de Deus. Não conseguia fazer a ponte, e se por um lado ainda continuava tentando entender meu destino em função do sofrimento por outro não conseguia entender a figura de Cristo, e o que ele representava de fato para mim. Era como se o destino de Cristo estivesse meio descolado de sua mensagem. E sua mensagem, qual era? Havia sido essa que ele havia dito. Ou seja, nesse ponto começava a me descolar da ideia de sofrimento para a noção real da cruz. Um pouco, pelo menos. Claro que as leituras me ajudavam, nesse sentido. Eu via o Cristo vivo, aquele dos Evangelhos, e via nesse Cristo alguém que me aproximava mais de mim do que o Cristo imolado, na Cruz. Aquela cruz enorme que durante a música caía em mim agora parecia mais leve, parecia algo humano, que eu mesmo poderia merecer e conseguir carregar.

Telas clássicas

Claro que outras pinturas, como as de Cranach e de Grünewald, ainda me remetiam a aspectos de sofrimento que me aporrinhavam. Mas eu tentava sentir compaixão dele e não conseguia, ao menos facilmente. Eu entendia que o Cristo havia sido pintado daquele jeito para comover. Mas sentia que havia algo de exagerado nisso. Sentia que a religião não podia ser, para mim, apenas esse sofrimento encalacrado do qual eu não poderia jamais me livrar. Nesse começo, eu principiava a me perdoar dos erros cometidos com a Cris e de minhas atitudes descrentes cometidas naquela época e depois. Nesse momento, eu começava a sentir algum apreço por mim e pelos outros, e começava a entrar nos Evangelhos nessas mensagens que diziam respeito à ideia do amor. Note-se que até aquela época eu me comportava de forma bastante crua no mundo. Não sentia muita compaixão pelos seres humanos. Reparava na postura de minha família a meu respeito e muito a custo eu conseguia sentir novamente o que eu sentira quando criança a seu respeito. Eu pensava em mim de forma bastante cruel, e ainda me deixava levar por rompantes de ira e de autocomiseração que me afastavam de uma forma mais compassiva e por que não dizer realista de enxergar o mundo e a mim mesmo.

Uma nota precisa ainda ser dita sobre Grünewald. O alemão foi o sujeito que mais me confundiu ao ver uma peça de arte. Porque o Léon, quando me mostrou uma cópia de sua maior obra, o altar de Isenheim, me fez chorar. Eu realmente VI Jesus naquela condição, quase podre, dominado pelos vermes, e me condoí - e isso em sala de aula. Uma explicação para essa pintura é que ela foi feita para um convento ou hospital com pessoas com - na época - doenças incuráveis e muito dolorosas, e que a pintura servia para os doentes e os frequentadores entenderem de forma mais compassiva o destino dos seres humanos, e daqueles seres condenados.

Lembro-me de ter visto, mesmo na época das aulas, uma reprodução aumentada do corpo e dos pés carcomidos daquele Jesus e ensaiado um choro, quase sem perceber. Ou seja, a tela causou um efeito de crente em mim, numa época em que eu não pensava nisso, de forma alguma, e em que eu jamais iria pensar em me converter. Notem que logo no parágrafo anterior eu digo que não sentia compaixão do Cristo, que não conseguia. Mas como é que chorei, então? Pois então. Era como se a tela me afetasse tão profundamente que eu nem conseguia verbalizar o que experimentava. Parecia algo relativo ao valor da obra enquanto arte, em si, e não necessariamente enquanto arte que se propunha comover para alguns fins. Era ou parecia ser algo para aquém ou além da mera sensação. Mas as viagens, agora em pleno processo de conversão, continuavam.

Lembro-me bem. Por incrível que possa parecer, foi um crucifixo muito luxuoso que começou a me afastar das formas empoladas de representar Jesus Cristo na Cruz. O crucifixo em questão foi o de Padova, que analiso aqui. Notem que esse post do Obvious é da época em que estava me convertendo, então ele pode não confirmar isso que estou dizendo. Ocorria naquela época que, se por um lado eu sentia a leveza e singeleza de Cristo, crucificado na Cruz, por outro lado eu começava a ver algo estranho embora também atraente naqueles crucifixos todos luxuosos. Note-se também que eu tenho 10 crucifixos, de todos os tipos, assim como seis edições da Bíblia (física, sem contar as que eu tenho no meu micro). Eu começava realmente a me aproximar da fé, sem intermediários. Começava a reparar nos luxos das igrejas ou das pessoas que assumiam posturas durante suas conversões e suas formas de crença, e a me afastar de tudo isso para assumir algo em mim.

E nessa questão de usar o crucifixo tudo foi ficando mais difícil para mim. Minha mãe me deu um deles, do avô, comprado em Roma. Tenho outro muito simples, de metal, e vários outros que possuem terços em conjunto. Possuo outros com terços mais sofisticados, e tudo mais. Tenho também uma cruz simples, de metal, sem pingente, que costumo carregar. E tudo isso, essa simbologia, se por um lado passou a ser importante para mim, por outro lado passou a ser entendida de forma mais leve, enquanto fé, simplesmente. Houve, é claro, a fase de superstição, em que eu não podia sair sem o terço. Houve também a fase em que eu descia ao centro da minha cidade rezando o terço. Houve várias fases.

Mas um aspecto singelo se destaca: fui me afastando dos terços enquanto demonstração de religiosidade, e fui me aproximando assim, nesse processo todo, da singeleza da mensagem. Fui olhando Cristo com menos dor, com mais compaixão e com mais amor. Isso também foi me afetando internamente. Fui me tornando aos poucos uma pessoa menos dura. Fui compreendendo meu amor pela garota, pelos meus familiares, e por mim mesmo. Comecei a dar água às plantas da sacada do meu apartamento, e ele (o apartamento) foi assumindo uma imagem de lar (hoje mesmo, minha mãe me fez notar que algumas plantas que eu tenho passaram a dar flor, o que seria sinal de boa sorte). Fui me afastando do sujeito duro e descrente que eu era (mas que até certo ponto ainda sou). Fui me tornando humano. Tanto que fui lendo com mais vagar e tranquilidade os trechos dos Evangelhos, e compreendendo-os melhor, também.

Meu processo inteiro de conversão quem sabe um dia seja escrito, só sei que fui aos poucos me afastando da noção dura do pecado, passando pelo sofrimento e chegando ao agradecimento. Isso não se deu, é claro, de forma simples. Teve momentos de recaída, para baixo, e de superação. Houve de tudo. Já fazem quase 11 meses em que o processo começou.

Minhas andanças

Quando comecei a me aproximar da religião católica (olhem que diversos membros de igrejas evangélicas tentaram me levar aos seus templos), eu me sentia sozinho, estava sozinho, mal tinha o que comer, me sentia solto no mundo, praticamente não tomava banho e tratava o mundo como um inimigo que seria necessário derrotar (embora eu não soubesse como). Com a reaproximação com a família, eu passei a voltar a tomar remédio, a visitar a minha mãe, a receber suas visitas (para trazer mantimentos), a me comunicar com minha irmã (com a qual havia praticamente rompido, e que passou a me ajudar financeiramente), e também com meu irmão. Passou a haver também um processo de envolvimento emocional com as pessoas que me rodeavam, e eu passei a corresponder a tudo isso de forma bastante sutil. Diversas pessoas que me apoiaram em meus problemas passaram a se tornar realmente minhas amigas, e eu passei a lidar melhor com meus problemas concretos. Digo isso, assim simplesmente, mas não foi (nem é) nada simples, a bem da verdade. Mas as coisas começaram a realmente avançar.

Afastei-me meio que sem querer do pessoal do teatro (que passava noites absurdamente agitadas, e do qual eu havia me aproximado, tendo virado ator), a garota pela qual havia me apaixonado passou por seus próprios problemas (continuamos amigos, mas mal nos vemos), eu me isolei bastante do pessoal do prédio, fiz alguns serviços, levei umas pinduras, e comecei a lutar arduamente (com vários efeitos positivos) por serviços e trabalho. Passei por momentos de dificuldade imensa, com a depressão e a esquizofrenia só me puxando para baixo, mas também por momentos que eu quase considero milagrosos, pela junção de situações que me salvaram de encrencas pelas quais, até o último instante, eu pensava estar perdido. Ontem mesmo aconteceu algo disso, que encarei com maior maturidade (algo que se estende a até hoje).

Num dia de pouca fé (um dia talvez eu explique como cheguei a essa conclusão), teve até uma moça desconhecida que me parou no meio do banco e me perguntou se eu realmente acreditava, sendo que eu a acalmei e lhe garanti que, sim, que acreditava. Teve outros momentos que me deixaram muito cabreiro. Teve várias missas das quais participei. Aos poucos, fui me soltando nelas, cantando, e ouvido outro tipo de música - essas músicas gospel, que muitos de vocês odeiam. Ainda ouço rock, e heavy metal, mas de outra forma (hoje me aproximo mais de bandas tipo Yes e Genesis, mas encaro Black Metal com bastante facilidade). Vejo em suma o gênero de outra forma. Por outro lado, pareço ter aberto meu espírito ao mundo, e aos poucos noto aspectos que antes passavam desapercebidos. Virei um crente (espero que não chato). Hoje (nos domingos) faço catequese de adultos, porque não havia sido crismado. Gosto bastante, porque vejo a tudo com o coração. Pois o fato é que, num determinado momento do processo, muito doloroso aliás, meu coração fechado se abriu. E depois foi se abrindo cada vez mais.

Sobre esta questão do coração se abrindo preciso falar algo. Quando me separei, eu sentia uma dor profunda em meu coração. Eu sentia uma dor física, à qual eu respondia com choros lancinantes, períodos em que passava a viver minha vida com bastante dificuldade, em que eu sentia que algo parecia me superar. Peguei herpes na bunda, e a médica me disse que eu tinha que superar isso, porque se não eu iria me ferrar de vez. Pois agora, enquanto eu me convertia, a dor voltava, e no coração, mas de outra forma. Eu sentia uma dor física que parecia me obrigar a passar as noites em claro, em meio a situações com as quais eu não conseguia viver. Isso aconteceu no começo de minha conversão. Depois essa dor passou a ficar mais leve, mas ainda a existir. Foi quanto eu entendi em que medida isso dizia respeito à dor de abrir o coração. Pois antes o meu coração parecia ainda fechado ao mundo e aos outros, assim como ao amor. Quando abri meu coração eu passei a entender o recado. Hoje eu digo para as pessoas que o processo real em última instância é bastante simples. Basta abrir o coração. Simples assim. A gente percebe quando isso acontece com a gente. E creio que a gente também perceba quando isso acontece com os outros. Digo claramente que "creio que a gente perceba", porque não tenho certeza disso. Seja como for, os Evangelhos narram diversas situações em que as pessoas envolvidas abrem ou não abrem seu coração à fé.

E as imagens da cruz? Pois então. Num determinado momento do aprendizado, fui entendendo trechos dos Evangelhos que me retiravam o peso tão forte da culpa. Por outro lado, fui sendo defrontado com aspectos do Novo Testamento que expressam, por um lado, o grande poder do amor enquanto amizade e salvação, e por outro lado, a grande força e quase crueldade de certos momentos da crença por alguns apóstolos. Aconteceu que, com o passar do tempo, e a fixação de minha crença, algumas pessoas passaram a dizer que eu me assemelhava ao apóstolo Paulo, pelo jeito de ser. Foi bastante curioso, isso, inclusive. Nessa época, minha crença já estava bastante forte.

Por outro lado, eu via momentos das missas, e não gostava, propriamente. Achava algumas dedicações das pessoas excessivamente fracas e suaves. Sentia que as pessoas não pareciam acreditar, realmente. Parecia que as pessoas estavam ali por estar, pela cerimônia, apenas. E eu sou um cara muito radical. Eu não estou na cerimônia apenas por estar, pela cerimônia. Canto com força, me ajoelho, me contraio, entro em compunção e tudo mais. Sem querer chamar a atenção, me dedico na cerimônia tanto quanto ela significa para mim. E as pessoas que falam comigo notam como, quando eu falo, falo para valer. Por outro lado, não gosto quando noto que se fala da boca para fora. Se meto os pés pelas mãos, vou me confessar o quanto antes, e comungo também o quanto antes. Estes dias, fiz merda com minha mãe, em seguida fiquei meia hora parado, pedi desculpas e lhe prometi que isso nunca mais iria acontecer. Assim. Confesso porém que não concordo muitas vezes com o que leio no Catecismo. Mas mantenho essas questões sempre comigo.

Minha fé, hoje

Pois esse meu jeito me faz crer que músicas como Sign of the Cross possuem uma força que agora não me aproxima mais tanto da ideia de ser pecado e tudo o mais. Ao contrário, me fazem crer que a gente, que acredita, tem que ser meio que um soldado disso. Sem forçação de barra, como ficar falando para quem não quer ouvir, por exemplo, a gente, que agora acredita, se sente - no meu ponto de vista - tão alegre pela fé que sentimos que a gente se sente forte e afirmativo ao falar dela, com orgulho, como algo que realmente pode mudar a vida de qualquer um. Pois é assim que hoje vivo a minha fé. Mas, e com a música? Pois é.

Adoro e continuo adorando Sign of the Cross. Ouço-a sempre que posso e que quero sentir que estou numa cruzada pessoal em busca de minha salvação - enquanto vida concreta, enquanto relacionamento com as pessoas que amo e com Deus. A música realmente me bate fundo demais. Percebo o foco na dor e no sofrimento. Percebo o quanto isso tem a ver com a realidade. Leio São João da Cruz e outros santos, e percebo como a trajetória, para um recém-convertido, passa do pecado ao agradecimento e em seguida à vivência da dor enquanto fé. Percebo o quanto o perdão nos engloba, nesse sentido, e o quanto podemos nos aproximar se entendermos e vivenciarmos nosso pecado, o quanto agradecermos e o quanto perdoarmos pequenas demonstrações de ausência de fé nas outras pessoas. Percebemos assim o quanto nos tornamos meio que soldados da fé sem necessariamente carregarmos nossa fé com um peso excessivo em culpa, e percebemos o quanto certas demonstrações nos outros podem nos aproximar da alegria, uma alegria sempre doída, mas sempre muito profunda. Hoje o rapaz da catequese gosta de fazer com que eu fale da fé lá na frente, e lhes digo, faço isso com a maior das boas vontades. São as pessoas que me pedem isso, não sou eu que me meto a fazer algo que poderia ser ridículo.

No Chile (1995):

Voltando à música. Sinto a dor do Steve, ao compô-la. Sinto-a profundamente e profusamente, como uma música de um sujeito pecador que quer sair disso tudo, desse sofrimento tão atroz. Porque realmente, se por um lado o sofrimento é uma das formas pelas quais nos aproximamos de nós mesmos e de Deus, assim como de nossa vida, por outro lado o sofrimento é a forma pela qual cicatrizamos nossas dores e avançamos rumo à vida que Ele reserva para nós. Muito de nós realmente passa pelo sofrimento. Mas o sofrimento não é, por outro lado, algo a que temos que nos aferrar, sem querer superá-lo. Não. O sofrimento não é o fim. O sofrimento é a via pela qual atingimos o Amor (não falo isso por alguém mais ter dito antes, como o Padre Fábio de Melo; falo isso porque entendo que seja mesmo assim). Choro enquanto escrevo isto. Porque é mesmo isso.

Antes de passar para a música em si, refiro-me a outros artigos que escrevi sobre pinturas que serviram para convencer a muitos. Tanto Giotto de Bondonne, em Fé, como Masaccio, na "Expuslão de Adão e Eva do Paraíso" e em sua própria Crucificação (que estão em minha página no Obvious). Falo algo também sobre a Descida da Cruz, de van der Weyden. Nessa época, eu lia sobre o Gênesis e o Éden e escrevia a respeito, cotejando os livros sacros com livros de História de Religiões, história propriamente dita, e Filosofia. Não deixei de ler os livros da Bíblia que pude sem a necessária crítica de fora. Posto também alguns links para livros que nos ajudam a entender melhor o Novo Testamento (especialmente as Epístolas Paulinas e o livro do Apocalipse) E foi assim que amadureci ainda mais a minha fé. A cruz, no caso, passou a se tornar mais um detalhe em toda uma crença que me agrada cada vez mais, sem com isso me afastar da Filosofia.

A música

Sign of the Cross, no Rock in Rio:

Claro que Sign of the Cross, nesta história toda, fala por si. Eu, que já comentei um pouco sobre a faixa em outro lugar (aqui), aqui comento algo mais em termos musicais e no sentido que ela me passa enquanto ela parece ligada à minha fé. Note-se que a faixa foi-se descobrindo, ao menos no meu caso, aos poucos. Permanecia em mim, como eu disse antes, aquela imagem da cruz se levantando e caindo - mas não caindo - em mim. Permanecia meu gosto por aquele tipo de rock. Permanecia o jeito triste com que eu via o mundo, e o jeito fatalista com que eu encarava a música. Permanecia algo do sentido da letra da música, que fazia com que eu me emocionasse. Mas cumpro dizer que somente hoje, quando eu a ouço novamente, é que consigo realmente perceber sua pegada. Uma pegada que tem tudo a ver com minhas atuais andanças, com algo das certezas que caem em mim, às vezes inadvertidamente, e com algo que corrobora ainda mais aquilo em que acredito.

Bom, Sign of the Cross começa com um sinal lúgubre. A gente ouve homens ao longe entoando um cântico que parece não ter sentido, mas que para mim e para muitos diz: Vater, ou Father, ou Pai, seguido de algo em que somente na última estrofe do que eles dizem parece haver outro sentido. Parece um Pai seguido de um lamento, ou uma tentativa de conexão. Claro que esse trecho remete ao filme O Nome da Rosa, ao encontro dos monges naquele mosteiro afastado, e à forma lúgubre com que eles se relacionam entre si. Sentimos um jeito de Idade Média ou de sepulcro, mas não sabemos muito bem a que isso se refere. Quando ouvi pela primeira vez, estranhei a extensão desse trecho, assim como os efeitos sonoros que faziam crer no uso de teclados. Era algo tétrico, que não acontecera antes na história da banda. E uma faixa de introdução, que prenunciava o que iria vir.

Mas agora eu preciso falar algo sobre como quem acredita pode ver essa espécie de sepucro. A Bíblia está repleta de passagens que falam em alguém que não vê (que está literalmente no escuro), que está preso em ambiente do qual não consegue escapar (uma espécie de prisão), ou mesmo de Lázaro, que está morto e sepultado há quatro dias, mas ao qual Jesus pede que saia (e ele sai). Por outro lado, na vida de quem se perdeu são incontáveis as passagens em que sentimos estar perdidos, em que sentimos não conseguir enxergar um palmo à nossa frente, em que nos percebemos totalmente perdidos na vida, e em que precisamos ver uma luz. Por sua vez, chega a ser chavão dizer que quem está perdido está no escuro. Mas o fato é que, para quem não vê saída em sua vida, as coisas quase sempre acontecem dessa forma. Tanto que muitos, que estão perdidos, até preferem ambientes escuros, que façam com que eles se sintam mais à vontade. Outros, por outro lado, defendem o lado escuro, seja por meio de mensagens, e exemplos ou de bandas. O escuro é quase sempre identificado com a ausência de luz ou de saída para nossos problemas.

Claro que na época eu gostava disso (e, com alguns limites, até gosto ainda hoje). Já disse que época eu vivia - com meus pais, problemas familiares, saídas noturnas, tradução de livros que me desgostavam, uma época de recessão que eu só conseguia enfrentar dessa forma. Aos poucos, claro, na música, o fundo de pessoas, soturno, diminuía, e entrava a melodia inicial. Era algo que me agradava demais naquela época. Era uma espécie de mensagem vinda das profundezas, algo que parecia bater fundo em mim. Bem naquele momento em que eu vivia. Daí vem a parte cantada.

Nesse trecho, cantado pelo estreante Blaze (que deveria estar sentindo o peso de substituir o grande Bruce), no trecho em que ele era pela primeira vez apresentado aos fãs, a melodia falava triste ou solenemente de homens (11) com mantos, silhuetas contra o céu, sendo uma à frente, carregando uma cruz (Cristo) que vinham para lavar-me dos meus pecados.

Eu entendia esse inglês mais ou menos, na época. Não compreendia tão claramente a solenidade. Mas captava a ideia de um pecador que estaria esperando para ser salvo por outros - e por Ele. É curioso, penso hoje que o Steve tenha começado essa potência de música com a referência direta aos apóstolos (11, sem contar Judas), usando de uma figura inicial, altaneira, carregando uma Cruz, para falar algo sobre religião que não remetia diretamente ao filme. Pois aqui é como se estivéssemos defrontados diretamente com o Cristianismo como um todo, e com o seu peso em nossa vida. Eu, de minha parte, levei bastante tempo até entender a remissão aos apóstolos como algo que vai para além da Cruz. Porque para entendermos a Bíblia como um todo precisamos também entender o Pentecostes, a trajetória dos principais apóstolos, o apostolado como um todo e o envolvimento da Igreja no sinal da Cruz, algo sobre o que só vim a me tocar muito recentemente. Naqueles idos dos 90 eu não tinha essa cultura (mesmo tendo traduzido tantos livros sobre a religião). Menos ainda eu tinha uma ligação íntima com a religião a esse ponto. Tudo me parecia externo, como se fosse uma mensagem que eu ainda precisaria decifrar.

Vídeo, a partir da música, pegando a deixa das Cruzadas:

Quando o Blaze (ou o Bruce) pára de cantar (as primeiras estrofes), começa um trecho bastante extenso em que a bateria, de forma marcial, é acompanhada pelo baixo, suavemente, que dita uma melodia, e em que as guitarras aparecem, em poucos acordes, fechando os movimentos. Um momento que pelo caráter marcial poderia não dizer respeito a uma música sobre religião. Mas lembremos: estamos falando de uma época (a Idade Média) em que a religião era (como ainda é) uma forma de combate. Isso, tenho que convir, aproxima-me ainda mais da música. Porque de alguma forma, durante toda minha vida, considerei o embate com Deus e com o mundo como uma espécie real de combate. E porque considero que o imaginário de luta é o que mais fielmente consegue tratar o assunto religião. Eu só não sabia o quanto isso era verdadeiro. Pois agora antes de comentar o restante da letra, tendo como referência o universo religioso por si só e meus embates recentes, (que me mostram o quanto tudo tem a ver, realmente), falarei algo sobre os Evangelhos.

Notem que os quatro Evangelhos narram uma história, cada um do seu jeito. Uma história da vinda de um homem, que teria vindo nos salvar. Notem porém que esses Evangelhos são seguidos de uma outra narrativa (os Atos dos Apóstolos), e de diversas cartas (epístolas), dirigidas a diversas pessoas e a diversos povos, e finalmente terminada com uma profecia, o Apocalipse. Eu já havia lido os Evangelhos ao menos uma vez, naquele pequeno livro que eu tinha e que carregava para cima e para baixo. Por sua vez, começava a me familiarizar com os Atos, escrito por Paulo para narrar sua conversão e sua trajetória na fundação da Igreja. Pois foi ali que eu entendi o drama que era toda essa história. Porque antes eu estava acostumado com a mensagem de um homem tendo vindo e sendo morto após passar sua mensagem. Depois, eu era defrontado com uma Igreja, de crentes, em sua tarefa de impedir que a mensagem de Jesus desaparecesse do mundo. Pois foi ali que eu realmente mais me encontrei.

Não lhes digo quantas vezes ou até que ponto senti e chorei ao lembrar do momento em que Paulo é cegado por Deus e tornado seu primeiro lutador em nome da Igreja nascente. Eu inclusive chego em parte a me identificar a ele. Gosto de sua figura. Uma figura forte, de um sujeito educado por uma crença, que de repente muda sua vida de rumo e de destino. Pois se há algum trecho, fora dos Evangelhos, que me emociona fortemente é quando ele diz: O que você quer de mim, Senhor? Porque Paulo queria cumprir um dever, e ao ser cegado, ele vê finalmente que não sabia o que fazia, e mais que não conseguia mais enxergar (fisicamente e em sua vida).

O que ele faz? Como um sujeito tosco e duro, simplesmente, se deixa abandonar aos fatos, e à voz que ouvia, e pergunta, em voz alta, o que Ele queria que ele fizesse. Percebem que nessa pergunta está tudo nele? Sua vida inteira? Pois bem, é quando Deus lhe diz o que fazer, ir até Damasco e por aí vai. Porque sair da escuridão é bem isso. Abandonar-se às mãos dEle e perguntar o que Ele quer que a gente faça. É incrível como isso acontece. Não irei aqui fazer um testemunho, porém. Só lhes digo que têm sido muitas as vezes em que me sinto à vontade para me deixar à vontade dEle e algo acontece. Dirão que estou pirando. Não posso fazer nada se pensam assim.

Seja como for, é nesse momento que a música revela o que é realmente essa escuridão. Uma escuridão maior, que remete à Idade Média, sim, mas que remete, mais ainda, ao estado de quem está perdido, sem conseguir encontrá-lo. É emocionante, claro. Mas aí a letra continua, que também irei analisar em pormenores.

A letra

Quando a pegada marcial de Sign of the Cross começa, por volta dos 2'45, a gente se deixa levar pela batida marcante do baixo e da bateria, por um lado, e pelo som estridente das guitarras, por outro. Mas percebemos o drama quando abordamos a letra. "Esperando sozinho no vento e chuva / Sentindo o medo que cresce" são as primeiras estrofes desta parte. Pois é. Pode parecer uma forçação de barra, de alguma forma. Pode parecer que estamos apenas nos referindo a um contexto de Idade Média, e ao filme, que não nos deixa mentir. Ocorre que para uma pessoa que enfrenta reais dificuldades e que se converte simultaneamente isso não é de forma alguma uma ficção ou forçação de barra. Muito ao contrário.

Lembro-me claramente das vezes em que saí para resolver problemas, agarrado à minha cruz (no sentido metafórico mas também concreto, referindo-me aos meus terços ou às minhas cruzes sob a forma de crucifixos), em que a solidão, o vento, a chuva e o medo (por aquilo que iria acontecer e que crescia) me atingiam. Lembro-me claramente quando peguei meu guarda-chuva, mas ele praticamente se desfez nas minhas mãos com a tormenta a me atingir. Lembro-me também claramente do estado do meu espírito quando a tormenta dos meus problemas me atingia e parecia me destruir. Isso não era ficção. Não era forçação de barra. Essas provações existem, concretamente, e existem especialmente para aqueles que se convertem. Tanto existem fortemente que na hora a gente, que está em processo de conversão, não tem outra saída senão apelar ao poder maior de Deus. É foda.

"Sentindo a mudança das marés novamente / Trazida pela tempestade que está se formando". E a letra continua, absurdamente fiel a como nos sentimos quando passamos por problemas tais que só nos resta rezar. Não forço a barra, quero deixar bem claro. Agora mesmo passo por problemas dos quais eu não sei o desenlace, por um lado, e em relação aos quais eu me sinto extremamente fragilizado. São mudanças de marés, são tempestades que se formam, e de forma sincopada, seguida, nos atingindo como vagas do mar. É nesse momento que me lembro, por exemplo, da imagem do barco que afunda com os apóstolos e Jesus. Quando ele acorda e lhes comenta (aos apóstolos) como têm pouca fé. Por outro lado, é absurdo o poder salvador daquilo que acontece quando confiamos em Deus. Porque não posso negar: recentemente, foram diversos os momentos em que eu me sentia afundando, e em que tive que apelar à fé para poder me sentir subsistindo. Claro que, no caso do Steve, a imagem das marés e da tempestade não deve ser nada gratuita.

"Sinta a ansiedade, segure o medo / Algumas das dúvidas nas coisas em que você acredita". Não poderiam haver palavras mais perfeitas para narrar o que a gente sente na hora. A ansiedade parece nos engolfar nessas horas, sentimos que precisamos segurar o medo (sendo que o único meio é a fé, realmente), e percebemos como duvidamos (de formas que antes sequer percebíamos ou compreendíamos) das coisas em que acreditamos (ou dizemos que acreditamos). Porque o homem que está se convertendo está em processo. Ele ouve o que lhe acontece e não sabe muito bem em que acreditar. Tem fé lá no fundo dele, sim, mas não de forma inabalável. O homem em processo sente-se jogado de um lado a outro da vida, e não sente muita segurança quanto àquilo em que ele deve realmente se fiar ou se segurar. Parece um náufrago, no meio do oceano, sem saber em que pedaço de navio se pendurar. Esse tipo de homem ou de mulher também se sente, bem lá no fundo dele mesmo, pouco merecedor da salvação, porque sua fé parece fraca, e isso abre-lhe espaço para as dúvidas. Que não são poucas.

Nesses momentos, o crente apela à Bíblia, ou a segurar crucifixos, ou a rezar, ou no mínimo a se persignar. É curioso, porque todos parecem fazer do mesmo jeito. E as histórias na Bíblia muitas vezes realmente servem para trazer um alento a essas pessoas. Essas histórias, às vezes caem literalmente na vida dessas pessoas, mas outras vezes aparecem em cultos, e fazem com que elas chorem ou pareçam perder a postura. Outras, mais fragilizadas, às vezes dão dinheiro às suas igrejas nesses momentos, algo que por vezes não é tão adequado assim. Pois a gente, quando sente vontade de agradecer, tem que passar por momentos adequados para isso. Simplesmente se entregar a esse ponto por vezes é mero sinal de fraqueza, ou burrice, pura e simplesmente. Mas surge, sim, uma vontade de agradecer - que vai até a vontade de dar dinheiro em espécie mesmo. Não meto o pau nisso, simplesmente essa vontade é sensível e muito bonita de ver, se formos analisar apenas enquanto impulso de intimidade.

O homem em conversão, que carrega sua cruz e suas cruzes físicas, parece dessa forma navegar numa vida de incertezas e de dor incontida, que o engolfa e que por vezes o impede até de pensar. Porque esse homem avança, muitas vezes contra o vento, por fé e crença, mas às vezes, quando se dá conta, sem saber realmente por quê. Não tem explicação, por vezes, realmente, por que a gente continua nesse tipo de situação. Lembro-me de vezes em que insistia em lutas, sem conseguir uma luz sequer à minha frente. Lembro-me também de uns dias em que eu visitava um amigo, em nome de um ideal, e em que eu pensava no poder de carregar a cruz, aquela cruz. Lembro-me de ter feito isso quase sem comer. Lembro-me bem daqueles momentos. É curioso, porque a ideia da cruz é patente especialmente naqueles momentos. E também porque a gente realmente se sente carregando algo mais pesado que nós mesmos.

"Agora que sua fé será posta à prova / Nada a fazer a não ser esperar o que vem". Querem explicação mais clara do que essa? Nesses momentos de privação e provação, a gente sente que está sendo realmente posto à prova, e que não nos resta nada mais, a não ser esperar o que irá nos atingir (independente do resultado). Pois lhes digo: nos últimos meses, ao menos quatro vezes eu me senti exatamente assim. Indefeso, sem nada para fazer, sem nada com que contar, com os braços e pés atados, com minha fé sendo posta à prova, momentos nos quais eu tinha mais era que esperar, e confiar. Pois fé é isso. Confiar em algo que a gente sente que está lá, mas que - pensando de forma bem prática - pode ser que não esteja lá. Foi nessa época inclusive, de provações (que permanecem), que eu encontrei uma foto que ilustra isso bastante claramente.

Aqui, é preciso citar a Bíblia, com respeito à definição de fé. Está, por exemplo, em Hebreus, 11,1 (não me preocupo com a versão da Bíblia que uso): "Ora, a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que não se vêem", ou "A fé é a firme confiança de que virá o que se espera, a demonstração clara de realidades não vistas". Existem, claro, diversas outras passagens do AT e do NT que falam de fé. Mas não irei me referir a elas, até porque não sou especialista desse tipo de leitura. Digo apenas o que explicitamente está nela. Eu mesmo tenho uma forma bastante particular de pensá-la, que me aconteceu e ocorreu durante minha conversão.

Essa forma surgiu a partir de uma foto de uma cruz ao final de um caminho que aparece não muito claro, e que somente aparece com nossa caminhada, confiantes em sua existência. Porque fé, em minhas palavras, parece ser bem isso (sem entrar nos trechos, na Bíblia, como aquele que já citei, em que a fé é explicada). Uma confiança inabalável em algo que não vemos, porque realmente acreditamos nisso. Uma confiança que nos faz avançar e na qual nos fiamos para conseguir algo que, por raciocínio racional, talvez nem nos motivássemos a conseguir. A letra de Sign of the Cross acerta na mosca, mais uma vez.

Aqui preciso porém falar mais um pouco. Houve momentos, recentemente, em que eu realmente não sabia como iria sair de algo em que eu havia me metido. Eram problemas concretos, quero lhes garantir. Contas que eu precisava pagar. Comida que eu precisava comprar. Carências - como uma geladeira quebrada - a que eu não conseguia fazer frente, por falta de dinheiro, pura e simplesmente. Carência de serviço (como ainda enfrento). Carência de esperança. Eu passava pelo tempo e o tempo passava por mim e eu não sabia o que iria ser de mim. Pois ao mesmo tempo fui me envolvendo com a religião, e entendendo essa questão da fé. E foi muito curioso quando essas questões concretas foram sendo enfrentadas por mim com maior força e mais ênfase, e fui encontrando aos poucos saída de algo que parecia fechado, realmente, sem a menor esperança. Era curioso, porque a minha noção de fé religiosa foi se aprofundando ao mesmo tempo em que eu percebia como era diferente viver com fé e viver sem fé. É como vivermos com esperança real, confiante, e forte, comparado a vivermos contando moedas sem termos a menor esperança no nosso futuro concreto. A gente, com fé, ainda conta moedas, mas algo nos faz avançar. Algo nos mostra confiança irredutível em algo que não podemos ver, e que não podemos provar. Tal como na definição que esta na Bíblia (e que vim a ler bastante tempo depois - na verdade, esta definição eu peguei a partir de uma indicação numa missa e de uma citação da qual me lembrava muito por cima). É curioso e tão forte!

"Por que ainda está Deus me protegendo / Mesmo se eu não mereço?" Bom, aqui vocês podem achar que eu ainda forço a barra ao dizer que, naquelas situações particulares, por vezes a gente também pensa nisso. Mas não, não estou forçando. Eu já comentei quantas vezes pisei na bola com minha família e com a Cris. E comentei como ainda piso na bola, mesmo quando creio acertar. Pois nesses momentos, em que meus esforços são infrutíferos, em que me coloco à mercê de Deus, e em que apesar de tudo o que fiz e que tento, ele me ajuda, eu sempre penso nisso: por que será que ele me ajuda? Será que eu mereço? Geralmente, concluo que não mereço, e fico me corroendo com as faltas cometidas. Outras vezes, claro, não penso assim. Até penso em mim com merecimento. Mas em geral realmente sinto que meu mundo não terá saída do jeito que está indo, que estou me perdendo, por mais que me esforce, mas que mesmo assim algo, vindo sei lá de onde, parece estar me ajudando. Pois eu sei que para o crente isso acontece o tempo todo. Claro, o cristianismo nos promove o peso do pecado. Por isso, em grande parte, pensamos dessa forma. Mas não é apenas isso. O processo de conversão como um todo parece promovê-lo.

"Apesar de eu ser abençoado com uma força interior / Alguns chamariam de penitência". Preciso aqui falar algo de mim. Sou um sujeito inteligente. Mas um sujeito com problemas de caráter diversos. Por outro lado, em termos espirituais (ou, num sentido mais estrito, morais) pareço ter algumas qualidades. Essas qualidades costumam ser ressaltadas pelas pessoas que me conhecem mais profundamento. Claro que essas qualidades são de alguma forma contrabalançadas por uma rigidez extrema, desde a infância, algo que me faz julgar as coisas ora de forma inopinada, ora de forma extrema, sem consultar outras fontes. Por sua vez, meu espírito chegou até a ser mensurado, numa época, em sessões de umbanda.

Chegaram-me nessa época, nas sessões, a dizer coisas que me surpreenderam, que não repito aqui, mas que são extremamente lisonjeiras ou elogiosas. Ocorre que eu não sinto isso. Sinto-me a maior parte do tempo fraco, não digo fisicamente, mas em termos de espírito. É como se algo em meu interior estivesse de alguma forma desconectado, e eu não conseguisse me sentir à vontade em nenhum momento. Nesse sentido, essa força grandiosa que me disseram que eu tinha parece não me servir para nada ou quase nada. Daí que sou um sujeito inteligente e com algum poder que não parece ter serventia para nada. Não digo que seja assim. Digo que em geral eu realmente me sinto assim. Nesse sentido, é como se eu estivesse pagando caro por algo que eu tenho. Como se fosse uma penitência.

Vocês podem perceber que não forço a barra. Não estou tentando adaptar a letra da música a meu contexto. Tudo o que ela diz, ao contrário, parece realmente querer dizer respeito a mim (como a respeito de cada um de nós, fãs do Iron Maiden, ou gente nem tão fã assim). Tudo aquilo a que ela se refere parece bater em mim, especialmente, como se fosse uma porrada, e como se eu estivesse, por meio dela, da música, falando o tempo todo comigo, com meu caso particular. Não é algo que me agrada muito, preciso admitir. Sinto-me o tempo todo defrontado com algo a que não sei se consigo fazer frente. Como se estivesse o tempo todo perdendo meu tempo e minhas forças, com minhas condições e meu desconhecimento de mim mesmo. É bastante chato, confesso. Mas é essa a realidade. E o que acontece quando me aproximo da fé? Essa minha insegurança muda. Ora se transforma, ora diminui, ora é esclarecida por algum trecho da Bíblia. Ora se torna menor quando eu oro. É muito interessante. Notei isso diversas vezes nos últimos meses, e não me canso de me defrontar tanto mais comigo mesmo quanto mais vezes me entrego com fé àquilo que pareço buscar com muita convicção (e que às vezes é ilusão).

"Por que eu devo enfrentar isso sozinho? / Pergunto-me isso uma vez após a outra". É também curioso, no meu caso particular, como sinto e não sinto falta de ninguém quando passo por todas essas provações e privações. Minha mãe perguntou-me recentemente: por que eu sinto que, quando vou à tua casa, você parece querer que eu vá embora o mais rápido possível? Porque, naqueles momentos em que eu andava no bas-fond (uma outra forma de falar submundo), eu realmente me sentia sozinho, talvez como quisesse estar ou como me resolvesse a estar. Pois parece que algo me impelia (e ainda me impele) a me isolar. Pode ter algo a ver com a doença - sabemos que a esquizofrenia deixa os sentimentos e as sensações em frangalhos. Pode ter algo com uma incompreensão sentida na maior parte dos lugares que eu frequentava. Ou porque eu me sentia simplesmente mal na frente dos outros. Fosse como fosse, isso tudo era uma espécie de desamor com o mundo e comigo mesmo. Isso com o tempo foi diminuindo, e diminui com o passar dos dias. Ainda sou uma pessoa afeita a ambientes bastante duros, mas não sou mais tão fechado diante do mundo a ponto de deixar de falar com os estranhos ou com pessoas ditas normais. Até nisso a fé tem me mudado radicalmente. Mas confesso, porém: tenho evitado bares, lugares fechados à noite e lugares muito agitados. Tendo agora a me encontrar melhor em solidão comigo mesmo.

Doenças psíquicas (reparem na esquizofrenia):

Sabe-se por outro lado que a pessoa com problemas psiquiátricos mantém uma tênue ligação com sua realidade, com aqueles que a rodeiam. Sabe-se que isso acontece apenas numa forma pouco mais leve do que em relação a casos extremos. Mas não creio que tudo se deva a isso. Meu histórico explica muita coisa. Mas meu aparente convencimento de que nada no fundo permanecerá e dirá respeito a mim é o que, eu sinto, realmente me afastava e por vezes ainda me afasta. É como se eu tivesse permanecido literalmente desencantado por anos a fio. Aqui vocês podem imaginar a revolução que consiste em eu pensar em um Deus se preocupando comigo. Eu havia literalmente rompido com todos e com tudo. Mas uma diferença está em que eu não me pergunto por que tenho que enfrentar tudo sozinho. Eu sou a esse ponto bem mais fatalista: considero que a vida é assim mesmo. Nem tenho medo da morte, se querem saber. Não penso mais no que devo ou quero deixar, nem nada. Creio que alguns pensarão que exagero. Paciência. Essa é contudo a mais pura realidade. Ainda hoje.

"Rezando a Deus que não me deixe vivo / Dentro de minha cabeça sinto o medo principiar a nascer". A este ponto da minha trajetória, muitas vezes realmente pensei nisso. Por que eu preciso viver? Quase me mato em abril de 2016, me jogando na frente de carros de uma avenida movimentada. E na verdade lembro-me bem: naquela ocasião eu não sentia nada. Eu só queria que acabasse, e, tal qual a música, meio que rezando para que ele, Deus, NÃO me deixasse vivo, naquela tentativa. Pois isso é realmente um sentimento comum em quem avança para além da linha. Uma espécie de vontade de morte, para além da vontade de escapar vivo. Já a questão do medo não nos atinge naquele ponto. É como se ele estivesse presente e ausente o tempo todo. É como se tudo fosse na verdade dado, presente, tal como é. Simples assim.

"Eles estarão guardando suas preces para quando o momento chegar / Haverá penitências a pagar quando for o dia do julgamento / E os culpados irão sangrar quando o momento chegar / Eles estarão vindo para reclamar e levar sua alma!". Aqui, o Cristianismo está dado. Eles (os 11, aqui, de volta) guardam suas preces para a morte, reservam penitências para nós na hora em que formos julgados, aqueles que forem culpados sangrarão e tudo consistirá em reclamar nossa alma e levá-la, para o Paraíso ou para o Inferno. Bem a trama cristã.

Ocorre que a gente, quando enfrenta questões prementes, sente claramente como tudo isso ocorre, de forma geral. A gente sente-se envolvido por nossas preces, por nossos pecados, e sentimos que, para além de nosso sofrimento atual, também iremos pagar pelo que fizemos. A gente se sente o tempo todo oprimido, mesmo quando não parecemos estar nesse ponto da trajetória. Quantas vezes me senti (e ainda me sinto, em matizes cada vez mais esmaecidos) assim por causa do que fiz no passado! Quantas vezes reparo nos erros que cometi e como eles determinaram meu atual presente! Muitas e muitas vezes. Porque os erros nos perseguem. Até quando a fé aparece. É algo sobre o que um dia tentarei expressar algo a respeito. Como que é um presente que a crença nos dá, uma real absolvição por algo que antes nos fazia afundar mais e mais. Porque a gente sabe, citando o Iron: E o mal que o homem faz perdura para sempre (The Evil That Men Do Lives On a On). Não há nada de superstição nisso, não. A gente, quando envolvido diante de tramas tão enormes, sente muitas vezes isso clara e piamente.

O sinal da cruz

É quando chega o momento do refrão, com The Sign of the Cross / The Name of the Rose / A fire in the sky / The Sign of the Cross. Lembro-me claramente como ficava emocionado quando ouvia isso. Que era quando "via" aquela cruz enorme, do "meu vídeo", "caindo" em cima de mim (e talvez soltando poeira, não sei). Nesse momento, sinto hoje o poder da ideia do sinal da cruz, mas - como já disse - a sensação daquilo a que isso se refere realmente meio que ainda se perde de alguma forma em mim e de mim (algo a que irei me referir no final deste artigo, algo que está próximo). Fiquemos na música, por enquanto.

Nesse refrão, tanto o Blaze quanto o Bruce se esgoelam. Mas o tom da voz é para baixo. Não é um trecho da música realmente gritado (em toda sua dimensão). No começo, a frase pega mais alto, mas depois cai. Isso cria, a meu ver, um certo tom de fatalidade. É como se estivéssemos diante de uma verdade que nos supera. Nesse sentido, o som da banda segue por detrás, sem sobressair muito. Os acordes das guitarras, que acompanham a frase, corroboram essa impressão. Até o momento em que o vocal pára e nos defrontamos com frases musicais lentas seguidas de acordes longos (em que quase só dá mesmo para ouvir o baixo). Nesse ponto, eu entendia a mensagem. Havia algo a mais naquilo.

Mas irei comentar pouco os trechos seguintes. Não que eles não sejam interessantes, até o são. Mas eles simplesmente confirmam a lição aprendida com o Iron Maiden. Trechos musicais praticamente independentes, encavalados uns nos outros, com trechos mais rápidos e menos rápidos. Um detalhe, porém, se destaca: num determinado momento (por volta de 6'46"), vemos o andar da bateria compassado, e mais ou menos lento, que nos passa a ideia de um caminhar, lento e condoído. Pois é isso mesmo. Porque o sentido da fé muitas vezes é realmente isso. Mas não dura muito. Depois, volta a banda, como a conhecemos, com solos não muito bem costurados, passando por um trecho com uma melodia bem arranjada, e voltamos ao começo da peça integral. Tudo termina calmamente, meio que nos lembrando do que falamos.

Termino, agora, aos poucos, toda esta viagem explicando como vem se dando a noção real do sinal da Cruz em minha vida. Já expliquei que no começo ela me aparentava algo bastante tétrico, triste e opressor. Isso, com minha pesquisa, foi amainando, mas nunca de forma definitiva. Já comentei que tenho diversos crucifixos, que os uso frequentemente, e que cada um me passa uma impressão. Nenhum deles, contudo, consegue me convencer. A ideia da Cruz meio que escapa, portanto, das cruzes que me são apresentadas. Às vezes, fico olhando para as cruzes que são vendidas na livraria do Santuário que frequento, mas mesmo elas não parecem me convencer muito (vi uma, recentemente, que esteticamente é muito bonita, realmente, mas que não necessariamente acrescenta à minha fé). É como se algo escapasse delas, como se o significado intrínseco que elas querem passar passasse batido por mim.

Mas isso tem mudado. Pois assisto às missas num Santuário de uma cidade de tropeiros - Taboão da Serra. O Santuário mesmo fica a caminho de algum outro lugar. Pois nesse santuário, quando me deixo ficar um pouco, percebo por vezes a chegada de pessoas - de viagem ou simplesmente de passagem - que páram, saúdam Jesus ou o cumprimentam respeitosamente. Essas cenas suaves sempre me comovem. Pois é fantástico ver alguém com uma trouxa às costas se voltar para a imagem de Jesus e se persignar (e notem, persignar-se é fazer o SIGN (sinal) da Cruz). É por vezes muito bonito, também, até porque as pessoas que fazem o gesto o fazem com muita compunção, com bastante dedicação. Eu mesmo quando entro me ajoelho e me persigno.

Pois acontece nestes últimos dias que, frequentando as missas, em momento de Quaresma, o padre por vezes pede que nós façamos o sinal da cruz na testa de quem está ao nosso lado. Eu mesmo não gosto muito de ficar fazendo coisas assim, mas por outro lado assinto. Por que isso? Porque considero que o que mais importa num crente é a noção de igreja, de família, que ele pode cultivar dentro de si. Algo que o irmana a qualquer igreja tão logo ele a sente e entra nela. Tão logo ele cultua. Ele reza. Ou ele canta. E o gesto de fazer o sinal da cruz, ele mesmo, distante da imagem da Cruz, é algo bastante bonito e expressivo. Algo que subsiste por si mesmo. E algo que podemos dedicar a nós, a nossos amigos, a nossos familiares, e a Deus. Um sinal simples, com o dedo polegar, que pode nos fazer sentir nosso destino. De forma simples e direta. Sem intermediários. E, ainda mais importante, algo que podemos DESEJAR ao nosso anônimo ao nosso lado, uma espécie de sinal de amor. Um desejo profundo de bem-aventurança, algo que supera inclusive a nós mesmos, e que ao mesmo tempo nos torna uma espécie de pregadores.

Simplesmente the sign of the Cross.

Termino aqui meu mais longo artigo, uma verdadeira viagem, sobre uma música do Iron Maiden. Eu lhes disse que iria ser longo e trabalhoso. Estou ainda escolhendo as imagens a enriquecê-lo, porque ele merece. Imagens que nos façam sair de nós mesmos e entender o drama, do Steve, meu e nosso. Talvez com isso vocês consigam entender algo do processo por que estou passando e por que preciso (realmente preciso) compartilhar minhas paixões com vocês. Porque há algo a mais a ser dito. E porque considero todos irmãos. Apesar do meu jeito tosco. Apesar de tudo.

Já houve duas pessoas que aqui no meu prédio disseram que me aproximo do jeito do apóstolo Paulo. Eu não sei. Só sei que sou exagerado e que a seguir farei ainda outros artigos sobre a banda de que tanto gostamos: nosso Iron Maiden. Falando de rock, falando de heavy metal, falando de tudo aquilo que aqui, no Whiplash, realmente nos aproxima. A música.

Up the Irons!

Na Polônia, com a banda do Blaze:

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Sobre Rodrigo Contrera

Rodrigo Contrera, 48 anos, separado, é jornalista, estudioso de política, Filosofia, rock e religião, sendo formado em Jornalismo, Filosofia e com pós (sem defesa de tese) em Ciência Política. Nasceu no Chile, viu o golpe de 1973, começou a gostar realmente de rock e de heavy metal com o Iron Maiden, e hoje tem um gosto bastante eclético e mutante. Gosta mais de ouvir do que de falar, mas escreve muito - para se comunicar. A maioria dos seus textos no Whiplash são convites disfarçados para ler as histórias de outros fãs, assim como para ter acesso a viagens internas nesse universo chamado rock. Gosta muito ainda do Iron Maiden, mas suas preferências são o rock instrumental, o Motörhead, e coisas velhas-novas. Tem autorização do filho do Lemmy para "tocar" uma peça com base em sua autobiografia, e está aos poucos levando o projeto adiante.
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